21 de novembro de 2024

A jornada pioneira de um craque da fotografia

Por Hélio Tremendani e José Cruz

Tristemente, o fotógrafo carioca Adão Leal do Nascimento não está mais entre nós. Ele foi um daqueles profissionais que fotografou intensamente momentos históricos da República, desde a inauguração de Brasília, em 21 de abril de 1960, com suas imagens publicadas em vários jornais onde atuou.

É de Adão Nascimento o registro nº 1 de repórter fotográfico do Correio Braziliense, fundado no mesmo dia da Capital da República e, ainda hoje, o principal jornal da cidade, do grupo dos Diários Associados.

Como repórter fotográfico, Adão viajou por 35 países nos cinco continentes ao longo do tempo em que cobriu o Palácio do Planalto, desde em que aqui chegou, em 1960, vindo do Rio de Janeiro. Juscelino Kubitscheck estava no comando da nação e presidiu, também, a inauguração da nova capital, sua ousada iniciativa.

A partir daí, Adão Nascimento documentou a passagem de faixa entre 13 presidentes, incluindo os ditadores militares, de 1964 a 1985. E assim seguiram-se outros mandatários até se aposentar, em 2006.

Na foto acima, que ilustra esta introdução, Adão está usando uma máquina com lente fixa, com as imagens sendo gravadas em filmes em preto e branco que precisavam de revelação para posterior cópias em papel fotográfico. Ele foi um mestre na captação de imagens, tanto com motivos da natureza quanto nas crises políticas que viu ocorrerem.

O início

Fotógrafo desde os 12 anos, Adão se profissionalizou e atuou em vários jornais. Além do Correio Braziliense, ele trabalhou no O Estado de São Paulo, Jornal da Tarde, Jornal dos Sports, Diário de Notícias, O Jornal e agência United Press International.

Quando Adão se aposentou, em 2006, estava vinculado à Radiobrás, hoje Empresa Brasileira de Comunicação, EBC.

Parceira

Esta reportagem de recuperação de fatos, a partir dos feitos de um fotógrafo pioneiro em Brasília já falecido, tornou-se possível graças a depoimentos de Dilene, uma das filhas de Adão Nascimento. Ela é candanga e até hoje mora na capital brasileira.

Dilene atuou como uma “assessora” do pai. Ao sair para uma cobertura ele a convidava: “Quer ir, filha”? A resposta era sempre positiva, seguida da rotina de pegar a bolsa com os equipamentos fotográficos. E lá saiam os dois para mais registros de imagens da ainda jovem Brasília.

Lembrança de Família: (da esquerda para a direita): Adão, Edir, Dilene, Delaine e Edilson. A garotinha é Michele, na inauguração de uma exposição de Adão, sobre Brasília, no Senado Federal

“Meus pais, Adão e Edir, tiveram cinco filhos, sendo quatro mulheres – Denise, Deise, Delaine e eu – e um homem, Edilson”, conta Dilene. “E temos duas irmãs de criação, Michele e Maria Aparecida”, complementa.

“O meu pai trabalhou como fotógrafo por mais de 50 anos, a maior parte desse tempo em Brasília. Em 2006, ele se aposentou e retornou ao Rio de Janeiro, sua cidade natal. Papai morreu em 2012, aos 77 anos. Deixou muitas histórias registradas em fotografias. Deixou muita saudade, principalmente. Mamãe, Edir Castro do Nascimento, mora em Brasília até hoje”.

A decisão

O tempo passou… Certo dia, Dilene lembrou dos arquivos do pai. Com medo de aquelas produções caíssem nas mãos de quem não as valorizasse, ela correu para o Rio de Janeiro, pegou fotos e textos, cuidadosamente protegidos por envelopes plásticos e arquivados em pastas, e trouxe para Brasília.

Aqui, sob a sua guarda, Dilene (foto) mostra página por página e fala sobre as condições em que determinada imagem foi captada por seu pai.

Fazer isso é voltar no tempo, porque em muitas jornadas de Adão Dilene estava presente. Carregando a bolsa de equipamentos dele, ela conheceu de perto a atuação de um fotógrafo profissional, enquanto testemunhava boa parte da história da República, em seus momentos festivos e de crises políticas, inclusive.

