21 de novembro de 2024

Um craque apaixonado e referência na história do futsal

Por Hélio Tremendani e José Cruz

A trajetória de Guairacá Carvão Nunes (foto), um dos maiores jogadores de futebol e futebol de salão nestes 64 anos de Brasília, não é apenas de fatos ligados ao esporte.

A origem dele está intimamente vinculada a um personagem famoso na história do Brasil, o seu pai, Janary Gentil Nunes, que foi deputado federal, o primeiro governador do então Território do Amapá, presidente da Petrobras e embaixador do Brasil na Turquia.

Nesta entrevista, Guairacá mergulha na sua história de vida, nas andanças e mudanças com a família pelo mundo, quando, mesmo convivendo entre políticos, manteve a sua fidelidade ao futebol, consagrando-se como um dos maiores craques que já desfilaram pelos campos e quadras do Distrito Federal. Com memória valiosa, ele fala, também, sobre a triste fatalidade de ter contraído meningite, o que lhe provocou a perda da visão e da audição, sem, contudo, lhe tirar a esperança e o bom humor.

Ponto de partida

Guairacá nasceu em Macapá, capital do Amapá, de frente para o Rio Amazonas. “Nasci em 1947, tenho 77 anos. O parto foi feito por meu pai, Janary Gentil Nunes, que era militar e, por influência de Getúlio Vargas, tornou-se político”.

Guairacá foi batizado com nome indígena que se originou dos guarás (foto), um pássaro vermelho. “É o significado mais puro do pássaro sagrado. Os guarás só andam em bandos. E, voando, eles são uma coisa maravilhosa”, diz Guairacá.

Guairacá era sobrinho de Coaracy Nunes, o Coarynha, que presidiu a da Confederação Brasileira de Desportos Aquáticos por longos anos.

“Coaracy fazia tudo com muito amor e se faz com amor dá certo”.

 “Louco, apaixonado”

“A minha vida é toda ligada ao futebol. Desde criança, desde pequenino, sou louco, apaixonado, tarado amante do futebol. Vou te contar mais uma paixão: fui campeão brasileiro de jogo de botão, o futebol de mesa. Veja só, um cara aos quarenta e tantos anos e já casado jogando botão…”

“Quando fui campeão, ganhei na final por 2×1 do campeão brasileiro. Foi a maior zebra do campeonato, que tinha representantes do Rio de Janeiro, de São Paulo e da Bahia. Na final, foram dois times do Rio, o Copa Tijuca, do meu adversário, e o meu Grajauense”.

“Eu tinha uma maletinha onde carregava os meus jogadores (os botões), que valiam muito dinheiro. Tinha o Didi, que era o número 8, tinha o Quarentinha, o Zagallo. Era um timaço. O Didi era o artilheiro. Na semifinal desse Brasileiro que ganhei, estava 6×1 para mim. Meu adversário perdeu o controle e jogou o Didi no chão. Foi com tanta força que o botão quebrou. Imagina a minha decepção, fiquei enfurecido”.

Futlama

Ainda hoje, o futlama é atração turística no Amazonas (foto)

No futebol, Guairacá fez de tudo, jogou bola na rua, na praça, futebol de salão, na areia e até na lama. Com lembrança emocionante sobre o passado, ele é didático na explicação:

“Quando a maré baixa há um refluxo do rio, esvazia quase um quilômetro e fica aquela lama. Era ali que eu, ainda criança, jogava e me divertia”.

O herói

Os filhos de Guairacá se chamam Pedro, Ana Morena, Alana, Ana Paula, Gian, Guilherme, Maria Antônia, que é a mais nova, e Juliana Maria. “Repara que todos tem o “an”. Minha lógica parte do nome Janary, meu pai, o herói da minha vida. Eu era apaixonado pelo som “an”, um som sagrado que sempre me soou bem, um som de muito amor”.

