12 de setembro de 2024

HERANÇA DE FAMÍLIA: Valerinho, o mestre da música

Por  Hélio Termendani e José Cruz

Valerinho em sua mesa de som, usando a moderna tecnologia (Foto: José Cruz)

A história da cultura musical de Brasília não foi construída apenas pela “velha guarda daqueles tempos”.

A nova geração também faz parte desse capítulo, como conta Valerinho Xavier, um alegre brasiliense, artista do canto e da percussão, que herdou dos pais e da família, em geral, o gosto pela boa música brasileira.

Aos 42 anos, professor, viajado e esbanjando cultura, ele exibe outro motivo que ajuda a explicar a carreira brilhante que cumpre: nasceu em 5 de novembro de 1981, Dia da Cultura! Valerinho chegou ao mundo com a data registrada para o sucesso.

 Precoce

A escola musical começou em casa, precocemente, “devido ao lastro genético”, diz Valerinho, explicando sobre a sua iniciação com instrumentos já aos 4 anos de idade. Todos os tios por parte dos pais são nordestinos e intimamente ligados à música e esse ambiente foi incentivador, antes de tudo.

As primeiras aulas foram com o pai, Valério, que apoiou o filho, assim que manifestou o interesse pelos primeiros sons que ouviu.

 “Quando falei que também queria ser músico, meu pai logo me apoiou e começou com as primeiras aulas de pandeiro. Foi com ele que tive o ensino básico da batida…. um, dois, três, quatro… Depois o balançar do pandeiro, o abafar…”

Valerinho, com 4 anos, primeiros contatos com instrumentos musicais (Acervo pessoal)

A partir daí, Valerinho não esperou só por aulas, mas foi à luta – ou, melhor, à música. Entusiasmado com o que estava vivendo, passou uma semana estudando em casa, sozinho, tocando quase doze horas por dia, enquanto o pai fazia uma viagem. A forma como Valerinho conta sobre aqueles primeiros acordes demonstra que o garoto estava, mesmo, determinado.

“Quando meu pai retornou da viagem e viu o quanto eu havia evoluído, se empolgou”, lembra Valerinho, sobre a surpresa que apresentara ao seu primeiro mestre do aprendizado musical.

O Pai

Natural de Campina Grande, Paraíba, mestre no cavaquinho e no violão, Valério integrou a primeira geração do “choro” em Brasília, tornou-se profissional e só parou com as apresentações oficiais quando foi aprovado num concurso para a Embratel.

Porém, a sua importância para a música brasiliense e brasileira já estava registrada, com shows que incluíram parceria com Alencar Sete Cordas (1951 – 2011), uma das “feras” e referência do Chorinho, ritmo há pouco reconhecido como “Patrimônio Cultural”, pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional.

“Meu pai sabe muito sobre a história da música em Brasília. E ele gosta de falar sobre isso”, disse Marcelinho, deixando a dica para uma futura entrevista com o “Mestre Valério”.

Valerinho, ainda criança, com elite da música: Raphael Rabelo, Valério Xavier, Zé Menezes, Radamés Gnattali e Carlinhos Giffoni

 Os Clubes, do Samba e do Choro

Foi com Alencar Sete Cordas que Valério Pai também participou do grupo que fundou o Clube do Samba, o primeiro do Brasil, inicialmente, com sede no Teatro da Escola Parque da 308 Sul.

Nesse clube se fortaleceu a ideia para a criação de um Clube do Choro, que acabou fundado em 1997, por músicos que, antes, se reuniam na casa da flautista francesa, naturalizada brasileira, Odete Ernest Dias.

Foto histórica: 1975 – no Clube do Samba, Valério Xavier, no cavaco, Kunka, no surdo, Alencar 7 Cordas, Carlinhos Difoni, no bandolim, Pedro do Pandeiro e Carlos Elias

Entre os artistas estava o citarista Avena de Castro e numa dessas reuniões ele acabou eleito o primeiro presidente do Clube do Choro, que se mantém até hoje, perto de completar 50 anos, em 2027, sempre com intensa programação semana

Assim, o Clube do Choro “nasceu” quando Elmo Serejo era o governador de Brasília. Sem dar a importância que o movimento merecia, ele cedeu um modesto vestiário do recém-inaugurado Centro de Convenções para as reuniões do Clube. Porém, a precariedade do local desmotivava os encontros, além de facilitar o desaparecimento de equipamentos e instrumentos do grupo que ali ensaiava.

