Por Hélio Tremendani e José Cruz
Kris Maciel, uma das potentes e valorizadas vozes do samba e da MPB, com marca registrada candanga, não tem dúvidas:
Fui concebida ouvindo música. Depois, enquanto crescia, segui ouvindo samba, principalmente, com minha avó e meus pais. Tenho discos de escola de sambas desde aqueles tempos até hoje”, diz Cristiane Nascimento Maciel, a Kris, revelando a sua paixão incondicional pelo histórico e inconfundível ritmo brasileiro.
Origens
Faz sentido. O seu pai, Arnaldo Pereira Maciel, e a mãe, Ana Cristina da Silva Nascimento, tiveram origens em históricos bairros de criação e difusão do mais puro samba do Rio de Janeiro, o chamado samba raiz: ele em Padre Miguel; ela em Bonsucesso.
Ainda sobre as origens de Kris, tios e avós eram músicos. Um deles, chegou a tocar com Sinhô (1988 – 1930), instrumentista e compositor brasileiro, popular na década de 1920 e um dos responsáveis por consolidar o samba no cenário nacional. Tocavam em gafieira e em rodas de samba.
Corneta, pra começar
O primeiro contato de Kris, o nome artístico de Cristiane, com um instrumento musical foi uma corneta. Isso ocorreu quando ela foi guarda-mirim no Guará, cidade nos arredores de Brasília, sua terra natal.
“Eu adorava uma corneta, primeiro instrumento de um Quartel. Depois, toquei tarol, bumbo e prato”
Violão de presente
Na data de seu aniversário, Kris não quis a tradicional festa. Em troca, ela foi “modesta” no pedido de presente ao papai: uma bola de basquete, um tênis importado, um teclado e um violão. Ganhou o violão, instrumento bem mais próximo e de maior identidade com as músicas que ouvia e cantava. Porém, não frequentou aulas desse instrumento. Ela comprava revistinhas que ensinavam a dedilhar e foi se virando sozinha, “mas sem chegar a ser uma instrumentista”, reconhece. O seu negócio era cantar.
“Todo tipo de sambista que você pensar eu escutava e escuto na minha casa, onde comecei a cantar e a dançar. Meus pais dançavam e eu os acompanhava entusiasmada. Eles adoravam Santana, James Brown, Bebeto, Jorge Bem, Tim Maia, Bethânia, Caetano, Chico… E eu tenho tudo desses e de todos os outros sambistas. Tudo”!
Matriculada em escola religiosa, ela cantava com o grupo de alunas, mas sem sequer sonhar em ser uma profissional do canto. Às sextas-feiras, em casa, o seu programa era o Globo de Ouro. Ficava ansiosa para ver os novos cantores e as músicas de cada repertório.
Chance ao esporte
Antes da Música, Kris dedicou-se ao esporte, ao karatê, em especial. Quando tinha 10 anos, ela ganhou a primeira medalha, categoria 50kg. Foi um troféu valorizado, pois Kris disputou com atletas cinco anos mais velhas, de 15 anos. Nessa época, ela disputava pela Academia Meiko, tendo o Professor Francisco como técnico.
A idade aumentava e Kris trocou o karatê pelo vôlei, quando estava no segundo grau, já no Colégio Rogacionista. Esta mudança durou pouco, pois jogando basquete no Centrão, do Guará, ela se destacou e foi convidada pelo Professor Macedo para o time do Unidade Vizinhança. Depois, foi para o CIEF, quando foi convocada para a Seleção do DF, que disputou os Jogos Escolares Brasileiros (JEBs).
Quando completou 15 anos, Kris se mantinha no esporte, mas sem perder o contato com a música, que ocupava bom espaço na sua rotina diária. Cantarolando, ela formava, sem saber, na cabeça de boa memória e em cadernos o repertório que exibe ainda hoje, sob aplausos.
Bye, bye, esporte
Certo dia, um problema sério no joelho a afastou de vez da prática esportiva. A música estava de prontidão para ser assumida por essa sambista e ali começar a desfilar pelas noites musicais de Brasília.
Foi quando a relação com a música se intensificou e Kris se juntou a bandas de garagem. Estava com 18 para 19 anos e começou a se apresentar como cantora, inicialmente numa banda de meninas.
“Na época, eu namorava um músico que me ensinou a tocar repique de mão. Certo dia, fui a um samba na ARUC, onde tocava o grupo Raça Popular, samba e pagode dos bons. Lá, fui chamada para tocar surdo, mas eu não sabia e fui para o que já havia aprendido, repique de mão. Cheguei a cantar com um vocalista, Paulo Carvalho. Fiz um back com ele. Mas, parei com tudo isso e fui fazer o curso de Jornalismo”.
