Por José Cruz, Hélio Tremendani e Luciano Gomes
O paraibano de Pilar, Anísio Cabral de Lima, em Brasília desde janeiro de 1960, é um dos maiores conhecedores sobre as origens e o desenvolvimento do futebol candango. Aos 90 anos, completados em 4 de janeiro deste ano, ele é uma enciclopédia, não há dúvida, pois fala com segurança e muita certeza sobre esse segmento na história da capital brasileira.
É preciso dizer que Anísio não foi testemunha ocular de toda a trajetória do esporte por aqui, mas testemunha presencial, isso sim, ele foi, como vamos explicar.
Ocorre que, quando desempenhava as suas atividades de massagista, Anísio foi vítima da fatalidade. Ele tinha 47 anos e atendia a um atleta à beira do campo, quando foi surpreendido por uma bolada no rosto, que o levou à perda total da visão.
O fato ocorreu em 16 de maio de 1981, no campo da Asbac (Associação dos Servidores do Banco Central). Anísio não esquece. A narrativa é dele:
“Estava à beira do gramado, fora do campo de jogo. A bola veio forte e me pegou no meio da cara. Eu já não enxergava muito bem, tinha 11 graus de miopia num olho. O outro já não enxergava. A bolada piorou tudo, ficou ruim. Fui para Belo Horizonte tratar com o doutor Hilton Rocha, que era um oftalmologista famoso, o mesmo que cuidou do craque Tostão, quando ele teve o descolamento de retina”
Notícia triste
O tempo passava e o tratamento seguia. Mas, um dia, o médico deu o diagnóstico final – e triste – para Anísio: “Lamentavelmente, não há jeito de recuperar a sua visão”.
“Quando ele falou que eu não enxergaria mais, decidi seguir trabalhando com o que eu sabia, dirigir times de garotos e ser massagista. Decidi, também, que ajudaria o próximo e é isso que faço até hoje”
Hilton Rocha
Hilton Rocha foi o mesmo médico que atendeu o craque Tostão quando, em setembro de 1969, teve o olho esquerdo atingido pela bola chutada pelo zagueiro Ditão, num jogo do Cruzeiro com o Corinthians.
O descolamento de retina foi comprovado e Tostão passou por longo período de tratamento, inclusive com uma cirurgia realizada em Houston, nos Estados Unidos. Ele voltou aos campos e à Seleção Brasileira, sagrando-se campeão no México, na campanha do Tri Mundial, com inesquecível atuação. Cinco anos depois, aprovado no concurso para cursar a Faculdade de Medicina, em Belo Horizonte, ele despediu-se dos gramados.
Amigo
Foi desse personagem, Hilton Rocha, torcedor do Cruzeiro, que Anísio se tornou amigo. Logo que começou o tratamento, Anísio lembrou a histórica vitória do CEUB sobre o Cruzeiro, 2 x 0, em 5 de setembro de 1973, pela primeira fase do então Campeonato Nacional.
“O Cruzeiro tinha um timaço”, recorda Anísio. Tinha Raul, Nelinho, Zé Carlos, Tostão, Piazza… O técnico era Hilton Chaves”.
Naquele jogo, o CEUB jogou com: Rogério; Claudinho, Emerson, Paulo e Oldair; Rildo e Jadir; Péricles, Dario, Marco Antônio e Xisté. Técnico, João Avelino.
Memória
Hoje, aos 90 anos, observa-se que a decisão de Anísio de servir ao próximo não eram apenas promessa, mas ações para valer.
Sem enxergar, ele passou a usar a memória para guardar o que ouvia e se manter atualizado e fiel aos acontecimentos do esporte que ele ajudou a construir em Brasília. “Tenho tudo anotado na cabeça”, diz ele. E tem mesmo. Do futebol brasileiro, inclusive, que acompanha pelo noticiário e narrações de TV.
Rotina
O tempo passou, mas o banco, de madeira, é o mesmo, na frente de sua casa, que fica logo na entrada principal da Vila Planalto, um aprazível reduto de Brasília, farto em restaurantes, a maioria referências da boa gastronomia mineira e nordestina.
