Por José Cruz
O goiano Adauto Cruz veio para Brasília em 1960 e aqui continua, agora contando sobre a sua façanha e abnegação para se tornar repórter fotográfico. Era a segunda vez que aqui chegava. Na primeira tentativa não teve sucesso e voltou para a sua cidade, no interior de Goiás. Há 65 anos, enfrentou os desafios de uma cidade em construção. Mas, foi batalhando e com persistência que Adauto buscou o seu espaço, até chegar aonde o seu foco sempre o norteou, a fotografia. E, assim, se revelar, literalmente, um dos craques do fotojornalismo da capital da República.
As origens
Adauto nasceu em Nerópolis, cidade a 170 Km de Goiânia, hoje com cerca de 30 mil, habitantes. Quando aqui chegou, as residências se concentravam no Núcleo Bandeirantes e alojamentos na Vila Planalto. No mais, eram obras para todos os lados, na Esplanada dos Ministérios e nas Asas Norte e Sul, principalmente, onde surgiam as superquadras.
“Eu estava ficando velho; na roça, onde eu trabalhava, não tinha muito futuro. Acreditava que numa capital teria boas chances de crescer e foi assim que decidi tentar a segunda vez em Brasília. Deu certo!”
A viagem
Na primeira tentativa de trabalho na nova capital, Adauto caminhou com três amigos por 50 km, entre Nerópolis e Aurilândia, aonde ficaram por um tempo. Trabalhou na fazenda de um candidato a vereador, mas no final de um mês ele viu que ali não teria futuro. Pé na estrada.
Quando chegou em Brasília foi logo procurar um cunhado, pois havia a promessa de que conseguiria um emprego. Surpresa! o cunhado tinha morrido. “Fui para um hotel e nem dinheiro tinha para pagar. Foi um sufoco”, recorda.
Adauto seguiu procurando o que fazer e conseguiu vaga numa pedreira, que também oferecia alimentação. Mas, quando chovia, nada de trabalho nem de alimentos. Por isso, retornou às origens, Nerópolis. Mas não por muito tempo, pois voltou para Brasília, tempos depois. Algo o atraía nessa cidade que estava nascendo.
Vida nova
“Na segunda tentativa para trabalhar em Brasília, encontrei o Dário, meu amigo das antigas, que me levou para fazer um teste num escritório. Errei nas contas, não deu certo. Depois, me ofereceram vaga de copeiro no Brasília Palace Hotel (foto), fundado em 1958, perto do Palácio da Alvorada. Logo que cheguei, a turma viu que eu era um cara grosseiro, da roça e me caçoavam, porque até as mãos eu queimava na água quente. Levei na boa, na malandragem. Logo ficaram meus amigos”
O tempo passou…
“A turma que me caçoava no restaurante do hotel conheceu o meu trabalho. Eu dava conta do que me pediam. Progredi e em cinco meses eu já era chefe de todos. Eles não sabiam que eu estava acostumado ao trabalho pesado. Naquele hotel, que foi o primeiro de Brasília, vi gente famosa , nada me assustava. Naquele hotel, vi muitos shows, como os cantores I von Cury, Cauby Peixoto, Ângela Maria, Maysa Matarazzo”.
À época, as rádios reinavam nas comunicações. Neles eram lançados os sucessos musicais e novelas que ganhavam audiência nacional. Ao lado do hotel funcionava o Casarão do Samba, ponto de encontro musical nas noites ainda de raras atrações em Brasília.
Jogada esperta
Em Brasília Adauto foi morar na Ceilândia, onde está até hoje. Com o tempo, abriu uma lojinha, a Discolândia Foto, que também operava com fotos 3×4. Foi uma jogada esperta, pois havia muita gente chegando à cidade procurando emprego. “E todos precisavam de uma foto para se apresentar nas ofertas de trabalho que tinham”, lembra Adauto.
Naquela época, Adauto já ensaiava na fotografia e fazia algumas imagens usando uma máquina Kapsa, do estilo “caixote”.
“Lembro que eu tive uma máquina fotográfica desde cedo, do tempo em que eu trabalhava na roça. Até tenho umas fotos do meu pai no meio das vacas. Sempre fui inclinado para a imagem”, afirmou.
Andanças
E foi assim, de emprego em emprego, sempre buscando a carreira de fotógrafo, que Adauto conheceu um personagem que mudaria definitivamente o seu rumo profissional.