Novos tempos

Em 2006, José Roberto Arruda assumiu o governo do Distrito Federal e anunciou à intelectualidade musical que construiria uma sede para o Clube do Choro de Brasília.

Foi com essa determinação que se realizou um antigo sonho dos músicos. A construtora Via Engenharia executou o projeto, doado pelo Mestre Oscar Niemeyer, tendo Tadeu Filipelli como Secretário de Obras e Silvestre Gorgulho à frente da Secretaria da Cultura.

Entrada principal do Clube do Choro de Brasília, patrimônio nacional

Fernando Andrade foi o engenheiro responsável pela obra (foto). Assim, o Clube do Choro, no Eixo Monumental, entre o Centro de Convenções e a Torre de TV, foi inaugurado em 2012, tornando-se reduto de prestigiadas apresentações na capital, com shows memoráveis da elite dos músicos brasileiros e internacionais.

Show histórico

Paul McCartney no Clube do Choro

O mais recente show de um astro internacional foi comandado pelo eterno Beatle, Paul McCartney, numa apresentação especial para cerca de 500 pessoas, em novembro de 2023. E foi ele mesmo quem fez questão de custear as despesas desse inesperado e histórico espetáculo.

“Paul quem teve a iniciativa de pedir para fazer essa surpresa ao público. Ele soube sobre a importância do Clube do Choro para a música brasileira e ali quis se apresentar para deixar registrada a sua passagem pela Capital da República”

Outro Mestre

Mas, voltando à carreira de Valerinho: quando observou que o garoto era do ramo, o pai Valério o colocou em aulas de cavaquinho com Hamilton de Holanda (1953 – 2020). Valerinho estava com 14 anos.

Conhecido como o “Jimmy Hendrix do Bandolim”, o carioca Hamilton de Holanda tinha espaço garantido mundo afora pela técnica apurada com o seu instrumento.

“Foi Hamilton quem me deu a oportunidade de entrar pela primeira vez em um estúdio de gravação”, disse Valerinho, recordando o ano de 1995, quando gravou participação no disco “Dois de Ouro – A nova cara do velho choro – como pandeirista. “Foi a minha primeira gravação em estúdio, repete, para reforçar o feito histórico em sua carreira.

Outro incentivo para ter aulas de cavaquinho veio da mãe, Marilza, e do irmão dela, Tio Kunka, que o apresentou ao ritmo do samba. Paraibano, de Campina Grande, Wilson Elpídio Cunha Filho, o nome de Kunka, integrou o grupo musical “Primas e Bordões” e “Samba & Choro”. Kunka também foi um dos fundadores do Clube do Samba, em Brasília.

Choro Livre

Estreante no mundo da música, Valerinho não perdia as oportunidades, pois crescia a sua paixão pelo chorinho, em particular.

Ele lembra, aos risos, que, quando ainda era garoto, na falta de dinheiro para comprar um disco de vinil (LP – Long Play), gravava o programa “Choro Livre”, todos os domingos na Rádio Nacional, a partir do meio-dia, sob o comando de Reco do Bandolim. Depois, reproduzia a música para acompanhar, aprender e ir fazendo as correções de aprendizados.

Nessa linha, ele tinha outras referências, como Pernambuco do Pandeiro (1924 – 2011), “percussor da geração do Casarão do Samba, primeiro espaço de show em Brasília, onde ele tocava com o meu pai”, lembra Valerinho. “Pernambuco do Pandeiro foi de fato a minha grande referência nesse instrumento”, reforçou.

“Naquela época, fim dos anos de 1990, eu ainda não tinha muito contato com o samba e fui procurar escolas desse ritmo. Foi assim que encontrei o grupo “Coisa Nossa”, onde conheci Marcelo Sena (1966 – 2024) e com ele fiquei por sete anos”, conta Valerinho. E concluiu:

“O Coisa Nossa foi a maior banda de samba de todos os tempos em Brasília. No ano passado (janeiro de 2023), perdemos o Marcelo Sena, a minha principal referência nesse ritmo. Ele faz falta”

Com os ídolos

A partir dessas influências, Valerinho começou a frequentar os ambientes musicais da cidade, entre eles a ARUC (Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro), onde conheceu Jorge Aragão e outros astros do samba, do pagode e do chorinho em suas apresentações naquele espaço. Dessa época, há outras lembranças:

“Eu ficava louco com aquela vivência. Comecei a conhecer e a trabalhar com as pessoas que eram os meus ídolos. Por isso tenho um apreço muito grande pela ARUC e pela Escola de Samba Acadêmicos da Asa Norte, onde vivi momentos inesquecíveis no samba”.