Canto na noite
Tempos depois, Pedro Molusco e Jorge Guterres, o primeiro cavaquinista famoso de Brasília, me chamaram para um grupo que tocaria na Cabana, ao lado do Pier 21. Montaram um grupo e comecei a cantar na noite.
“O projeto é esse, você é a cantora e nós acompanhando” sugeriram, segundo Kris. Naquela época, o falecido Carlos Elias, do Feitiço Mineiro, tinha um projeto às segundas-feiras, o Feitiço, destinado a descobrir novos talentos. “Eu ia lá e cantava. Saudades do Feitiço”, desabafou.
“Certo dia uma amiga me apresentou ao Bar do Calaf, um dos mais antigos de Brasília, funcionando desde 1994. Lá, eu dei uma canja, me revezando com Ana Cristina e Renata Cristina. Depois, fui cantar com o Raça Popular, convite do George Guterres. Fiz umas apresentações, mas quando chegava o fim do ano eu avisei que sairia de férias, iria para praia”.
George, um dos componentes do grupo bolou um plano: por que não ir todo o grupo para praia? Lá poderiam fazer apresentações e ganhar uns trocados. O grupo se mandou para a capital São Luiz, onde um primo de George era jornalista e ajudou a divulgar o trabalho do grupo candango.
“Pedrinho, um amigo de George, trabalhava na TV Mirante e nos colocou no noticiário cultural. Choveu de lugar pra gente tocar. Tocamos até no Centro Histórico e no Madre Deus, bairro berço da cultura maranhense, onde Alcione nasceu”.
Repertório
“Samba é prioridade. Canto tudo o que eu ouvi na infância e na juventude. Canto músicas que a nova geração não conhece, mas acaba gostando. Tenho um arquivo musical enorme, com sertanejo, guarânias, choro, reggae, mas trabalho mesmo é com o samba. Samba da pesada, samba de Beth Carvalho. Sou apaixonada por ela. Samba de Alcione! Canto muito Alcione. Canto tanto que as pessoas, de tanto me ouvirem, chegam a dizer que eu pareço ter o mesmo timbre de Alcione. O timbre de voz! É o que dizem”.
Nessa viagem a São Luiz, todas as sextas-feiras Kris apresentava cinco músicas novas que passavam a integrar o repertório.
Primeiro CD
Meu pai era muito boêmio – só caiu na real para a minha profissionalização na música quando fiz meu primeiro show no Clube do Choro, em 2010. Dois anos depois, lancei o meu primeiro CD, também no Clube do Choro. Era o dia 12 de outubro de 2012, não tinha onde colocar mais gente. Lotação completa, até porque era programa de inauguração do Clube. Fui a primeira a me apresentar naquele palco”.
Lembro que no dia de minha apresentação havia uma forte concorrência com o Sambrasília. É um dos grupos mais antigos, tem quase 30 anos e já gravou dois CDs com sambas e pagodes. Eles tocavam ali em frente ao Clube do Choro, no Mané Garrincha. Mas eu tinha o meu público”…
Foi quando a minha mãe viu que eu estava mesmo ligada na música, no samba, nos shows noturnos. Ela me indagou: “E aquele curso de Jornalismo que eu paguei pra você”? Tinha razão, ela pagou e eu não fui para a profissão. Sou apaixonada por jornalismo, mas a música… Minha irmã, Cláudia Maciel seguiu a mesma carreira que eu. Ela sim trabalha na área.
Feitiço Mineiro
Daqueles bons tempos da noite brasiliense de muita música e muitos locais para se apresentar, lembro do Bar Brahma, do Armazém do Ferreira, do Bar Brasil… lembro de toda a rede cultural que o Jorge Ferreira criou. Mas o Feitiço Mineiro (criado e 1989)… aquilo era o solo sagrado do samba, da MPB. Aquilo era um patrimônio de Brasília, não poderiam ter deixado acabar. Vi o primeiro show ali realizado, com a apresentação de Dona Ivone Lara…”
kris falou em Feitiço Mineiro, e aqui é preciso fazer uma pausa na entrevista para uma referência dos editores, uma lembrança, uma homenagem:
Jorge Ferreira, o cara que bolou o Feitiço, era professor, poeta, sociólogo, músico e amante do Clube da Esquina. Jorge também criou o Bar Brasil, o Bar Brasília, o Armazém do Ferreira, Mercado Central, Bar Brahma… O Feitiço, em especial, criado em 1989, fazia parte dessa rede voltada para a gastronomia, o incentivo e a difusão cultural musical. Foram anos dourados, quem sabe sem iguais nas noites de boemia de Brasília. Mas… tudo a seu tempo.
