A brasiliense Leninha é uma mulher despachada, tipo daquela que se prepara, vai e faz. Atleta master de handebol, ela acorda por volta das 5h30 para ir à academia, se exercita no cross fit, trabalha, treina, viaja, disputa torneios, convive e cuida da família.
Casada com Renato, Francilene Santos, nome de batismo, é a mãe de Pedro e de Maria Eduarda, gêmeos com 18 anos. Professora do ensino fundamental e médio do GDF, já acumula 25 anos de sala de aula, com jornada de oito horas diárias. Ali, vive emoções de quem forma novas gerações e, claro, naturais decepções. Algumas que machucam e entristecem, como conta nesta entrevista.
Mas é nessa correria diária, já integrada à sua rotina, que Leninha também coleciona alegrias inesquecíveis, como o título de campeã do Mundial de Clubes de Handebol Master, que ajudou a conquistar, na distante Croácia, integrando a equipe da ARUC.
Nessa competição, o desempenho de Leninha surpreendeu. Ao final do evento ela foi eleita a “melhor jogadora da competição”. Esse valioso pódio ganha maior expressão por ter sido conquistado na Europa, o principal centro da prática do handebol no mundo.
“O que mais me surpreendeu na Croácia foi a valorização que dão ao esporte master. A cidade estava preparada para receber delegações de todo mundo. As pessoas comentavam na rua sobre o evento, sentia-se que a comunidade vivia mesmo o clima da competição.”
Atenção à Família
A filha Maria Eduarda já é universitária, chega ao segundo semestre do curso de Medicina Veterinária, na UnB. Pedro, o irmão, precisa de cuidados especiais que Leninha administra integrando-se à rotina dele, mas sem se descuidar dos seus compromissos.
“Eu preciso estar bem, isso é fundamental para que Pedro também esteja bem”, diz Leninha. “Por exemplo, quando Pedro se internou para uma cirurgia de quadril, em 2021, já perto da minha viagem para o Mundial, me internei com ele. E, lá mesmo, no hospital Sarah, eu fazia o treino físico para não perder o condicionamento e chegar ao Mundial da Croácia com bom rendimento”.
Renato, o marido, apoia essa rotina de Leninha e a incentiva se manter em atividade no que gosta de praticar, o handebol.
“Renato foi jogador e árbitro de handebol. Ele tem noção do que a prática esportiva significa para as pessoas. O apoio dele ao meu trabalho é fundamental”, reconhece.
Orgulho de ser atleta
Há um grande orgulho nessa rotina:
“Várias mulheres me procuravam para saber como eu consigo trabalhar, treinar e jogar. Acontece que ter um filho especial me fez ter mais garra, mais vontade de praticar esporte. Isso me fortalece, inclusive por ser referência para muitas mulheres”.
De forma didática é o seguinte:
“Ser mulher, mãe, esposa, atleta e trabalhar fora… são vários desafios. E a prática esportiva regular acaba sendo um resgate de vida que compensa. Isso reflete na responsabilidade que se tem em quadra. Tudo isso é um grande prazer! É isso que tento passar para as mulheres que jogaram profissionalmente, para que continuem, não parem. Na categoria master resgata-se o prazer de jogar, de se continuar fazendo o que sempre se gostou, porque o esporte é isso, prazer e qualidade de vida”.
O início
Para chegar a esse desempenho, Leninha começou no esporte ainda na idade escolar. O salto em distância, no atletismo, foi a primeira modalidade, quando estudante, em Taguatinga. Em seguida foi para o esporte coletivo, o handebol, onde chegou à Seleção de Brasília, à época sob a orientação do técnico Odiel. E não demorou a integrar equipes de clubes locais, como a APCEF e o BrB. Com 18 anos ingressou na ARUC, de onde não saiu mais.
Racismo no esporte
Esse é o lado triste na rotina de Leninha. A análise e o desabafo dela são recentes, na época em que o noticiário esportivo mundial era sobre os ataques racistas ao brasileiro Vinicius Júnior, do Real Madrid.
Estávamos no dia 26 de maio, quando Vini Jr, como é conhecido o jogador, mantinha suas críticas à falta de ação dos dirigentes do futebol mundial, uma semana depois de ter sido chamado de “macaco”, no jogo de seu time contra o Valência, pelo Campeonato Espanhol.