Ali, do lado de fora do ambulatório, numa espécie de sala de espera improvisada, os clientes aguardam a vez. Não é preciso senha ou hora marcada. O atendimento é por ordem de chagada e, assim, a fila do banco, normalmente lotado, anda.
Clientes
Os clientes de Anísio são jovens e idosos, homens e mulheres, atletas ou não que buscam aliviar as suas dores em tratamentos para contusões na perna ou no braço, torcicolos, problemas lombares, na coluna, enfim…
Para tratar há remédios específicos, como o calor de um raio ultravioleta se for o caso, e frascos com ervas em infusão, ótimas para luxações, dores ou outras enfermidades que o experiente massagista identificar. A verdade é que ninguém fica sem atendimento e é comum se observar o sorriso de alívio do mal de um ou outro paciente, ao final da sessão.
Doação
Aposentado, com tempo para agir e experiente no assunto, Anísio repete que “procura ajudar para aliviar a dor alheia”. E, mesmo diante de tanta doação, o custo da consulta ou do tratamento é, surpreendentemente, zero! Porém, ninguém sai do atendimento sem lhe deixar uma contribuição em dinheiro, colocado discretamente no bolso do jaleco que ele veste. Vez por outra alguém desprevenido avisa que “depois eu volto aqui e acerto”…
A carreira
Anísio veio para Brasília em 1960, quando tinha 26 anos, deixando na saudade a sua cidade natal, Pilar, no interior da Paraíba. Aqui, trabalhou no comércio da Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, e logo se vinculou ao futebol, sua paixão. Foi jogador amador e, desde cedo, mostrou as suas aptidões para ser técnico e massagista. E foi esse o caminho que buscou e conseguiu trilhar.
Candangos bons de bola
O tempo passava e Brasília crescia, também no esporte, com o futebol na preferência, claro.
“Quando chegava uma leva de nordestinos, os candangos, para trabalhar nas várias frentes de obras, o capataz perguntava se o candidato sabia jogar bola. Se dissesse que sim, estava contratado”
As empresas que construíram Brasília formavam os seus times de futebol e isso era a diversão da maioria numa cidade ainda sem atrativos.
Anísio lembra que o seu primeiro clube em Brasília foi o Clube Atlético Colombo, no Núcleo Bandeirante. Depois, trabalhou lá como massagista e treinador na categoria menor.
“Mas, naquela época, já existiam outros times, como o Grêmio Esportivo Brasiliense, o Rabello, o Nacional, o Defelê, o Clube de Regatas Guará, o Pederneiras, o Cruzeiro…” recorda Anísio, numa viagem pelo futebol candango.
O time da Construtora Rabello serve de exemplo de como o esquema funcionava. A empresa pertencia ao engenheiro mineiro Marco Paulo Rabello (1918 – 2010) e foi uma das que mais construiu os prédios projetados por Oscar Niemeyer.
Em 1965, Anísio foi contratado pela Rabello para trabalhar na categoria juvenil, que tinha Carlos Barbosa Morales como técnico. Murilo, Emerson, Pedro Pradera, Valdemar, Luizinho, Paulinho, Alemão…. eram os principais jogadores.
Já o time principal era formado por Zé Valter, Aderbal, Mello, Dico, Pelé Wilson Gordinho, Zé Maria Beto, João Dutra, Zé Maria e Arnaldo Gomes.
“Arnaldo era ponta esquerda dos bons. Ele ajudava a fechar o meio, estilo Zagallo. Naquele tempo ainda não se jogava na grama, era areia ou barrão. O primeiro campo gramado foi o do Defelê (Departamento de Força e Luz). Também o primeiro a ser iluminado. Era um bom time, foi bicampeão brasiliense, 1961 e 1962”, recorda Anísio.
Novos desafios
Passou o tempo, Anísio se aventurou e foi para o Rio de Janeiro, onde morou por dez anos. Sem boa altura para ser goleiro, ele tinha “impulsão”, saía bem e isso é o que importava, naqueles tempos. Jogou no “Lá Vai Bola” e no Alvorada, nos tempos do futebol na areia e bola de couro, pesada, o que exigia mais habilidade dos jogadores.