Apresentações

Nesse tempo, Valerinho já tinha a base de estudo e do aprendizado musical, a partir do chorinho, o seu ponto de partida.

“Isso aconteceu pelo convívio com meu Tio Konka, que já tocava com vários artistas do Clube do Choro. Praticamente cresci naquela instituição e ali também fiz a iniciação de minha carreira musical”.

E já tinha, também, currículo para exibir, pois graças ao prestígio dos músicos que ele acompanhava, orgulha-se em apresentar o rol de “feras” com as quais já se trabalhou.

São artistas de renome nacional e internacional, entre eles: Paulo Moura, Jorge Aragão, Altamiro Carrilho, Paulinho da Viola, Armandinho, Jair Rodrigues, Zé da Velha e Silvério Pontes, Dona Ivone Lara, Beth Carvalho, João Donato, Dudu Nobre, Leny Andrade, Eduardo Dussek, Rita Ribeiro, Rildo Hora, Paulinho Moska, Jards Macalé, Hamilton de Holanda, Monarco, Mauro Diniz, Arlindo Cruz, Sombrinha…

Capital da música

Valerinho volta às lembranças do Clube do Choro e faz correlações da importância desse espaço, com boa argumentação.

“O Clube do Choro de Brasília é uma escola de formação de músicos em vários instrumentos. Ali temos a Escola de Choro Raphael Rabello, a primeira do ensino do Choro no mundo”, diz ele, orgulhoso. “A Escola foi criada pelo jornalista, músico e produtor cultural Henrique Filho, o Reco do Bandolim”, complementa.

Durante 15 anos – de 1999 a 2015 –, Valerinho frequentou a Escola de Choro como professor de pandeiro, cavaquinho e teoria musical. Ainda hoje, ele exalta a importância daquele espaço, tanto pela qualidade de músicos ali formados quanto pela contribuição para mudar o perfil cultural-musical de Brasília.

Conhecida como a “Capital do Rock” graças às bandas que marcaram gerações – Legião Urbana, Plebe Rude, Raimundos e Paralamas do Sucesso, entre outras – Brasília é, também, destaque no Choro e na MPB, graças ao nível dos músicos aqui formados:

“Hamilton de Holanda, por exemplo, é um prodígio no bandolim. Com seis anos de idade (1982) se apresentou no Fantástico. Seu primeiro gênero foi o choro, que ele tocava muito quando morava aqui em Brasília. Assim como Rogério Sete Cordas, um dos maiores bandolinistas do mundo, referência no violão, um marco para a música brasiliense”

 O Clube do Choro, enfim, desenvolve projetos de longa duração com a música instrumental brasileira, não só o Choro, mas a MPB, também.

“Formei muita gente, músicos que estão ativos na cidade. Mais especificamente no choro e no samba. Alguns se tornaram grandes professores, referências nacionais que me orgulham e orgulham Brasília”

Em seus 47 anos de atuação, o Clube do Choro registra a promoção de 2.500 shows, que foram assistidos por uma plateia de 750 mil pessoas.

Licença poética

Mas, na avaliação de Valerinho, não é só o Clube do Choro que faz a diferença para que Brasília se torne uma das referências musicais do país.

Capital que congrega brasileiros de todos os estados que para cá trouxeram e trazem as suas características regionais e diversidades culturais, isso contribuiu e contribui significativamente nas composições aqui realizadas.

“A diversidade de culturas do Brasil que aqui se concentra dá a roupagem da característica da música brasiliense que se compõe. Não se via isso antes, porque Brasília era uma cidade muito nova. Na medida em que a cidade foi crescendo e o tempo passando a repercussão foi proporcional”, avalia Valerinho. Diz mais:

“O grupo Menos é Mais, formado por jovens do pagode, viu a gente tocar. Sem preconceitos, eles aceitaram essas misturas de características regionais, essa conexão de permeabilidade maior aos tipos musicais. Na verdade, temos uma cidade cosmopolita que convive muito bem com a mistura de várias culturas musicais, inclusive de gêneros internacionais, como o jazz. É a tal licença poética da música que permite incorporar vários ritmos e estilos”.

 Influências

Nesse contexto, Valerinho lembra de Rafael dos Anjos Amorim, aluno da Escola de Música da Universidade de Brasília e da Escola de Choro.

Brasiliense, mas morando no Rio de Janeiro, Rafael é exemplo de músico que teve a influência da Bossa Nova e da música instrumental. Ele esteve muito ligado a músicos de jazz, que incorporou ao seu trabalho, como harmonias dissonantes e escalas alternadas, dando uma visão bem diferente do que produz.