O nome dessa personagem ele não lembra mais, mas recorda que o sujeito conhecia o Joca, no jornal Correio Braziliense, para quem escreveu um bilhete, mais ou menos assim:
“JOCA,
aí vai um amigo meu, veja o que pode fazer por ele, ele quer trabalhar no laboratório de fotografia”
“Fui ao Correio, no dia seguinte. Joca me recebeu muito bem. A vaga seria para o laboratório de revelação de fotos, que eu já havia aprendido um pouco. Ele gostou do meu teste e disse que no dia seguinte me ensinaria mais. Na outra manhã, quando retornei ao jornal, havia uma tristeza grande no ambiente. Surpreendente, o Joca, o cara que tão bem havia me recebido e acertou a vaga comigo no Correio havia morrido na madrugada. Fatalidade!”
Passados uns dias, a turma do Correio Braziliense contratou Adauto. E um dos primeiros fotógrafos com quem teve contato foi Cláudio Alves (1948-2016), que o ensinou um pouco sobre fotojornalismo.

Promoção
Com um ano de laboratório, Adauto foi promovido a repórter fotográfico do jornal. Era o dia 10 de agosto de 1973, está na lembrança desse veterano da fotogafia.
“Estou no Correio há 51 anos, mas agora de licença médica, pois tenho uns problemas de saúde, muita tontura, um ouvido apagou… Estou em tratamento com o doutor Renato, no hospital Santa Lúcia”, revela Adauto, hoje com 87 anos.
Memória
Dos tempos da fotorreportagem, Adauto destaca o “massacre no restaurante da construtora Pacheco Fernandes”, no Carnaval de 1959. Brasília ainda não tinha jornais, mas, conforme registros de pioneiros da época, soldados da Guarda Especial de Brasília (GEB) invadiram o refeitório da construtora e alvejaram dezenas de operários, que reclamavam da má qualidade dos alimentos oferecidos.

Afinal, preparava-se uma festa para a inauguração da Capital, em 1960, e um massacre com mortes de operários não era notícia para ganhar o mundo. Assim, trataram de desacreditar as versões populares e abafar o assunto. Certo é que, até hoje, não se confirmou o número de mortos naquele confronto de operários com a Guarda Especial de Brasília.
“Um delegado da Polícia Federal que eu conheci me levou ao local onde tem uma placa identificando o massacre. Eu fotografei essa placa, que fica onde hoje tem uma pracinha, na Vila Planalto”, afirmou Adauto.
“O primeiro jornal aqui inaugurado foi o Correio Braziliense, em 21 de abril de 1960, mesma data de fundação de Brasília. Na época do conflito com os operários ainda não circulavam jornais em Brasília”, disse Adauto.

Equipamentos
Nas primeiras saídas para coberturas jornalísticas, Adauto usada uma máquina Nikon (foto). Era tempo dos filmes em preto e branco de 12, 24 e 36 poses. Os fotógrafos de jornais e de revistas usavam “rolinhos” de 36 poses, pois ficavam mais tempo na máquina, não era preciso trocá-los com tanta frequência. Depois vieram outros modelos de equipamentos, como a Nikon F2 e aí a tecnologia não parou de prosperar.
“Hoje, os telefones celulares têm câmeras potentes, capazes de produzir excelente material. Porém, a grande vantagem dos fotógrafos profissionais com seus equipamentos Canon ou Nikon são as teleobjetivas, que permitem captar imagens longas trazendo para mais perto, muito utilizadas em eventos de rua ou em esportes”, ensina Adauto.
“Logo que chegaram os equipamentos digitais, comprei um e passei a trabalhar no jornal para testá-lo. O resultado foi positivo e a direção do Correio Braziliense comprou máquinas da Nikon para a equipe.
“Atualmente, enquanto estou afastado do jornal e quando preciso, uso a máquina de um telefone Sansung S4, modelo S22. Essa linha já está no modelo S24 e em breve chega o S25, que pretendo comprar”, conta Adauto.
Adauto também lembrou das coberturas jornalísticas com máquinas digitais, como Nikon D300. “Depois com as D300S, com motordrive, que permitiam fazer fotos em sequência, sem tirar o dedo do disparador”.
Adauto era fotojornalista de extremos. Tanto estava de terno e gravata como de calça jeans e camisa esporte cobrindo “uma greve, um quebra-pau”… “Cobria o que pintava”, afirma.
Lembranças
Houve uma época em que Adauto cobriu política e foi setorizado no Palácio do Planalto. Nesse tempo, paletó e gravata era obrigatórias. “Tenho fotos com os ex-presidentes Itamar Franco, Fernando Collor de Mello, José Sarney.