Com a morte de Jorge Ferreira, em 2013, a família não levou adiante o empreendimento e, aos poucos, o patrimônio artístico-musical foi fechando, foi desaparecendo… Onde era o “solo sagrado do samba”, o Feitiço Mineiro, hoje funciona a farmácia de uma poderosa rede local. Trocaram o samba por medicamentos. Essa estupidez remete ao “Samba da Minha Terra”, embalo criado por Dorival Caymmi:
“Quem não gosta de samba
Bom sujeito não é,
É ruim da cabeça
Ou doente do pé…”
Lamento
Kris não se conforma com a perda do Feitiço Mineiro, que ainda tentou sobreviver como “Feitiço das Artes”. Em vão.
“Pra mim, foi chocante fecharem o Feitiço. Um dos últimos shows ali fui eu quem fez, naquelas feijoadas de sábado, embaladas pelo samba raiz. Perdemos um patrimônio da música e da cultura. Não vamos ter outro espaço como o Feitiço Mineiro”, lamenta-se a sambista.
Noites candangas
“Já cantei em tudo o que é lugar. Cantei na Casa do Maranhão, na Casa do Ceará, no Cantador, na Ceilândia, no Calaf, Clube do Choro, nos bares da noite de Brasília. Canto também em festas beneficentes, em quermesses e doo o cachê para a instituição” – gesto filantrópico que ela se sente bem em praticar, como afirmou.
Segue o depoimento de Kris:
“Em cada lugar onde me apresento tem um perfil adequado ao que me foi pedido. A minha preferência é o samba, mas se me pedem pagode, vão ouvir pagode. Mas tem locais em que o repertório é do meu tempo de criança, as músicas que eu ouvia, que se perpetuaram e que ainda são sucesso: Alcione, Paulinho da Viola, Martinho da Vila. Minha avó era apaixonada por Martinho. Cantei Clara Nunes.., “Minha gente no morro”, de Candeia, que ela gravou.
“Ontem estive no morro
E voltei chorando,
Meu povo sofrendo
Crianças penando
Morro sem malandro que já tem senhor
Vejam só…
Disseram que compraram o morro
E estão derrubando os barrancos de zinco estão se acabando
Pra morar no morro tem que ser doutor…
……
No Lago, não!
Nessas cantorias, Kris afirma que só não cantou dentro de barcos navegando no Lago Paranoá. É conselho de seu pai, bombeiro. “Ele sabe o que fala e eu, medrosa, obedeci”.
Puxando o samba
Kris diz que foi a primeira mulher a intérprete numa Escola de samba. A primeira a puxar um samba. Foi no Varjão e depois em Santa Maria e no Riacho Fundo II.
Mesmo com todo esse desempenho, ela acredita que ainda não é reconhecida como grande cantora. “É uma mágoa que tenho”, desabafa.
Samba enredo
O samba enredo exige mais da intérprete. Conforme o tom, canta o samba sem parar. Mas, no meu caso, mesmo tendo o primeiro e o segundo intérpretes, eu já cantei o samba o tempo todo durante o desfile da Escola, sem parar”, orgulha-se Kris.
No embalo das escolas de samba, ela revela que torce para a Mocidade Independente de Padre Miguel, no Rio de Janeiro (na foto, a bateria da Mocidade de Pe. Miguel. No complemento, torce para o Flamengo. E faz uma revelação em tom de lembrança:
“Meu pai me deve uma ida ao Maracnã para vermos um Fla-Flu”
A família
Avó, pai, mãe, irmã…. “A família é o meu apoio é a minha base. Minha avó, Dona Léa, me criou, me orientou, ela morou em Brasília. Meu pai é militar, é Bombeiro, me orienta, muita precaução. Minha vó sabia sobre o meu potencial e me orientou para largar “essa vida de música, vida boêmia não é pra você. Ela me viu na primeira bandinha de garagem e sentiu que eu estava me encaminhando para a profissionalização. Falou de novo:
“Isso não dá futuro, tem que estudar.
Vida de boêmio não é legal”
Mas… “Eu adoro a noite. Sou muito noturna. Tudo o que tenho pra fazer é à noite. Durmo de dia. Quando durmo!!! E na noite gosto, principalmente, da filosofia do samba.
Festival de Mariana
“Em 2021, cantei, on-line, no 5º Festival de Marina, cidade de Minas Gerais. Concorri com mil candidatas, ficaram 20 finalistas, depois 10 e três. Cantei Flor do Meu Jardim, autoral, que foi escolhida a melhor canção”.
