Por Hélio Tremendani e José Cruz
Camilla Dayse não se abateu na derrota por 42×2 no primeiro jogo amistoso de handebol que disputou, ainda nos tempos de escola. Havia uma explicação para a goleada sofrida pelo Colégio Batista Ludovicense contra o Colégio Dom Bosco, na capital São Luís, que tinha estrutura superior e até oferecia bolsa para os seus melhores atletas.
Era o início de uma jornada esportiva que dura até hoje, e Camilla já esperava por dificuldades, em quadra e fora dela. Porém, estava determinada e repetia:
“Apesar de tudo, não desistir”
Dificuldades não faltaram para essa mulher de Imperatriz do Maranhão, hoje com 30 anos. Algumas, bem desafiadoras para o emocional do ser humano. Por exemplo, enfrentar e combater o machismo e o racismo nas suas mais diferentes formas, entre elas a exclusão.
Mas, foi com esse perfil e mesmo com pouco tempo morando em Brasília, aonde chegou em 2008, que Camilla já faz parte da história da Capital da República, tanto pela intensa prática esportiva quanto por ter se tornado uma persistente combatente do racismo.
A carreira
Depois das primeiras jogadas no Maranhão, Camilla intensificou a sua participação no handebol, quando se mudou para Brasília. Inicialmente no time Anjos de Handebol e, depois, na escola. Ganhou o apoio de uma amiga, que era técnica, e foi evoluindo, até chegar ao Dínatos COC, no Plano Piloto, onde se destacou e ganhou uma bolsa de estudos.
“O Dínatos era uma ótima escola, pois também me oferecia boa base de preparação para o vestibular da UnB”, conta a jogadora.
Porém, foi pelo Faro que Camilla disputou a sua primeira competição oficial como atleta federada, a Copa JK, onde conquistou a medalha de bronze.
Universitária
O tempo passou e Camilla chegou à UnB. Inicialmente, para cursar Engenharia de Energia.
“Pouco tempo depois, troquei para Engenharia Ambiental”, relembra, curso em que se formou em 2023. E, nas horas de lazer, seguia jogando. Como acadêmica disputou sete campeonatos brasileiros universitários de handebol pela UnB, onde ganhou duas medalhas de prata e duas de bronze.
Questão racial
Além do ensino superior, chegar à UnB foi um incentivo para que Camilla entrasse de vez no debate sobre um grave problema que a atormentava:
“Na Universidade, conheci mais sobre o assunto e comecei a entender melhor a questão da mulher negra e seus conflitos na sociedade, o que muito me animou a me manifestar com maior conhecimento sobre essa questão”.
Assim, participando de movimentos, a primeira causa que ela combateu foi a do machismo. As mulheres da Atlética de Engenharia criaram uma bandeira, com frases de efeito, no uniforme, inclusive. Isso foi me empoderando para poder falar sobre as questões femininas e da mulher negra, principalmente”.
“Na prática, o conflito do machismo e do racismo se acentuaram com a minha entrada para a Universidade. Como explicar sobre uma mulher frequentando curso de engenharia? em segundo lugar, era uma negra estudando no espaço do branco…”
O depoimento de Camilla, sem meias palavras, dá a dimensão da gravidade desse problema que tristemente persiste, também no esporte, aqui e no exterior.
Desabafo
“Quando entrei no curso de Engenharia Ambiental, eu era a única mulher em algumas matérias. Nesses ambientes, somos sempre minoria. Aí começavam as dúvidas: será que eu deveria estar ali? Em decorrência, surgia uma autocobrança, pois eu tinha que me desdobrar para mostrar que era capaz, sim, de estar naquele espaço, naquele curso. Eu havia me habilitado para isso”.
“O negro tem sempre que se desdobrar mais para justificar a presença em certos espaços e ainda deve dar explicações para mostrar a sua capacidade para ser alguém”
Mais dúvidas
Fora da sala de aula, o constrangimento continuava em outros ambientes. Por ser mulher e negra já havia passado por momentos constrangedores. Por exemplo:
“Quando fui morar num prédio da Asa Norte, os porteiros me perguntavam se eu morava, mesmo, ali, como se isso não fosse possível. E isso durou três meses”…
Saúde
Nessa convivência nada saudável, Camilla desenvolveu um problema sério, “transtorno de ansiedade”. Sofria de crises de pânico que atrapalhavam, também, os seus estudos, pois as noites eram de insônias constantes.
“Sou privilegiada porque tenho condições para pagar uma terapia. Acredito nesse processo e sou testemunha de que esse apoio é muito importante”.
“Hoje, sou outra pessoa, mais consciente sobre toda essa realidade, com argumentos que ajudem a combater o racismo.