Como profissional, Anísio atuou de 1952 a 1954, e apenas pelo Madureira, até hoje o seu clube de coração. Depois era só futebol na areia, no Posto 6 de Copacabana, em frente à Galeria Alaska, um dos “points” da vida noturna carioca daqueles anos.
Nova luta
Foi quando Anísio deu uma guinada na sua prática esportiva e trocou o futebol pelos ringues de lutas de boxe, atividade que ele já vinha olhando de perto para praticar.
Incentivado por um amigo, enfiou as luvas e foi à luta, no Centro de Instrução Hermano e Regatas. Dos seus desempenhos, Anísio guardou os números: em três anos, fez 36 combates, venceu 20. “Mas, nunca perdi por nocaute”, orgulha-se.
Terminada a fase do boxe, Anísio foi para a Escola Nacional de Massagem e Enfermagem, ainda no Rio de Janeiro. Ali, ele se formou e começou a trabalhar em vários times, inclusive o Botafogo, onde atendia os atletas do time de remo, modalidade até hoje muito disputada com os principais rivais, Flamengo e Vasco, nas águas da Lagoa Rodrigo de Freitas.
No exterior
“Fui massagista do CEUB por 10 anos, de 1966 a 1977. Eu estava na delegação daquele time que foi o primeiro de Brasília a atravessar fronteiras. Foi antes de eu perder a visão, numa excursão inesquecível à África e à Europa. Fomos para Dacar e de lá para a Itália, Iugoslávia, Belgrado, Estrasburgo… tudo de trem. Depois fomos para a Espanha, cidades de Tenerife, Sevilha e La Coruña. O empresário Elias Zacour foi quem propiciou aquela viagem”
Segundo o site do “Almanaque do Futebol Brasiliense”, a excursão foi de 1º de maio a 13 de junho de 1975, totalizando 16 jogos. O CEUB retornou com sete vitórias, dois empates e sete derrotas, marcando 20 gols e sofrendo 19.
Delegação
Ainda segundo o “Almanaque”, a delegação do CEUB era formada por Paulo Victor e Déo, goleiros; Pedro Pradera, Fernandinho, Márcio, Emerson, Nenê e Cláudio Oliveira, zagueiros; Renê, Alencar, Péricles, Toninho e Xisté, meio de campo; Julinho, Humberto, Ivanir, Gilberto e Marco Antônio, atacantes. Toninho e Ivanir foram emprestados pelo Flamengo. O treinador foi João Avelino.
“Lembro que ganhávamos 10 dólares por vitória, além do pagamento do salário do mês. O bicho era pago na hora, logo depois da vitória”, conta Anísio.
Na lembrança
“Foi tudo muito bom”, contou Anísio sobre a sua trajetória no esporte. Na sua conversa, não há nada de lamentos. Orgulha-se de ter jogado e trabalhado muito, o que faz ainda hoje. Foi lateral direito do Bandeirante e, mais tarde, do Departamento de Água e Esgoto, mas já como peladeiro.
“Quando parei com o futebol profissional, fui trabalhar em clubes, o da Asbac, inicialmente, onde atendia atletas de todos os esportes futsal, basquete, vôlei, tênis… Depois, fui para o Minas Tênis e para a AABB, onde atendia o pessoal da sauna”, recorda Anísio.
Projeto social
No final da primeira década de Brasília, já se identificavam brigas de grupos por regiões e isso chamou a atenção de Anísio. Uma das formas de tentar evitar a expansão dessas disputas foi criar um time de futebol, mas o estudo estava vinculado aos garotos-atletas.
“Criei um projeto, Craque na Bola e bom na Escola. Não cobrava vitórias nem títulos, só queria que jogassem bola. Era o Madureira Esporte Clube” – conta Anísio. Era, também, uma homenagem ao seu time de coração, nas cores amarelo, azul e roxo.
A iniciativa incluía comandar o time, com o apoio de Rivelino, um dos seus filhos, que ficava ao seu lado como que transmitindo os jogos. A partir daí, Anísio fazia substituições, dava instruções e, assim, se realizava como técnico. O importante é que ele estava ali, sentia a vibração e a manifestação dos torcedores, era a sua forma de “enxergar” e viver o seu mundo real e muito íntimo ao longo da vida, o mundo do futebol.