Viagens e emoções

Com mais de 40 apresentações internacionais, Valerinho Xavier se emocionou em várias ocasiões ao longo da carreira. Emoção de chorar, mesmo.

Choro Livre, em apresentação no Blue Note de Pequim, em 2023

Por exemplo, quando ele tocou no lendário Blue Note Jazz Club, no Greenwich Village, o coração cultural de Nova York. É o mais famoso clube do gênero no mundo, com “sucursais” em Tóquio, Pequim, Rio de Janeiro e São Paulo. Com o tempo, a tradicional casa, fundada em 1981, foi agregando outros gêneros: além do blue e do jazz, incorporou o soul, o hop-hop e o funk.

“Passa um filme quando me lembro que um dia falei que seria músico. Vem à cabeça as primeiras lições, o início do aprendizado com fita K7… Eu era um moleque, cresci  e hoje até já me chamam de Tio… O tempo passou e, certa noite, se está numa casa daquelas, lendária, onde os mais famosos do mundo se apresentam. A emoção maior veio quando o diretor do Blue Note trouxe um quadro para eu assinar. É uma espécie do Hall da Fama da música instrumental internacional. Não há como não chorar num momento desses”

Choro Livre, liderado por Reco do Bandolim (à direita) no Coliseu, Roma, em 2019

O repertório dessas apresentações varia. Muito choro tradicional é a pedida, mas também incorporam o cancioneiro popular, músicas mais conhecidas de maneira instrumental, como Aquarela do Brasil, Garota de Ipanema, arranjos modernos, jazz, muito da produção de Tom Jobim, o mais conhecido músico brasileiro no exterior.

“Esse repertório animado deu resultado, mostra uma visão geral da nossa cultura musical, pois também incluímos o forró, músicas de Luiz Gonzaga, Sivuca , Caetano Velozo, Ary Barroso, Gilberto Gil e até o Desafinado, com arranjo na forma de choro”.

Homenagem

Na prática, essas viagens e apresentações acabam se tornando uma espécie de “cartão de visitas” do Brasil, pois leva ao exterior a nossa produção musical, um produto da cultura nacional. Não é exagero afirmar que esse trabalho é uma espécie de representação diplomática voluntária, promovida para divulgar a nossa cultura.

Por conta desse trabalho, Valerinho foi condecorado pelo Governo Brasileiro, em 2018, com a “Comenda do Rio Branco do Itamaraty”. Além dos Estados unidos, ele se apresentou em mais de 40 países, entre eles a Dinamarca, Alemanha, Portugal, Japão, Macau, Argentina, Cuba, Teerã, Espanha, enfim, sempre representando o Clube do Choro de Brasília e com os Grupos Choro Livre e Coisa Nossa.

Reconhecimento

Hélio Tremendani, na entrevista com Valerinho

“Hoje, quarenta e tantos anos depois que se decidiu pela música, Valerinho, incentivado pelos pais, honrou as tradições da família dele. E já faz parte da rica história da música que se desenvolveu na capital da República”, diz Hélio Tremendani, ex-presidente da ARUC, que reforçou a equipe em mais esta entrevista. Hélio testemunhou o crescimento desse artista do canto, do cavaquinho e do pandeiro.

Atualmente, Valerinho é cantor e cavaquinista dos grupos Samba-Choro, Fina Estampa e Coisa Nossa; pandeirista do grupo AQuattro e Choro Livre; e professor de Pandeiro da Escola de Choro Raphael Rabello.

Para alcançar esse prestígio de músico, um dia Valerinho decidiu largar a faculdade de Ciências da Computação, a fim de que pudesse dedicar tempo integral à música.

Espírita e acreditando em chamamentos do “alto”, certo dia ele revelou: “Mãe, recebi um chamado e é isso que vou seguir. Vou ser músico, mesmo que, no início, passe por dificuldades”.

Como nas vezes anteriores, ela o apoiou, mas com conselhos, claro: “Trabalha, também. Arruma algo ligado à tecnologia, dê aulas, procure trabalhar com produção musical, de eventos”, sugeriu a confiante mamãe.

“Eu garanti a ela que faria isso. E fiz mesmo. Ouvi o que a minha Mãe sugeriu, pois foi isso que facilitou os caminhos que já andei…”

Valerinho, de camisa azul, ditando o ritmo para a Mamãe Marilza, também incentivadora da carreira do já consagrado artista