Um serviço à memória

Esta é a primeira sede do Correio Braziliense, em meio ao Cerrado. Atualmente está no mesmo local, em prédio moderno e já numa das mais desenvolvidas regiões de Brasília

“Preservar esse material é um dever, é um serviço à memória de Brasília, além de prestar uma homenagem ao meu pai. Por isso fui buscar essas pastas no Rio de Janeiro. Agora, tenho em mãos a produção do repórter fotográfico com registro nº 1 do Correio Braziliense e que mostrou ser um dos melhores do país”, orgulha-se Dilene.

Legado

Boa parte da produção fotográfica de Adão Nascimento ainda está no Rio de Janeiro. São painéis de exposições que ele promoveu, como “O Brasil em Três Tempos”, sobre Brasília, Porto Seguro e Ouro Preto; “Brasília, Jubileu de Prata”, sobre os 25 anos da capital; “Cerrado, Fauna e Flora”, entre outras.

“Quero trazer esses painéis para Brasília. São imagens importantes do início da Capital da República. Mas ainda falta um patrocinador para o transporte desse material”, diz Dilene, esperançosa de, um dia, ver essa preciosidade num ambiente adequado e de destaque da cidade, como o Instituto do Patrimônio Histórico de Brasília, por exemplo.

Tempos da onça…

Quando Brasília foi fundada, 1960, ninguém queria trocar o conforto de sua morada no Rio de Janeiro por uma cidade “onde as onças passeavam assustando pessoas”, como ainda contam alguns pioneiros da capital da República, hoje com três milhões de habitantes.

Com o tempo, soube-se que essa história de onças era um dos argumentos para não deixar a antiga capital, o querido Rio de Janeiro.

Carnaval de 1962, W3 Sul: Edir com Dilene, no colo, ao lado de Deise, hoje jornalista e Denise, a filha mais velha, ao lado de Adão

Erguida com ousadia incomum, decisão do então presidente Juscelino Kubitscheck, Brasília estava cercada por uma flora e fauna nativas do cerrado no Planalto Central. E era como uma selva que a nova capital era vista, principalmente pelos cariocas, mas de forma irônica. Eles resistiam perder a sede do Governo da República para uma nova cidade surgida do nada e cuja população “dividia espaço com índios e animais silvestres”, como diziam os mais críticos.  Exageros, claro.

Naqueles tempos, Adão trabalhava no Diário Popular, no Rio de Janeiro. Quando veio cobrir a inauguração da cidade, em 21 de abril de 1960, foi com o compromisso de retornar em uma semana à redação.

“Papai acabou ficando por 46 anos”, conta Dilene. Ele viu que, próximo do poder da República, a reportagem fotográfica seria mais valorizada. E ficou. Além da cidade, Adão trocou também de jornal e foi trabalhar no recém fundado Correio Braziliense. Pouco tempos depois, estava na fotografia do Jornal da Tarde, depois no O Estado de S.Paulo, o tradicional Estadão, e na Empresa Brasileira de Notícias”.

“No início, moramos em um acampamento. Depois fomos para os primeiros blocos de apartamentos construídos na 208 Sul e, depois, para a 406, também na Asa Sul”, recorda Dilene.

Uma casa no Cruzeiro

Israel Pinheiro, prestigiado político da época, era uma espécie de prefeito de Brasília. Ele chamou os jornalistas e falou sobre o novo bairro que surgia, o Cruzeiro, e disse que cada jornalista escolhesse o seu novo espaço. Adão ficou com o antiga Quadra 46, atualmente Quadra 12”, lembra Dilene. Na foto, Edir e a tia avó Clara, na casa oferecida pelo Governo do Distrito Federal.

Essa era uma forma de o Governo atrair profissionais de diferentes áreas para Brasília. Os jornalistas, em especial, não eram funcionários do governo, e não tinham prioridade nas raras residências que existiam. Daí o surgimento de bairros, o Cruzeiro, inicialmente, contemplando, também, a turma da imprensa.

Parceira

Desde pequena, Dilene acompanhava o pai em algumas coberturas para o jornal. “Quer ir comigo, filha? Indagava Adão. A resposta era positiva e a dupla se mandava para mais uma missão fotojornalística.

Foi assim que Dilene, então com 25 anos, acompanhou os últimos meses de vida pública do presidente eleito Tancredo Neves, que às vésperas da posse passou mal, foi internado e morreu pouco tempo depois, em 21 de abril de 1985.

“Eu carregava a bolsa de equipamentos de meu pai e entrava com ele nos locais onde estavam autoridades. Foi assim que acompanhei a missa, nas vésperas da posse de Tancredo Neves”.