Elite e democracia

“Nasci na casa do governador, meu pai. No dia do meu nascimento, Juscelino Kubistchek, estava lá em Macapá, com deputados federais, visitando a Amazônia. Chegou a hora de eu nascer. Papai pediu licença para sair, porque iria fazer o parto da minha mãe. Era o terceiro parto que ele realizava. JK perguntou se ele era médico…. Não era. Ele era militar. Então, esse cara é maluco, concluiu o presidente sem saber das habilidades do amigo Janary”.

Eu era para ter sido filho da elite. Mas a importância do futebol na minha vida foi fundamental. Eu fui criado jogando bola com gente pobre, gente humilde, com moleques, meus amigos de rua, e isso mudou a minha vida. O futebol é a parte fundamental da minha vida. Através dele, me tornei autêntico povo, amante da cidadania e da democracia.

Ordem presidencial

De 1937 a 1945 vigorou a ditadura de Getúlio Vargas, conhecido por Estado Novo. O governo era centralizador e autoritário.

“Meu pai, capitão do Exército, democrata, não gostava de ditaduras. Ele tinha um currículo fantástico, era intelectual das Forças armadas e até dirigiu a revista da Escola Militar. Falavam até que ele era comunista, socialista, essas coisas, porque era contra ditaduras”.

Mas, apesar dessas suspeitas, em 1943, Janary  foi surpreendido com um convite para ser o governador nomeado do então Território do Amapá, que havia sido criado por Getúlio Vargas. A resposta ao então ministro da Guerra foi uma negativa.

“Eu agradeço a honra desse convite, mas eu não aceito. Quero continuar na minha carreira militar, decidi servir à minha pátria. Muito obrigado, mas não quero”.

Porém, a determinação presidencial continuou e Janary recebeu a seguinte ordem de Getúlio, mais ou menos nesses termos:

“Janary, deixa eu te explicar. Não se trata de um convite, é uma convocação. Eu sou o chefe das Forças Armadas, sou o presidente da nação. Você está sendo convocado para ser o governador do Amapá, não aceito a sua recusa”

Democracia, a prioridade

Diante dessa ordem, Janary assumiu o comando do Território do Amapá e começou a implantar uma democracia, cujos métodos e níveis de aprovação se espalharam pelo Brasil. O seu mandato durou 12 anos, de 1944 a 1956.

O discurso do primeiro governador daquele então território era nesses termos:

“O brasileiro é um escravo, é um pau mandado. Vou transformar o povo em cidadão”

Na verdade, eram diretrizes democráticas que confrontavam com a ditadura Vargas. Mas, os investimentos de Janary no governo tinham um tripé básico: educação, saúde e emprego. “Meu pai tinha 31 anos quando assumiu o governo. Ele era um cara culto. Desde menino aprendeu muito, foi caboclo na Amazônia, nascido e criado na floresta”.

Os feitos de Janary Nunes foram tão expressivos, quem em 1º de junho de 2012, o senador amapaense, Randolfo Rodrigues, promoveu uma sessão solene do Congresso Nacional em homenagem ao primeiro centenário de nascimento do primeiro governador do então Território. Em seu discurso, Randolfo destacou os feitos de Janary, como a construção de fazendas-modelo, centros hortigranjeiros, escolas e aeroporto.

 Na Petrobras

Em 1956, Juscelino Kubitschek assumiu a Presidência da República e por sugestão do amigo Coaracy Nunes nomeou Janary presidente da Petrobras. Nos três anos que lá ficou, investiu na pesquisa, na produção de petróleo e em recursos humanos.

Guairacá lembra daqueles tempos de garoto e faz o seguinte relato:

“Fui morar no Rio quando estava com 9 anos. Joguei futebol de rua, de praia, jogava em times, também. Jogava pelada todo dia, mas tinha um time. Fui campeão carioca infanto juvenil de futebol de Salão pelo Flamengo. Também joguei no Pracinha, que foi campeão do Rio num campeonato na praia do Botafogo”.

