16 de julho de 2025

MUSEU DE 20 MIL LPs E OUTRO TANTO DE BOAS IDEIAS NO CERRADO

Por Hélio Tremendani e José Cruz

Sérgio Careca (foto) é um idealista, antes de tudo. Formado em Educação Física pela Escola Dom Bosco, a primeira do gênero, em Brasília, ele não é um personal trainer; é empresário que curte a natureza, gosta de fazer amizades e cuidar de uma preciosa coleção de 20.000 discos LPs. Ironicamente, Careca não é fanático por música. Ouve com moderação. Porém sem ficar com ouvido grudado no fone, no rádio, celular, gramofone ou algo do gênero, tanto da modernidade quanto daqueles tempos…  

Projetos

Careca, amigo do nordestino Tampinha (foto), um folclórico garçom de Brasília – “Olha o kibe!!!” –, é um brasiliense que gosta de receber visitas. Ele mora na acolhedora “Vila Marianna”, com boa altitude nos arredores da Capital, ambiente silencioso e perto do Lago Paranoá. Na Vila, o melhor som e visual são da natureza: folhas caindo, mudas de árvores sendo plantadas e muitos pássaros atraídos, também, pelo barulhinho ritmado da água de um pequeno riacho.

É nesse ambiente que Careca criou o seu recanto agregador, tanto de natureza quanto de pessoas e de projetos, que vai executando, na contramão do mundo consumidor da sociedade atual. Nesse espaço ele gerencia um salão de festas, agora em reforma, e conclui um palco-auditório ao ar livre, próprio para noitadas festivas, com decoração que se agrega à natureza próxima. Tudo equipado com bar e cozinha.

Com tantas iniciativas culturais-gastronômicas-musicais, o que era chácara, herança de família, com mais de 50 anos, transformou-se na “Vila Marianna”, sede do “Regenera Brasília”, que Careca assim resume:

“O Regenera Brasília é um guia de consumo consciente, uma plataforma que reúne empreendedores com foco em saúde, sustentabilidade que atuam em áreas como alimentos orgânicos, restaurantes veganos e vegetarianos, construção sustentável, produtos e serviços sustentáveis ou regenerativos no Distrito Federal. É uma plataforma que incentiva os consumidores que buscam uma vida mais saudável e sustentável com produtores e prestadores de serviços comprometidos com esses valores”.

Museu do Vinil

Mas, o quente da visita é o “Museu do Vinil”, preciosidade da qual ele é o curador. Recebeu a doação de “Janete”, uma amiga que já não tem tanto tempo para os cuidados que os LPs exigem. Careca se dispôs a fazer isso e a coleção tornou-se mais um de seus projetos.

“Janete tinha uma loja de CD, quando todo mundo começou a se livrar… dos LPs, os discos em vinil. Um dia, ela contou um a um, tinha 20 mil exemplares. Foi quando me confiou a guarda”, explicou Careca.

Os clássicos daqui e do mundo estão agora em três ambientes ao final de uma pequena escada, na Vila Marianna. Quem quiser visitar essa raridade que vá com fôlego para procurar o seu LP preferido, porque eles não estão catalogados. Primeiro, busque o estilo: samba, rock, jazz, sertanejo… ou por cantor: Chico, Roberto Carlos, Elis, Rita Lee… Esses sim, estão agrupados e, então, delicie-se buscando o seu favorito, um a um. Se desejar, um toca-discos está à disposição para matar as saudades.

Estratégia

Esse detalhe de não catalogar os LPs é proposital. Porque, procurando o que deseja, o visitante se depara com produções que vão lhe trazer outras lembranças e sugerir um bom papo sobre os tempos daquela produção, o autor, o mundo em que vivíamos, a tecnologia de então… pura saudade.

Foi nessa busca aleatória que o carnavalesco Hélio Tremendani (foto), ex-presidente da Aruc e parceiro de reportagens para a Memória da Cultura e do Esporte, encontrou um de seus álbuns favoritos, “Inimitável”, de Roberto Carlos. “Para mim, é o melhor de todos os álbuns dele”, disse Hélio.

Lançado em 1968, esse LP marca a mudança de estilo do cantor, afastando-se da Jovem Guarda e abraçando o romantismo que o consagrou como “Rei” da música brasileira. “Se Você Pensa”, “Ciúme de Você”, “As canções Que Você Fez Pra Mim” e “Eu te Amo” estão nas faixas desse memorável LP.

Para justificar tanto interesse pelo Museu do Vinil, Careca tem bom argumento. Ele cita o exemplo da bicicleta, que teve o seu fim decretado quando surgiram as motos e os carros, mas estão aí até hoje. “Da mesma forma o vinil, sempre virá alguém buscar por essas relíquias”, diz ele.

