4 de dezembro de 2025

Na memória: A grande noite de Elza Soares na Aruc

Por Hélio Tremendani

Lá se vão 46 anos, quase meio século de um encontro inesquecível, daqueles que não sai da lembrança. Nem do coração.

Hélio e Elza Soares, na Aruc

Foi em 1981 que a jornalista Sandra Costa, do Jornal de Brasília, promoveu o “Prêmio Candango de Ouro” para homenagear os melhores representantes das escolas de samba de Brasília. A festa foi na quadra da Aruc e o grande destaque daquela inesquecível noite foi a apresentação da espetacular sambista Elza Soares. No dia do show, eu e o diretor Márcio Careca fomos ao hotel, pela manhã,onde Elza estava hospedada, para lhe entregar o cachê combinado.

Surpresa

Logo que chegamos fomos pegos de surpresa por um rapaz, na pérgula, tomando uísque. Assim que nos viu, o distinto perguntou se éramos da Aruc e se estávamos indo lá para entregar o dinheiro à cantora, que estava no apartamento. Quando confirmamos, ele quis receber o valor combinado, no lugar de Elza. Argumentou que era do Rio, etc e tal e nos deu chance de dizer que também tínhamos vindo do Rio, que aqui morávamos e que conhecíamos bem a malandragem carioca, no bom sentido, claro.

Com certeza, não entregamos o dinheiro para ele. Sequer o conhecíamos e, principalmente, porque o acerto do contrato tinha sido com Elza Soares.

Dificuldades

Quando chegamos ao apartamento de Elza, fomos muito bem recebidos e narramos o ocorrido. Foi quando ela nos contou sobre as dificuldades que enfrentava com “empresário”, sempre espertos e exploradores de artistas. Por isso, tínhamos agido corretamente em ter ido ao encontro dela.

Estávamos emocionados, com certeza, na frente daquela sambista que, à época, vivia o auge de sua carreira. Durante a conversa, Elza abriu o coração e nos contou, também, sobre as dificuldades de relacionamento com Mané Garrincha, o fenomenal craque da Seleção Brasileira bicampeão mundial, 1958 e 1962.

O romance do casal, ainda segundo Elza Soares, provocou uma antipatia à cantora por boa parte da população. O popular Mané Garrincha era mundialmente conhecido e famoso. Todos sabiam que ele era casado e tinha sete filhas. E o fato de estar com outra companheira fez com que parte das mulheres se solidarizassem à família de Mané, que teria ficado desamparada. Essa história consta, inclusive, da biografia de Mané, “Estrela Solitária”, magistralmente escrita pelo jornalista Ruy Castro.

Elza, na Sala de Troféus da Aruc

Apesar do romance da dupla Elza-Mané, o craque não se afastou da família, não houve rompimento como chegou a ser noticiado à época e Garrincha continuou apoiando financeiramente, tanto a mulher quanto as filhas. No mesmo encontro, Elza nos contou que nessa ocasião em que sofria resistência da sociedade devido ao namoro com Mané, ela foi fazer uma temporada na Itália, quando recebeu grande apoio de Chico Buarque, que lá morava. Chico estava fora do Brasil para escapar do regime da ditadura, que o perseguia, assim como a outros cantores, principalmente censurando as letras que compunha. ​​​

Resistência

Elza atribuía boa parte da resistência da sociedade ao fato de ela ser negra. Naqueles tempos a discriminação racial ainda era muito acentuada.

Além disso, Elza vinha de família pobre, que morava no morro, nos disse ela. Jovem, ela ajudava a mãe, que lavava roupa para clientes. E chegou a carregar água num balde, equilibrado sobre a cabeça, como na marchinha “Lata d´água na cabeça”, de Luís Antônio e Jota Jr.

Dessa fase passou para o estrelato, fazendo sucesso internacional e até cantando com a grande diva do jazz, a norte-americana Ella Fitzgerald (1917-1996). A fama se espalhou e isso contribuiu muito para que ela mudasse de patamar social. Mesmo assim, o seu romance com Garrincha ainda incomodava boa parte da sociedade.

O show

O show de Elza Soares na Aruc naquele distane 1981 foi um evento histórico. Desinibida e dominando a plateia, Elza se sentiu em casa e várias músicas de seu repertório foramacompanhadas pelo coro da comunidade cruzeirense, que a recebeu muito bem e grande carinho. No repertório, cantou, entre outras, “Malandro”, de Jorge Aragão.

Durante a apresentação, a diretoria da Aruc quis conter o entusiasmo de um ritmista, o Babi, que acompanhava a cantora com o seu pandeiro. Mas, Elza chamou Babi ao palco, lembrando que ele estava como o personagem da música “Malandro”, e assim ela aumentou a interação com o público da Escola.

Foi enfim, uma noite inesquecível, um show marcante pela presença de Elza Soares, que tristemente já nos deixou (1930-2022). No encerramento do show ela cantou clássicos da MPB daquela época, “Mulher de 30”, que gravou com Miltinho, e “Fada”, com Luiz Melodia, duas canções que ainda hoje integram o maravilhoso cancioneiro nacional.

Prêmios

No “Candango de Ouro” a Aruc manteve a tradição de ser uma escola competitiva e conquistou 13 dos 16 prêmios oferecidos pelo Jornal de Brasília. Mas, sem dúvida, o grande prêmio daquela noite para a comunidade cruzeirense foi a presença dessa querida cantora, sambista por excelência, que deixou saudade, Elza Soares.