Humildade

“Humildemente te digo, eu não tinha noção do quanto eu jogava, mas todo mundo falava nisso, que onde eu jogasse eu dava show. Quando estava com 13 anos, eu era famoso no futebol de areia, na praia. Mas aí, o Velho Janary foi tirado da Petrobras…”

Janary saiu da presidência da Petrobras porque revelou-se um ótimo gestor e, assim, um candidato em potencial à presidência da República. Segundo o filho Guairacá, JK teria ficado “com medo dessa candidatura”. Entre os nacionalistas e desenvolvimentistas ele era o candidato ideal à presidência. E foi por isso que JK tirou Janary da Petrobras e o nomeou embaixador na Turquia.

Na Turquia

A mudança de país não tirou de Guairacá o gosto pelo futebol. Na Turquia, ele passou dois anos com a família e logo passou a jogar  peladas nas ruas de Ancara. Ele esclarece:

“A Turquia situa-se nos dois lados do estreito de Bósforo, que separa a Europa da Ásia. Assim, a Turquia fica na Ásia e Istambul, a cidade mais importante daquele país, fica na Europa”.

O primeiro campeonato “de verdade” que ele conquistou foi na escola. Eu dei um show. Quando terminou o jogo, meus colegas me levantaram e me carregaram pela rua, até a minha casa. Meu pai ficou assustado quando viu a molecada toda me carregando, mas era tudo alegria, exaltando a festa de termos sido campões escolares”.

De volta ao Rio

Nessa segunda fase no Rio de Janeiro, Guairacá manteve a rotina de ganhar títulos.  “O ser humano tá sempre se construindo e eu construí uma carreira no futebol. Os americanos chamam isso de `skill´, isto é, habilidade, talento, e era que eu tinha no futebol que jogava com muita técnica”.

Já o seu pai, Janary, candidatou-se a deputado federal, e ganhou em duas legislaturas, de 1963 a 1967 e de 1968 a 1971. A essa altura, Brasília já era a capital da República e aqui passou a ser a morada de Guairacá, onde se consagrou no futebol, no futebol de salão e é lembrado até hoje por seus contemporâneos pela arte com que praticava  esses esportes.

Revelação

Arnaldo e Guairacá, amizade que se perpetua

Quando chegou em Brasília, Guairacá tinha 16 anos. Foi estudar no colégio Elefante Branco, onde se encontrou com a turma do futebol e fez carreira vitoriosa.

Embora Guairacá seja, ainda hoje, citado ao lado de Axel como a maior dupla de futebol de salão que Brasília já teve, ele faz uma revelação:

“Axel jogava muito, mas, para mim, o maior craque que joguei e vi jogar foi o Arnaldo”. Ele se refere a Arnaldo Gomes, ex-diretor da Gráfica do Senado Federal, cuja carreira é sempre lembrada e elogiada por contemporâneos”.

Coletivo

“A história da minha vida está centrada no coletivo, tendo o futebol como exemplo. Eu não sou nada sozinho, se eu jogo futebol é coletivo, não sou nada sozinho. Eu dependo do meu time, do entrosamento do conjunto de jogadores. É diferente de ser um craque individualmente”.

Guairacá e Arnaldo Gomes se conheceram quando estudavam no Colégio Elefante Branco, uma das referências do bom ensino, logo no início de Brasília. Depois, voltaram a se encontrar em 1965, quando estudaram na Universidade de Brasília.

“Eu morava na quadra 105 Sul. Em todas as quadras havia um campo de futebol. Onde tinha pelada eu ia. No Elefante Branco, eu jogava no time dos professores, que me elogiavam:

“Guairacá dribla muito bem, chuta muito forte…” Mas isso não me deixava vaidoso, eu era humilde. Sabia que eu era craque, mas o negócio era o time, ter consciência do jogo coletivo”

Bons tempos

Guairacá participou do futebol de campo de Brasília na primeira década da capital, inaugurada em 1960. Era um tempo em que as construtoras que aqui erguiam a cidade investiam no futebol de campo, principalmente, pois era a única opção de lazer para os trabalhadores e para o público que gostava de esporte.