O interessante é que, em muitos casos, o vínculo de garotos com o Madureira se estende ao longo dos anos e, ainda hoje, Anísio tem atletas idosos que começaram na escolinha quando tinham 12 anos.
Trabalho em família
“Até hoje estou com o time, nunca parou. Minha mulher, Julieta, cuida do uniforme, e os filhos, Ricardo Anísio, 56 anos, Rivelino, 54, e Beatriz, 45, dão apoio ao trabalho”, conta Anísio. E numa demonstração de que pratica a “democracia esportiva”, os dois filhos homens fizeram as suas opções e não seguiram a preferência do pai, mas optaram pela prática do basquete.
Preferências
Ao final da conversa, surgiram perguntas que não podem faltar a um personagem desse nível. Por exemplo: quem, na avaliação de Anísio, foi o melhor jogador de futebol da cidade de todos os tempos? Anísio divide a resposta em duas décadas: na de 1960 foi Beto Pretti, meia esquerda que jogava muito, garante. Na década de 1970 foi Péricles de Carvalho. E ainda sobra espaço para Anísio incluir a geração do Gama, dos anos 1980, quando o time de Brasília chegou à Série A do Campeonato Brasileiro.
Do campo para a gestão do futebol: quem foram os melhores cartolas na história do futebol de Brasília?
“Adilson Peres”, responde Anísio. “Trabalhei com ele no CEUB. Grande dirigente. Também tivemos Paulo Linhares, nos anos 1960, e José da Silva Neto, além de Wander Abdalla, uma lenda, um símbolo na gestão do futebol”, concluiu.
Indignação
Anísio não se conforma como o futebol de Brasília regrediu nos últimos tempos. “Já teve um time na final da Copa do Brasil e, hoje, não tem nem um na Série B do Brasileirão.
Em segundo lugar, ele não aceita a destruição do estádio Pelezão, na saída Sul da cidade, o primeiro da Capital, mas demolido pela ganância da especulação imobiliária, que ali construiu um condomínio de luxo, num negócio rápido com a então Federação Metropolitana de Futebol.
Testemunha
A entrevista com Anísio foi acompanhada pelo cearense Luciano Gomes, que chegou em Brasília com a família, em 1958, quando tinha sete anos de idade, em 1958.
Praticante do futebol, desde cedo, Luciano conheceu Anísio e passou a acompanhá-lo, dando hoje testemunho da importância de seu trabalho para o esporte de Brasília, como um todo. Começou jogando no Carioca, time juvenil, “mas só nos domingos”, garante.
Na juventude, Luciano trabalhou na paginação do Correio Braziliense. Depois foi para a Gráfica do Senado Federal, onde um bom time de futebol era uma das referências no esporte da cidade. Ali se profissionalizou e foi ser titular – zagueiro central – no Brasília, Grêmio e Guará, em 1978, quando parou.
Nessa época, Luciano também estudava na Faculdade Dom Bosco de Educação Física, onde se formou. Em 2005, foi à Universíade como auxiliar técnico do time de futebol da UPIS.
“Chegamos à semifinal naquela competição, mas perdemos para a Itália e ficamos em quarto lugar”, lembra ele.
Luciano foi bicampeão brasileiro de futebol universitário, jogando pela UPIS. Por conta de seu desempenho, chegou à Seleção Brasileira onde se sagrou bicampeão sul-americano em 2005 e 2006. Também em 2005, já atuava como auxiliar técnico de Luiz Carlos Souza, o Luiz Carlos Carioca, na Seleção.
“Ótimo profissional”
O carioca Hélio Tremendani, ex-presidente da ARUC e uma das referências da cultura e do esporte em Brasília, acompanhava, já em 1964, o seu irmão mais velho, Moacir, o popular “Melão”, que foi profissional do Cruzeiro e do Rabello.
“Foi nessa época que conheci Anísio, já como massagista. Era um ótimo profissional e tratava a todos muito bem e tinha ótimas relações com todas as pessoas. Isso fazia com que ele fosse sempre muito respeitado, o que se observa ainda hoje”, encerrou Hélio, sem esconder a emoção de ainda conviver com uma das principais referências do esporte de Brasília, em geral, e do futebol, em particular.