E foi bom cobrir política?
– Foi muito bom. Ao contrário do dia-a-dia da Redação do jornal, quando surgia uma pauta e não se sabia o que iríamos encontrar, no Palácio tínhamos o foco na política e no político”, explica ele.
“Na política é muito etiqueta, muito personagem, muito protocolo. Fica-se tentando uma boa foto, mas é tudo padronizado, são só pessoas de terno e gravata. Tem gente que não faz um só gesto para dar movimento à foto. A vantagem é que no Palácio do Planalto trabalha-se com os maiores personagens do Basil, às vezes do mundo”.
Destaque
Na rotina palaciana, Adauto captou uma imagem incomum. Numa certa sexta-feira, o então presidente Fernando Collor de Mello descia a rampa do Palácio do Planalto quando se observou movimento brusco entre os seguranças. Era um popular tentando esfaquear o presidente. Foi tudo muito rápido.
“A imagem que peguei foi do maluco sendo colocado dentro do camburão pelos seguranças. A foto ganhou destaque no dia seguinte. Afinal, era um atentado contra o presidente da República”
Em outra ocasião, Adauto pegou a imagem do tricampeão mundial de Fórmula 1, Nelson Piquet, agredindo fotógrafos. Ele estava num tribunal depondo sobre a sua separação conjugal. Ao final, quando saía, ficou nervoso e deu um soco no fotógrafo João Ramid, da Veja.
“Aquela foto repercutiu muito, pois Piquet é muito famoso, mas truculento, também”
Tristeza
Adauto revela que tem duas tristezas: a de não estar indo ao jornal para seguir fotografando, pois ainda está em tratamento de saúde, e a ausência de sua mulher, Maria Aparecida, que morreu há pouco tempo. Cabeça baixa, ele fala sobre a convivência feliz com ela e a dor que sente dessa ausência. Nessa rotina, Adauto é acompanhado pelas filhas e por amigos, ex-companheiros de redação que o visitam com frequência. Mas há uma alegria, por ele revelada, quando recebe o Correio Braziliense, diariamente. “Ainda curto muito. Ler o jornal é um prazer que dura uma vida”.
Meu Lindo!
Aos 87 anos, Adauto ainda cativa amigos. Trata a todos com atenção e leva bom papo. No Correio Braziliense, onde fez toda a sua carreira de fotógrafo, o chamavam de “Meu Lindo”. O apelido tem a seguinte origem: Adauto não lembrava o nome de tantos e tantas repórteres com quem saía para as coberturas diárias. Diz que sempre foi ruim de memória para guardar nomes. Daí passou a usar um tratamento carinhoso, “Meu Lindo” e “Minha Linda”, expressão que turma inverteu para homenageá-lo e se perpetuou.
Quem contou sobre isso foi a jornalista Conceição Freitas, numa crônica que homenageia o companheiro de jornal, quando ele completou 35 anos de profissão, em 2008. À época, Adauto estava com 70 anos e Conceição (foto abaixo) também sintetizou a carreira dele no fotojornalismo com este belo relato:
“Meu Lindo teria mais de 12 mil fotos publicadas. Mas quem é fotógrafo de jornal nunca faz menos de três pautas por dia e cada pauta rende dúzias de fotos. Portanto, Meu Lindo já deve ter feito mais de 300 mil fotos, das quais deve ter publicado não menos de 20 mil, em conta rasa. O grande barato de um fotógrafo de jornal é ter sua foto na primeira página. Pois então, morram de inveja, retratistas: Meu Lindo emplacou foto na primeira durante 29 dias subsequentes, no tempo em que Renato Riella era o editor do jornal, na década de 80. “Foi sorte, Linda. Fui empolgando, empolgando e queria conseguir os 30, mas no trinta não tive mais sorte.”
Profissional
Não foi “sorte”, não, Meu Lindo Amigo. Foi competência, profissionalismo, mesmo! Renato Riella não publicaria a foto por publicar, para te agradar. Ele era rigoroso na escolha do texto e da imagem, sabes disso. Portanto, ter faturado a capa do Correio Braziliense por 29 dias consecutivos é um prêmio sem igual. Marca difícil de ser batida, o que te torna um campeão do fotojornalismo. Muito obrigado pelo teu depoimento à Memória da Cultura e do Esporte em Brasília, que conta mais um pouco sobre os pioneiros da nossa querida Brasília.
Hélio Tremendani e José Cruz