Não era fato inédito. Nos últimos anos, os também brasileiros Daniel Alves, Taison, Dentinho, Neymar, Roberto Carlos, Malcom, Richarlison, Hulk entre outros craques também foram vítimas do racismo de torcedores europeus.
“Sei bem o que é isso que Vinícius Júnior passa. Também vivi várias situações dessas, tristes e deploráveis”
Logo no início da carreira, no primeiro Campeonato Brasileiro Escolar que participou, em Blumenau (SC), a final do handebol seria contra as donas da casa. “Pega aquela neguinha”, gritavam os torcedores catarinenses, referindo-se à brasiliense.
Como se sabe, os três estados da Região Sul têm forte colonização europeia, o que motiva ainda hoje e de forma inacreditável reações contra a raça negra.
“Sofrer ataques racistas é horrível… Hoje, não é mais neguinha, mas ´aquela negona´ que tá dando trabalho em quadra. É inacreditável que ainda se viva numa sociedade assim”
Agressões explícitas
Em sua análise, Leninha não esconde a indignação de enfrentar momentos desses e precisar explicar sobre o assunto.
“Estamos sujeitos a essa agressão. O torcedor fica insatisfeito porque um negro fez um gol ou porque se destaca em quadra ou no campo de futebol. Então, explora a diferença na cor entre humanos para ofender. Se fosse um atleta branco nessa situação, o torcedor diria que tal jogador joga mal, chuta mal e não passaria disso. Mas, se for negro, ataca logo a raça”.
Fora das quadras
Certa vez, Leninha estava com a família na fila da primeira classe de um voo nos Estados Unidos, quando uma senhora branca foi no balcão companhia pedir para as tirarem dali. Afinal, por que negros estavam na fila da primeira classe? – queria saber a desaforada madame? “Era uma americana. A gente demora acreditar nisso”, lamenta-se Leninha.
“Em outra ocasião, num resort em Punta Cana, uma criança observou que minha filha estava operando um tablet e indagou à sua mamãe se na África já tinha tablet”…
“Há vinte anos existe uma lei para trabalhar a questão racial na escola. Mas tratamos sobre o assunto só em 20 de Novembro, que é o Dia da Consciência Negra”
Caso muito grave
As situações vividas pela atleta não são poucas. Certa vez, os alunos negros predominavam na sala de aula e uma garota avisou que ali não ficaria porque era “a única branquinha”
“Essa manifestação de uma adolescente repercute o que ela escuta em casa. Ela também já sabe do que se trata”, interpreta Leninha.
“Mesmo eu sendo negra, ela não disse isso para mim, mas para os seus coleguinhas. Ela generalizou e isso me magoou muito, principalmente por observar que ainda temos alunos com esse comportamento. Ainda hoje passamos por situações dessas e não se faz nada. Nada! Na hora eu disse que ela estava sendo racista, mas ela não admitiu, porque naquele momento estava refletindo o seu ambiente, o cotidiano de seu ambiente”.
Leninha insistiu na repreensão:
“Não me sinto à vontade de estar com você. Não quero você perto de mim. Neste momento não estou bem com a sua presença, insisti. E esse é um direito meu, afinal eu estou no meu local de trabalho. Além disso, ela não falou aquilo de brincadeira. O objetivo era ofender mesmo”.
Na real
Ainda sobre o racismo, Leninha faz a seguinte análise:
“Nos últimos tempos, tenho saído muito dessa visão de que por sermos negros não podemos entrar no aspecto vitimista. O negro, para não se sentir enfraquecido com a agressão, acaba tomando uma postura de forte, isto é, não reclama, não quer ser visto como vítima. Discordo! Se houve ofensa, seja qual for o motivo, tem que questionar, tem que dizer que aquele ato é deplorável”.
Leninha conclui:
Vivemos outros tempos que não os de nossos antepassados. A evolução está aí, veio a tecnologia, a luta de classes, os negros conquistaram acesso à universidade, por que eu tenho que aceitar agressões racistas? Não aceito mais! E cita a televisão como exemplo de evolução nesse contexto social:
“Antes, era só o Heraldo Pereira no jornalismo da Globo. Hoje, não! Há dezenas de protagonistas negros atuando na televisão”.