Em 14 de março de 1985, na missa celebrada na Igreja Dom Bosco, Adão, segundo a filha, tinha a lente de sua máquina focada no novo presidente, que seria empossado no dia seguinte. Adão observou que a todo momento Tancredo colocava a mão na altura do abdômen, demonstrando nas feições algum desconforto.

“De fato, Tancredo estava desconfortável. Ao final da missa, a dor aumentou e ele foi para o Hospital de Base. Fui com papai para lá. Chegamos a tempo de ficarmos na parte de dentro do hospital. Depois, fecharam a porta e não entrava mais ninguém. Lá já estavam muitos ministros com suas esposas, gente famosa pelos corredores, Fafá de Belém, madames da sociedade… Papai registrou tudo aquilo para o jornal”!

“Eu gostava muito daquele movimento da imprensa, mas não me tornei jornalista, fui para o lado do magistério, sou professora. Mas tenho uma irmã jornalista, no Rio de Janeiro”

O Índio e o Papa

As coberturas de Dilene acompanhando o pai se sucederam. Outra, também dolorosa, foi quando cinco marmanjos-assassinos atearam fogo no corpo do índio Galdino, que dormia numa praça da avenida W3 Sul. Era a madrugada de 20 de abril de 1997, um ato de crueldade que chocou a cidade. A morte de Galdino esfriou os festejos de 21 de abril, quando se comemorou 37 anos de fundação de Brasília. Adão cobriu esse triste evento e Dilene estava com ele.

Em outro evento, dessa vez festivo, que Dilene acompanhou o pai foi em 30 de junho de 1980, na primeira visita de um Papa ao Brasil, um feito histórico protagonizado por João Paulo II. Logo depois que desceu do avião ele se ajoelhou e beijo o solo brasileiro. Adão registrou esse momento e outros, também importantes, se seguiram.

Censura

Pela liderança que exercia, Adão chegou à presidência do Comitê de Imprensa do Palácio. O general-presidente de plantão era João Baptista de Oliveira Figueiredo (1918 – 1981), que assumiu a presidência sem o voto popular. Apesar de se mostrar “amigo” dos jornalistas, esse ditador gostava “mais de cavalos do que do povo”, como chegou a revelar.

Certa ocasião, os jornalistas ganharam novas e confortáveis dependências no Palácio do Planalto. Os fotógrafos contribuíram com a ampliação de algumas de suas melhores fotos para decorar o ambiente. A sala foi inaugurada pelo então vice-presidente, o mineiro Aureliano Chaves.

Entre as imagens estava uma que mostrava um momento de descontração de Figueiredo e do general Pinochet, por ocasião da visita presidencial brasileira ao Chile.  Pinochet comandou uma das mais cruéis ditaduras sul-americanas, prendeu, torturou e matou milhares de chilenos entre 1973 e 1990.

Flávio Sapha, que era o assessor de imprensa do governo brasileiro, não gostou daquela foto que decorava o novo ambiente dos jornalistas e determinou que fosse retirada. Naquele dia, ao descer a rampa interna do Palácio do Planalto, Figueiredo se deparou com um corredor de fotógrafos, todos com os braços cruzados, e seus equipamentos no chão. Era o protesto pelo ato de censura do assessor presidencial.

Em pouco instantes, o chefe do Gabinete Militar, Danilo Venturini, determinou que a foto retornasse à decoração original. Adão Nascimento estava nesse protesto e contou essa passagem para a filha Dilene.

O preferido

O ex-presidente Fernando Collor de Mello, que governou por dois anos, 1990 a 1992, pois foi cassado acusado de corrução, era um homem arrojado, gostava de desafios e mostrava-se imbatível. Gostava, também, do estilo de imagens feitas por Adão Nascimento (foto).

Certa feita, Collor reprovou as fotografias feitas pelo então fotógrafo oficial da Presidência da República, quando voava num avião Tucano da Força Aérea Brasileira.    Em novo convite, dessa vez para voar num caça supersônico F-5 da FAB, Collor não teve dúvidas, chamou Adão para preparar o equipamento que o fotografaria na arrojada aventura e que precisava ser fixado à sua frente, ou seja, na parte posterior da poltrona do piloto.

O resultado foi excelente, os cliques fotográficos funcionaram como o presidente exigira. Posteriormente, os filmes foram revelados nos laboratórios da Fuji, em São Paulo (foto ao lado), aumentando a qualidade do produto final.