O projeto do Museu do Vinil poderia estar num estágio mais avançado para receber visitantes com estrutura mais adequada, com maior número de toca-discos, por exemplo. Mas os recursos públicos destinados através de outra entidade parceira nunca chegaram ao seu destino. Careca até já reclamou junto à Secretaria de Cultura do Distrito Federal, mas ainda não recebeu resposta.

Muito valor

Para mim, além das músicas que guardam, os discos com uma assinatura, com dedicatórias, com umas declarações de amor têm mais valor. Olha só o tamanho de uma história dessas quando um disco assim vem parar aqui. Tenho um vinil do Geraldo Azevedo em que Jamili assinou uma dedicatória para a irmã, Juliana, que diz assim:

“Apesar de tudo, te amo demais.

Posso não demonstrar, mas amo.

 Feliz Natal e próspero Ano Novo”

Curtindo um bom som

“Na modernidade de hoje, o ser humano faz um play list e finge que gosta de música. No Museu a ideia não é só ouvir, é curtir, procurar o LP, colocar no toca-discos, reunir amigos, ouvir, comentar sobre determinada faixa, falar sobre aqueles tempos”… De fato, para muitos isso ainda é um prazer de boas lembranças.

“Tenho muitos discos repetidos, mas não estão à venda. Porém, troco por CDs, quero criar, também, o Museu do CD”, diz Sérgio Careca.

Mas poderia vender, não?

“Os discos são mais ou menos com os livros, se há duplicatas, precisamos que circulem entre pessoas que curtem. O educador Paulo Freire doava os livros depois de ler, para que circulassem entre novos leitores. Sua biblioteca tinha cinco ou seis livros. O mesmo eu quero fazer com os discos LPs”, explicou Careca. “Eles precisam circular”

Argumentos

Nessa conversa, Hélio Tremendani lembrou de outros argumentos que valorizam a guarda do vinil e cita a composição “Trocando em Miúdos”, de Chico Buarque. Nela, o autor destaca, logo no primeiro verso, sobre o quê lhe interessava numa certa separação amorosa que teve:

… “Mas fico com o disco do Pixinguinha, sim
O resto é seu”…

Está aí, no valioso cancioneiro, a valorização do vinil; nada mais lhe interessava se não o disco de outro poeta, Pixinguinha. O restante, nada tinha mais valor.

É nesse contexto da valorização da arte e da cultura que Sérgio Careca quer trabalhar e já encontra parceiros que o aplaudem.

Inacreditável, mas num mundo de tanto consumo e anseios pelo pagamento da prestação de serviços, do lazer, no Museu do Vinil não precisa pagar para pesquisar, mas deixar algo em troca, mesmo que seja a ideia para uma parceria, a disposição para plantar árvores…

Intercâmbio

Careca é um incentivador de intercâmbios, da arte e da cultura. Busca dar apoio a iniciativas pouco divulgadas, como a dos índios que habitam o Cerrado próximo, para que valorizem mais suas produções artesanais. Apoiou, também, grupos de LGBTQIA+, mas por ser hétero, foi afastado da comunidade. Os líderes do movimentam negam até o cumprimento, algo que o entristece, mas não desanima em seus projetos.

“Comecei a trabalhar com a cultura em 2010, com projetos sociais de grupos negros, índios e LGBTQIA+”, lembrou. E se orgulha de ter dado o primeiro cavaquinho para o amigo Valerinho Xavier (foto), um dos mais prestigiados cavaquinista da nova geração brasiliense.

A amizade dos dois se mantém e é no estúdio que Careca criou na Vila Marianna que Valerinho grava as suas produções.

Aos 42 anos, Valerinho é um artista do canto e da percussão. A entrevista dele para a Memória da Cultura e do Esporte e Brasília, está neste link:

https://memoriadaculturaesportebsb.com.br/index.php/2024/03/03/heranca-de-familia-valerinho-o-mestre-da-musica/

Em resumo

Aos 60 anos, Careca é um idealista com mil e uma ideias que vai executando na medida em que surgem parceiros. Na conversa, ficou claro que ele faz o que gosta e isso fica claro nas palavras dele, na despedida:

“Ao cuidar dos vinis, aprender a ouvir música e a conviver com a natureza, a minha vida melhorou muito. Estou rindo mais, que chato, né?

Quatro anos que estou aqui, não tenho TV. À noite, faço uma pequena fogueira, tomo um vinho e escuto a música da natureza: um grilo, um sapo, o córrego com a cachoeira… A música da floresta é ótima para se esquecer de tudo.

Hélio Tremendani, Sérgio Careca e José Cruz: entrevista, música e muita natureza