Num sábado de maio de 2000, passei por um jogo de peladeiros, em Brasília, que me chamou atenção: um dos goleiros tinha uma perna só. Mesmo assim, era muito ágil. Ligado no jogo, se equilibrava e saltitava constantemente com a perna esquerda. Apesar da deficiência, o gaúcho Jairo Blank transmitia confiança ao seu time.
Terminado o jogo, e já acompanhado de um fotógrafo do Correio Braziliense, onde eu trabalhava, fui entrevistá-lo. O resultado está na matéria que aqui reproduzimos em pdf. Bom de papo, Jairo abriu o jogo de forma bem humorada, já saboreando o seu chimarrão:
“Guri, pra começo de conversa, eu sou o único goleiro do mundo que não sofre gol pelo meio das pernas”…
O TEMPO PASSOU
Agora, 23 anos depois, reencontro Jairo, sanfoneiro e cantor que alegra as noites em Brasília. Daquela época mantém o astral, o bom papo e uma impressionante disposição para viver.
“Quando eu tinha 18 anos, eu estava morrendo. Devido a um câncer, precisei amputar a perna direita, mas ganhei uma oportunidade para viver. Hoje, quase 50 anos depois, sou outro Jairo, mais alegre e cantor.
Jairo toca tudo que é instrumento. Até violino. Acordeão, gaita de boca e violão são o seu forte. O aprendizado constante é um desafio que ele não desvia, enfrenta! O futebol não é mais com a frequência de antes, mas o seu vínculo com a atividade física e com a música o colocam entre os personagens que ajudam a compor a história da cultura e do esporte em Brasília.
O ESPORTE
“Praticamente parei de jogar futebol porque cada defesa era uma luxação. Só no alongamento eu já sentia a diferença da idade. Num jogo caí errado e fraturei três costelas. O pessoal me cobra, pede para eu voltar. Vou repensar, porque Deus me deu esse dom do esporte. Mas voltar pro futebol tá difícil. Acho que vou tentar a natação.
TUDO É MÚSICA
Quando se recuperava da cirurgia de amputação da perna direita, em 1985, um amigo o ensinou a tocar violão. Depois, Jairo aprendeu a tocar sanfona, gaita de boca, flauta doce, teclado, contrabaixo, violino, saxofone… A música estava no seu íntimo. “Se pegar um serrote eu faço barulho … tudo é música. Adorava dançar nas festas de família, eu tinha ritmo”, diz ele explicando esse seu vínculo com os sons musicais.
A ROTINA
Jairo divide a sua rotina em duas frentes: os compromissos de casa e as apresentações musicais, que são inúmeras.
Em casa cuida de tudo: almoço, compras, limpeza, passeia com os gatos, paga contas… E ainda é o administrador da quadra onde mora, com seis blocos, na Octogonal. Tanta dedicação é para que a esposa, Marilene, também gaúcha, possa cumprir tempo integral no hospital Sarah Kubitscheck, onde é enfermeira concursada, desde 1992. “Ela foi condecorada quando cumpriu 30 anos de serviço”, diz Jairo, orgulhoso da mulher, já perto de se aposentar. E conclui:
“Adoro trabalhar. Na minha casa eu sou o cara do lar, sou o meu patrão”
A FAMÍLIA
Jairo e Marilene têm dois filhos: Eduardo, o Dudu, gremista que estuda alemão e se forma este ano em Odontologia; e Otávio, acadêmico de Direito e já estagiário no Supremo Tribunal Federal. Também toca piano e é DJ, como lazer. Ao contrário do irmão, é colorado. “Influência da mãe”, diz o gremista Jairo. E não se briga por isso.
Com 1,74m, Jairo ainda se mantém esbelto, apesar de ter “relaxado” com o esporte. Muitos perguntam o que ele faz para se manter assim: “Pego no rodo, na vassoura, vou no mercado, trabalho. Pronto, não tô gordo”…
E BRASÍLIA?
“Bah! – vou te falar: Brasília é uma ótima cidade pra quem gosta de música. Eu mesmo cresci musicalmente em Brasília. Em matéria de oportunidades, nem se fala. Tenho 26 anos aqui. A gente ama Brasília, é um pequeno país, um pequeno Brasil. Tem tudo aqui, nordestino, paulista, gaúcho. Volto pro Sul, mas não me desgarro daqui. O que tem de gente boa, bah!
AGENDA CHEIA
“Não posso me queixar. Eu sempre tive agenda. Toco em clubes, na casa de amigos, em CTG, no Lago Sul, no Lago Norte, em restaurante, eu sempre tô tocando. Toco e canto música gaúcha e MPB e ainda ganho cachê e apareço na TV (programa Pampa e Cerrado). Nunca estive tão exposto. E aí aparecem os convites pra tocar. Toco aqui, em Luiziânia, em São João da Aliança, em Cristalina, em feira de agronegócio, em Goiânia, em CTG… E baile aqui, baile lá…”
RECONHECIMENTO
Jairo se emociona e desabafa:
“Devo muito dessa atividade à minha esposa, à minha família. A gente fez 25 anos de casados e é como se estivéssemos começando agora. Ela me incentiva, me dá liberdade pra sair e tocar. Somo a metade da laranja, um do outro. Eu sou mesmo privilegiado pela família que tenho. Faço tudo com alegria. E sabe qual é a grande diferença de tudo isso? Não tenho patrão…”
Sobre o autor
José Cruz
Em Brasília desde 1980, entrou para a reportagem esportiva em 1986. Cobriu os Jogos Olímpicos de Seul (1988) e Sidney (2000). Durante seis anos, manteve um blog no UOL, onde revelou esquemas de corrupção com verbas públicas no esporte. Em 2016 integrou a equipe da CPI do Futebol, no Senado, presidida pelo senador Romário.