21 de novembro de 2024

Foi um rio que passou em minha vida

Sou carnavalesco desde criança, quando comecei a frequentar as matinês infantis, em São Paulo e em Santos, onde costumava passar as férias de verão. Além das tradicionais marchinhas, nessas matinês a Portela iria entrar pela primeira vez na minha vida, embora na época eu não soubesse ainda, com a famosa Máscara Negra, de Zé Keti, que fez grande sucesso no carnaval de 1967:

“Quanto riso, oh, quanta alegria!
Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando
Pelo amor da Colombina
No meio da multidão
Foi bom te ver outra vez
Tá fazendo um ano
Foi no carnaval que passou
Eu sou aquele Pierrô
Que te abraçou e te beijou, meu amor
Na mesma máscara negra
Que esconde o teu rosto
Eu quero matar a saudade
Vou beijar-te agora
Não me leve a mal
Hoje é carnaval”

Um pouco depois, comecei a frequentar o Vai-Vai, virei sócio e passei a acompanhar de perto o dia a dia da tradicionalíssima escola de samba do Bexiga, encantado pelo seu preto e branco e pela sua tradição.

Com Neguitão, ex-presidente do Vai-Vai, em 2018

Antes disso, em 1970, a Portela voltou a tomar conta do meu coração carnavalesco com o samba-enredo Lendas e Mistérios da Amazônia, de Catoni, Jabolô e Valtenir, com o qual a azul e branco de Oswaldo Cruz e Madureira foi campeã do Carnaval. Eu ainda não sabia, mas já era portelense.

O compromisso definitivo veio em 1972 quando ajudei a organizar um grande evento, promovido pelo Movimento Estudantil, em São Paulo, em comemoração aos 50 anos da Semana de Arte Moderna. Foram vários shows e exposições de quadros e fotos.

Carteira de sócio do Vai-Vai em 1978

Um dos shows era Paulinho da Viola e a Velha Guarda da Portela, em sua formação original com Chico Santana, Alcides Malandro Histórico, Manacea, Argemiro, Casquinha, Ventura, Alberto Lonato, Tia Vicentina, entre outros. Num dado momento, Tia Vicentina carregando uma bandeja de caipirinha, descia sambando do palco, distribuindo os copinhos pela plateia.

Fiquei absolutamente fascinado com aquilo e a partir daí passei a me considerar portelense.

Mas ainda haveria um batismo de sangue. Semanas depois desse evento, eu e outros companheiros do movimento estudantil fomos presos pelo DOI-CODI do II Exército. E ali, nas masmorras da Rua Tutóia, nos raros momentos de relativa tranquilidade, eu e o poeta Luis Turiba, que estava preso comigo, cantávamos das nossas celas para espantar a dor e a tristeza e mostrar que estávamos vivos e resistindo. Para desespero e ódio dos torturadores. Da nossa cela, sempre cantávamos os sambas da Velha Guarda da Portela. Aí, nesse ato de resistência, consolidei minha condição de portelense, sem saber ainda que a Portela de Paulo Benjamin de Oliveira sempre foi um símbolo da resistência contra o preconceito e a discriminação ao samba e aos sambistas.

Em 1977, mudei para Brasília e fundamos o Pacotão, um bloco de carnaval que era também um instrumento de luta contra a ditadura. A partir do Pacotão, conheci a ARUC, afilhada da Portela, e seu grande presidente, Nilton Sabino, e o ciclo se fechou.

Desfile do Pacotão em 1980

Fiquei amigo de vários integrantes da Velha Guarda da Portela, especialmente Monarco e Tia Surica, passei a frequentar a quadra da Portela, em Madureira, e em 1994, num ano em que não teve desfile em Brasília, comecei a desfilar na Portela.

Este ano, completei meu 30º desfile pela Portela, exatamente no ano do centenário da Majestade do Samba, e foi com muita emoção que ganhei de presente do Seu Mirinho, sobrinho de Dona Ester, fundadora do Quem fala de nós come mosca, o bloco precursor da Portela, e sócio mais antigo e baluarte da Portela, numa visita à sua casa, em Oswaldo Cruz, uma camisa da Velha Guarda, que vou guardar com carinho e usar em ocasiões especiais. Afinal, com 30 anos de desfiles e 70 de idade, já posso entrar na Galeria da Velha Guarda.