“Joguei em Brasília nos anos 1960, o futebol aqui era muito forte. Mas, o profissionalismo murchou depois que a Rabello, o Defelê e outras construtoras deixaram de investir. Acabou o dinheiro, não contratavam mais jogadores, de fora, principalmene. O melhor tempo do futebol de Brasília foi, de fato, nos anos 1960, diz Guairacá.

Ele ainda era juvenil, aspirante a profissional, e já ouvia falar maravilhas de Arnaldo Gomes e no Otávio que, diziam os mais velhos, eram ótimos jogadores… A amizade que Guairacá e Arnaldo fizeram em quadra dura até hoje.

No futebol de campo, Guairacá começou pelo time juvenil do Defelê, que se sagrou tricampeão da cidade. Porém, ele participou do time que ganhou os dois últimos títulos.  Nessa época, começou a observar o desempenho de Arnaldo e sonhava: “Um dia, vou ser como ele”.

Na Caixa

Com Guairacá contratado, o time da Caixa começou a ganhar, e o craque ganhou mais fama, pelos dribles, principalmente. O penúltimo jogo de um campeonato que ele disputou foi contra a Civilsan, uma empresa construtora que foi derrotada por 4×1. O jogo foi onde hoje está a faculdade Unieuro, na L4 Sul.

Gol na raça

“Era um campo espetacular, de barro, mas se jogava de chuteira”, recorda sobre as condições do futebol daquele tempo.

“Naquela época não tinha alambrado. Era um monte de gente cercando o campo. Axel estava naquele jogo. Eu estava levando muita porrada do lateral esquerdo do Civilsan. Aí, me agachei e peguei uma boa quantidade de areia que guardei na mão, fechada. Para mim futebol era arte, não briga entre adversários.  Axel me fez um lançamento e disparei pela ponta direita indo em direção à entrada da área pela diagonal. O cara veio feito um louco, ia me arrebentar. Foi aí que usei a areia que guardava na mão. Quando ele se aproximou, soltei a mão na cara dele, acertou o olho em cheio. Ele foi surpreendido e parou de me perseguir. Entrei na área, driblei o goleiro e fiz o terceiro gol”.

No final, inconformados com a derrota por 4×1, adversários partiram para a briga. A torcida engrossou e entrou em campo, o principal alvo era Guairacá. Foi uma coisa muito feia!

“Eu corria muito, mas não podia cair. Fui em direção ao Buglê, irmão daquele Buglê que fez o primeiro gol no estádio Mineirão. Era um cara forte que escorou os caras e me salvou. No final, fomos uns oito para o hospital. Eu cheguei no Hospital Distrital – hoje Hospital de Base – carregado numa maca”

Chuteiras

“Jogava-se com chuteiras Gaeta, pretas, e se ajustava a trava, alta para jogar em gramado, trava baixíssima se fosse de areia ou de barro”, recorda Guairacá.

Depois da campanha do tricampeonato pelo Defelê, Guairacá passou a ser profissional e foi jogar no Clube de Regatas do Guará. “O Rui Rosa do Nascimento, que era ligado ao Departamento de Força e Luz, o Defelê, fez uma verdadeira seleção, desde o goleiro. Teve jogadores que vieram do Pederneiras, do Sobradinho e do próprio Defelê. Tinha o Zezé, do Rabelo, e o Manoelzinho, pontas de lança. Tinha, também, o Sabarazinho, o Beto Preti, um beque espetacular.