O exigente Collor disse que as fotos eram “aceitáveis”, mas o prestígio de Adão junto presidente cresceu muito.

Resumo de uma jornada

Adão trabalhou nas revistas Manchete, Três Tempos, Cerrado, Fatos Brasil-Japão.

E nos jornais Diário da Noite, O Jornal, Jornal dos Sports, Correio Braziliense, DC Brasília, United Press International, o Estado de São Paulo e Jornal da Tarde.

Adão foi editor de Fotografia da Empresa Brasileira de Notícias (EBN), Secretário de Fotografia da Empresa Brasileira de Comunicação (Radiobrás) e editor de Fotografia do Jornal do Senado.

Ao longo de sua carreira, Adão Nascimento foi distinguido com as seguintes honrarias: Medalha do Mérito Jornalístico, Medalha de Prata da Organização Internacional dos jornalistas, em concurso realizado em Bagdá, em 1987; segundo colocado em concurso fotográfico realizado em Berlim, por ocasião das comemorações dos 750 anos da cidade, onde participaram 600 fotojornalistas.

Finalmente, Adão Nascimento (foto) promoveu três exposições, cujas imagens ainda estão no Rio de janeiro:

  1. O Brasil em três tempos – Documentário fotográfico das cidades de Porto Seguro, Ouro Preto e Basília;
  2. Brasília Jubileu de Prata – Ensaio fotográfico da cidade de Brasília, ao completar 25 anos.
  3. Cerrado – Fauna e Flora – Documentário fotográfico da fauna e flora do Planalto Central.

Depoimento

Em 14 de abril de 2000, pouco antes de se aposentar, Adão Nascimento escreveu um depoimento, que está no acervo agora protegido pela filha Dilene. Entre outras revelações, Adão escreveu:

O meu primeiro contato com a máquina fotográfica aconteceu quando eu tinha dez anos de idade. Um namorado de minha tia, ao conhecer nossa família, levou a máquina fotográfica para tirar algumas fotografias, coube a mim, depois de receber algumas explicações registrar aquele momento.

O resultado foi bom. Fiquei entusiasmado, e a partir daquele dia nunca mais abandonei a fotografia. Passei a me interessar cada vez mais pelo assunto. Comprava livros, visitava exposições e lojas de materiais fotográficos e ficava horas diante das vitrines olhando os equipamentos que não podia comprar.

Aos 12 comecei a trabalhar numa casa de fotografias e aos 14 em um grande laboratório fotográfico no Rio de Janeiro. Até os 22 anos trabalhei em vários studios e laboratórios fotográficos, entrando em seguida para a área de jornalismo onde estou há 43 anos. Passei por todas as editorias de jornalismo: Polícia, Esportes, Cultura, Política etc.

          …..

Apesar de todos esses anos no jornalismo, o meu gosto pela fotografia-arte sempre foi mais forte. Sou repórter fotográfico porque sou fotógrafo. Procuro transformar o gesto de apertar o botão numa arte. Sempre dou mais ênfase ao meu lado de artista.

O redator faz a história, o fotógrafo retrata o fato. Um trabalho jornalístico sobre um fato exige muitas palavras, a foto apenas um click. A história pode ser contada e pesquisada, a foto é o momento exato”.

Apoio

Ouvir as histórias de Dilene sobre o seu pai Adão foi um grande prazer. Além de revelar fatos inéditos de um fotógrafo profissional na rotina de Brasília logo nos seus primeiros anos e os bastidores da imprensa e de sua relação com o Poder, a entrevista dessa brasiliense mostra como muitas histórias da jovem Brasília ainda estão escondidas e devem ser contadas.

É nessa busca que a equipe do Memória da Cultura e do Esporte em Brasília, trabalha, para que surjam, cada vez mais, personagens daquele tempo.

Obrigado, Dilene.

E tenha a certeza de que nos associamos, também, às suas pretensões de trazer para Brasília todo o valioso acervo fotográfico construído por seu pai, Adão Nascimento.

Nesse sentido, também vamos conversar com autoridades locais da área de pesquisa e preservação de fatos históricos de Brasilila, que possam contribuir para que seja concretizada a sua proposta de transportar do Rio de Janeiro para Brasília, o acervo que lá ainda está guardado para que aqui enriqueça o documentário de imagens de Brasília nas suas origens.