Mas essa foi só a primeira emoção desses dias de Carnaval no Rio de Janeiro.

Casa onde Paulo da Portela morreu, em Oswaldo Cruz

Nesse mesmo dia, saindo da casa do Seu Mirinho, o compositor Jorge do Batuque me levou a uma casa na Rua Carolina Machado, 950, em Oswaldo Cruz, que está totalmente abandonada. Fiquei surpreso e chocado em saber que casa era aquela. Simplesmente a casa onde morou e morreu Paulo Benjamin de Oliveira, o Paulo da Portela, o nome mais importante do samba e do Carnaval brasileiro. Absolutamente incompreensível e inaceitável esse Patrimônio Cultural Brasileiro estar totalmente abandonado. Deveria ser tombada, restaurada e transformada num Museu do Samba e do Carnaval. Prometi pra mim mesmo que vou me empenhar junto ao presidente do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, para tentar tombar esse monumento histórico do samba e do Carnaval.

Na segunda-feira de Carnaval, foi impossível segurar as lágrimas ao pisar na avenida com a Portela, tendo ao lado baluartes e bambas como Tia Surica,Noca da Portela, Paulinho da Viola, Zeca Pagodinho, Mauro Diniz, Marquinhos de Oswaldo Cruz, Teresa Cristina, Marisa Monte, Diogo Nogueira, Luiz Ayrão, Neide Santana, Marquinhos do Pandeiro, Serginho Procópio, Áurea Maria, Celsinho Andrade, Totoca e tantos outros amigos que fiz nesses 30 anos de convivência no solo sagrado da Rua Clara Nunes, 81, em Oswaldo Cruz.

Desfilando no centenário da Portela

Na terça-feira, tive a alegria de participar do desfile da Filhos da Águia, escola mirim da Portela, e ajudar, junto com meu amigo Cláudio Cruz, a consertar a asa da águia, que vinha num carro alegórico fechando o desfile das mais de 700 crianças, que tinha quebrado. Foi lindo e emocionante ver o futuro da Portela brilhando na Sapucaí.

Ajudei a consertar a asa da águia do carro alegórico da Filhos da Águia, que tinha quebrado

Infelizmente, o desfile da Portela ficou muito aquém do que sonhávamos e esperávamos para comemorar o centenário, mas isso é outra história.

O que vale mesmo é a emoção de entrar na Avenida e sentir todo o corpo arrepiar, como diz o samba-enredo de 1991, Tributo à Vaidade, de Carlinhos Madureira, Café da Portela e Iran Silva:

“Eu sou vaidosa
Eu sou assim
Vaidade não tem preço
Mas eu tenho seu apreço
Pois você gosta de mim
Eu sei que faço seu corpo arrepiar
Eu sei que você não vai sem me ver passar
Eu já vi você chorar
Na hora do meu desfile encerrar
Perguntei ao espelho meu
Qual delas é mais linda do que eu
Ele então me respondeu
Mas linda do que eu só eu
O meu azul veio lá do infinito
O meu canto é mais bonito
Salve Oswaldo Cruz e Madureira
Me chamam celeiro de bamba
A majestade do samba
Da velha guarda formosa e faceira
Eu sou e sei que sou
Mais fascinante, deslumbrante, mais amor
Bem sei que você aprova
Pois meu visual comprova
Eu sou luxo e esplendor
Olha eu aí
Cheguei agora
Cheguei pra levantar o seu astral
Posso perder, posso ganhar, isso é normal
Vinte (duas)  vezes campeã do carnaval”

Moacyr Oliveira Filho é jornalista, ex-presidente da ARUC, presidente do Consulado de Portela no DF, diretor de carnaval da Liestra, secretário-geral da Fenasamba, desfila há 30 anos na Portela

Sobre o autor

Moacyr Oliveira Filho

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