O drible

Quando era criança, Guairacá não tinha o poder de driblar. Isso veio com muito treino. Mas era bom para fazer gols. Na primeira vez que jogou futebol de campo, ele foi escalado na lateral direita. Mesmo nessa posição, participou de cinco gols marcados pelo seu time. Guairacá explica:

“O drible você constrói. Comecei a treinar dribles como o Garrincha fazia, partindo para cima do zagueiro. Cada novo drible que eu dava tinha sido criado, eu tinha treinado antes. Garrincha, Júlio César, do Flamengo, Mário Sérgio…, que morreu no acidente da Chapecoense, em 2016… eu adorava vendo eles jogarem. Mas, não gostava de ponta que tinha velocidade e não sabia cruzar nem finalizar. Eu dava um show no lateral esquerdo do Rabelo, eu era inquieto, corria o campo todo”.

Com Arnaldo

Ter jogado com o Velho Arnaldo – expressão provocativa de Guairacá para com o amigo – me traz boas lembranças do veterano craque. Certa vez, o Rabello ganhava do nosso time por 1×0. Atacamos e empatamos. O Rabello reagiu e fez o segundo gol, 2×1 para ele. Aí, eu peguei uma bola e saí driblando meio mundo. Entrei na área, me derrubaram. Pênalti! Gol nosso! Quem bateu o pênalti? O “Velho” Arnaldo. No ano em que fui campeão pelo Defelê, joguei alguns jogos pela Vila Nova de Goiás. Mas, sofri uma punição e a Confederação Brasileira de Desportos (CBD, hoje CBF) que me suspendeu por um ano, devido a problemas burocráticos de meu registro. Porém, o advogado Jadel Noronha conseguiu derrubar a minha punição”.

Futebol de salão

“Tenho que reconhecer, fui um cracaço no futebol de campo. Mas me avaliavam mais no futebol de salão, porque os times em que joguei sempre tinha ginásio lotado. Fui dez vezes campeão de Brasília e artilheiro em seis desses campeonatos. Era muito bom, eu jogava tudo: salão, campo, pelada, o Campeonato da Asa Norte. Num        domingo à tarde, joguei uma partida no campo do Defelê (Vila Planalto). Quando o jogo terminou, eu peguei o meu carro e saí voando e ainda consegui jogar o segundo tempo num time que disputava o Campeonato da Asa Norte”…

“Jogando bola, nunca me senti cansado”

EM 1965, quando tinha 18 anos, Guairacá estudava na Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais da UnB, fazia o Curso de Direito. E jogou pela Faunb (Federação Acadêmica da Universidade de Brasília). Depois, a Faunb foi proibida de disputar competições oficiais porque era uma “Federação”. Foi quando Arnaldo Gomes articulou com a direção do Minas Brasília Tênis Clube e levou todo o time para lá. E foi esse time que conquistou o pentacampeonato da cidade. Guairacá ainda jogou pelo Iate Clube, ganhando mais três títulos citadinos.

O melhor time

Na avaliação do entrevistado, o melhor time de futebol de salão de Brasília de todos os tempos foi o que teve Waltinho no gol; Axel, Arnaldo, Otávio e Guaracá, isso no final de 1970 e 1971.

Time da Faunb, 1965/66. Foto publicada na imprensa brasiliense
EM PÉ: ….., Axel, Arnaldo, Paulinho e Cleber Soares (técnico);
AGACHADOS: Massagista, Padre Neco (fisioterapeuta), Sugai e Guaracá

“Waltinho (que não aparece na foto) foi um grande goleiro. Tinha o melhor lançamento entre todos. Era espetacular, a bola chegava em mim, mais dois toques e saía o gol. O outro goleiro era Alcides Lima, o “Mão de Gato”, que depois foi eleito deputado federal. Em 1972, Arnaldo saiu desse time porque assumiu a direção da Gráfica do Senado, que exigia trabalho dele em tempo integral”.