Segue o jogo
Atleta com boa técnica e muito aguerrida, Camilla é uma jogadora visada em quadra, pois joga bem, ataca bem e aproveita os vacilos do adversário, na avaliação de Hélio Tremendani, da ARUC, onde ela também joga.
Por conta desse desempenho, Camilla é frequentemente contratada para reforçar equipes de outros estados. Por isso, tornou-se uma “atleta rodada”, como se diz, pois atende a frequentes convites para jogar aqui e ali.
“Já joguei em todas as regiões brasileiras, em Rondônia, inclusive. É uma forma de me manter ativa no esporte”
Numa dessas saídas, em 2013, jogando em São Paulo, rompeu o ligamento esquerdo. Precisou passar por cirurgia e longa recuperação, o que lhe provocou um quadro depressivo preocupante. “Eu não tinha ânimo para nada”, recorda.
“Foi quando decidi mudar de curso (Engenharia Elétrica para a Ambiental). Isso me fez bem, pois eu estava precisando de uma mudança para me reanimar”, revela.
A próxima meta de Camilla nos estudos é frequentar o Mestrado. Chegará à Universidade em outras condições. Ela mesma reconhece: “A Camilla de agora tem mais ferramentas para enfrentar os desafios”, afirma, confiante.
Em Brasília
Em Brasília, Camilla se reveza entre dois times, o da UnB e o da ARUC.
“A UnB tem um time muito competitivo. A maioria das jogadoras já se formou, mas continua unida e conversando, mesclando atletas mais velhas com as mais novas. Tudo isso me ajudou. Na verdade, eu era muito calada e, hoje, sou mais expansiva.
Já na ARUC, Camilla está há dois anos. Chegou lá convidada pelo técnico Moisés Vieira, e já conquistou o título de campeã Master de 2023.
Trabalho
Atualmente, Camilla trabalha com catadores de lixo, mulheres negras, em geral, que se dedicam à reciclagem de embalagens para retorno à cadeia produtiva. Esse ambiente permite que Camilla possa lembrar de realidades já vividas.
Apoio
Hélio Tremendani lembra que o preconceito existe, inclusive, com as instituições. E cita o caso do bairro Cruzeiro, onde se criou e mora até hoje. É dele o seguinte relato:
Camilla e Hélio, defensores da mesma causa
“Eu também vivi situações parecidas. Minhas irmãs, principalmente. Quando a ARUC entrou para disputar competições federadas de esporte havia um preconceito, porque o Cruzeiro ainda era um bairro abandonado. Mas era ali mesmo que um time de uma escola de Samba aparecia em Brasília. Encontrávamos resistência com as demais equipes, como a do Minas Tênis CLUBE, a do Iate, da AABB, APCEF e a do Unidade Vizinhança. Para esses clubes era uma desmoralização perder para a ARUC, considerado por eles um time de favela… Mas, aí entrava o nosso orgulho: ninguém vai nos intimidar. E assim vencíamos onde entrávamos para disputar. O preconceito é muito forte. Mas, sobrevivemos”.
Depoimento
A entrevista com Camilla termina com um depoimento dela em que expõe como buscou forças para manter o equilíbrio, superar as adversidades sociais e conquistar o seu espaço de forma honrada:
“Entrar para a universidade, ter apoio psicológico, jogar handebol e trabalhar foram ambientes importantes para eu enfrentar os conflitos como o machismo, o racismo e a depressão. Essa conjugação de ambientes ajudou a entender o comportamento do indivíduo na sociedade. Comecei a falar nos grupos de Atlética, que existem em cada curso para promover o esporte e a integração entre alunos. Aproveitei que tinha algum destaque no esporte para impor condições, tipo: ou vocês mudam esse comportamento ou eu não jogo! E vi muita coisa mudar. Por exemplo, nos Jogos Universitários, os gritos de ofensa agora são para enaltecer os atletas. Agora é torcida, mesmo! O time feminino foi se fortificando. Entendi que falar, para mim, é uma premissa importante. A palavra é o que me move, me trás estímulo. Eu era calada e fui me tornando e me empoderando através da palavra. Consegui algo importante, aquilo que eu não concordava passei a falar, sobre os atos machistas, por exemplo. Muitas meninas começaram a me apoiar, não fui sozinha, mas plantei a semente. Ela floresceu. Jogos sem machismo é a norma, numa campanha que veio do Rio de Janeiro. Mas, ainda estamos muito longe da igualdade social. Para que isso aconteça, tem que reforçar políticas públicas para tratar a todos com equidade”.
No handebol, Camilla disputou sete campeonatos universitários (JUBs) e quatro Ligas Nacionais. Jogou em todas as regiões do país e durante oito anos disputou campeonatos regionais e abertos em São José do Rio Preto, SP.