Curiosa
“Tô sempre ligada a ótimas músicas. Vinicius, por exemplo, escolho sempre. Escolho músicas difíceis de serem tocadas, estudo muito e canto até lavando a louça, dirigindo, arrumando a casa… sempre cantanrolando. Procuro saber sobre a história das músicas. Sou jornalista, é o meu lado curioso na profissão de cantora. Isso ajudo na hora de fazer a pesquisa musical, de saber o que é relevante para entrar no repertório. O jornalismo me ajuda muito nisso, me ajuda muito na me relacionar com as pessoas.
Samba Raiz
Hélio Tremendani (foto), pioneiro de Brasília e um apaixonado sambista, parceiro no projeto da Memória da Cultura e do Esporte, quis saber de Kris como ela vê o “Samba Raiz” hoje em dia. “Diante de tantas novidades e concorrências, o que sobrou do Samba Raíz”?
“Tia Zélia (prestigiado restaurante na Vila Planalto) em Brasília, é um reduto do Samba Raíz. O Samba Raíz também se canta lá no final da Ceilândia, é o samba da comunidade da Ceilândia”, diz Kriz.
“Com a chegada do pagode e do pagodinho, que caiu no gosto dos jovens, o Samba Raíz ganhou concorrente. No projeto Matriz, no Calaf, era obrigado a cantar pagode! É ritmo que a galera mais jovem está consumindo…”
Kris é fiel ao aprendizado lá na infância e mantém autores e cantores históricos em seu repertório.
“Canto Dona Ivone Lara, canto Nelson Cavaquinho, Noel Rosa, Arlindo Cruz, Maria Rita… canto o meu repertório, porque samba é canto tradicional. Se alguém me contrata vai ouvir Samba Raíz. Samba raiz é um Fundo de Quintal, o melhor grupo. É uma Beth Carvalho, Paulinho da Viola, é um Cartola. Samba Raíz é um Bezerra da Silva, um Luiz Carlos da Vila…
Em bailes, Kris canta de tudo. “Até Full Gás em ritmo de samba já cantei”… – composição de Antônio Cícero e Marina Lima, que começa assim:
Meu mundo você é quem faz
Música, letra e dança
Tudo em você é full gás
Tudo você é quem lança
Lança mais e mais e
Só vou te contar um segredo
Não nada
Nada de mal nos alcança
Pois tendo você meu brinquedo
Nada machuca, nem cansa
…..
Kris já entendeu que o seu público não vai a eventos dos mais jovens. Os mais velhos curtem, mesmo, o repertório “raíz” que ela apresenta, aquelas músicas que ouvia em família e ia “arquivando” na memória. Hoje, quando puxa esse arquivo num show, o sucesso está garantido, são músicas de grandes compositores, qualidade inquetionável.
“É uma galera mais velha que não deixa morrer esse tipo de gosto pelo samba. O samba esta vivo no verdadeiro sambista, interpretado por quem é herdeira. E eu sou dessas herdeiras”.
Hélio Tremendani indagou: “O que você não deixa de cantar, o que não fica fora de seu repertório?
– É difícil escolher, mas vamos lá. Não deixo fora “Rio Antigo”, gravado por Alcione, “Saber Viver”, com Fundo de Quintal”, “Ainda Mais”, Paulinho da Viola, não deixo fora sambas de Beth Carvalho… “Tesoura Cega”… “Os Cinco Bailes da História do Rio”, que Dona Ivone Lara gravou, é maravilhosa! Canto “Os Cinco Bailes da História do Rio”… é por aí….
“Já vi Kris cantando tudo isso, inclusive Pressentimento. É de arrepiar” – concluiu Hélio Tremendani
A música “Pressentimento”, de Elton Medeiros, é uma expressão lírica sobre a espera e a esperança no amor.
Pais orgulhosos
“Depois que eu gravei o CD, em 2012, meu pai andava com um embaixo do braço, orgulhoso. Cada amigo, cada vizinho que encontrava ele dizia: “Olha, essa é a minha filha”. Minha mãe também. Minha mãe também dizia, “Kris é minha filha”, Em 2016 gravei um DVD, mais um sucesso da família”.
Depoimento de Jerson Alvin
“É uma das vozes mais bonitas que conheço. Tem talento e se souber delinear uma carreira no samba com bom repertório e usando os talentos vocais que tem, sem desperdício, vai se tornar voz conhecida e de sucesso mundo afora”.
Jerson dirigiu o Canecão, no
Rio de Janeiro, por 27 anos.
Depois veio para o Academia
Music Hall, em Brasília e, finalmente,
Dirigiu o Feitiço Mineiro que, mais
tarde, até fechar, passou a se
chamar Feitiço das Artes.