Axel e Arnaldo

Todo mundo fala maravilhas do Axel, uma lenda, um zagueiro fantástico. Axel armava como ninguém e fazia passes preciosos. Mas, quem segurava o sistema defensivo é esse velho aqui do meu lado, o último homem, o cara que defendia e ainda fazia gol, que dava segurança no sistema defensivo, Arnaldo Gomes.

Substituição

“Para o lugar do Arnaldo várias tentativas foram feitas. Era impossível substituir, ele era craque. Mas tivemos grandes jogadores, como o Tito, que foi da Seleção Paulista, veio com o irmão Cidão. Eles foram empregados no Defer. Tito pegava a bola atrás e enfiava pra mim, lá na frente. Eu era pivô, o último homem; eu pisava na bola e não deixava ninguém pegar. Tito chegava livre, chutava e fazia o gol. Depois, entrou o Walmir “Belas Coxas”, foi quem fez o gol na vitória de 1×0 sobre o Palmeiras, aqui em Brasília”.

Depoimento

Hélio Tremendani (na foto, à esquerda, com Guairacá), que acompanhou toda essa fase histórica do esporte, enquanto Brasília crescia, presta depoimento sobre Guairacá.

“Quando Guairacá encerrou a sua carreira de atleta federado, passou a disputar o Torneio da Aruc, vestindo a camisa do Carioca, time de craques que marcou época em Brasília. Num jogo que eu estava apitando, a arquibancada da Aruc estava lotada. Quando o Carioca jogava era sempre assim. Num certo momento, ele recebeu a bola no fundo da quadra. Dois ou três adversários correram para cercar Guairacá, que dá um toque sutil com a ponta do tênis e a bola entra no ângulo. Ninguém acreditava, um gol incrível. Eu não estava acreditando que a bola tinha entrado. Mas, como ninguém do time adversário reclamou – alguns até aplaudiram – eu validei aquele golaço.

Em outra ocasião, o Axel, da área dele, enfia um passe certeiro para o Guaracá, já próximo da área adversária. Ele pegou a bola, fugiu de uma falta e ainda deu um toque sutil sobre o goleiro, marcando mais um golaço. O ginásio veio abaixo”.

Segredo

“Foi o gol do 2×1 contra a Seleção Brasileira. Axel lançou, eu era o último homem. O goleiro da Seleção era o Plácido. Era matar, pisar e chutar. Mas, na hora que fui matar, matei errado, a bola subiu e eu vejo o Plácido vir como um tarado pra me arrastar. Resolvo dar um chutão, mas o chute pega mal no meu pé e a bola sobe, pega um efeito. Eu consigo pular fora da marcação do Plácido e escapei de minha perna ter sido quebrada … A bola fez um círculo e entrou. Foi um dos maiores gols que fiz, contra a Seleção, no Ginásio Nilson Nelson. Ninguém ficou sabendo que aquela pintura de gol saiu apesar de eu ter matado e chutado errado…”

Momento muito triste

“Em 2016 eu estava muito bem de saúde, tinha 69 anos e disputava o campeonato de veteranos do Minas Tênis Clube. Naquele ano, Ila, minha esposa, contraiu um câncer. Eu estava indignado com aquela realidade, pois ela tinha 47 anos… De carro, eu a levava para tratamento no Hospital Universitário, na Asa Norte. Numa dessas sessões, eu estava lendo um livro na sala de espera, quando tive um desmaio. Tentaram me reanimar, mas eu não reagia. Fui internado no Hospital de Taguatinga, onde saiu o diagnóstico: eu havia contraído uma meningite que atingiu o nervo óptico me provocando cegueira no olho esquerdo. Desse lado também perdi a audição. Fiquei em coma por trinta e poucos dias… Passei um mês em tratamento no Hospital Sarah Kubitscheck. Nesse tempo, morre a minha esposa… era só tristeza. Fui ao Hospital de Olhos e, certo dia, uma médica me falou: `Guairacá, vou lhe dar uma notícia, essa esperança de recuperar a visão você pode descartar, você não conseguirá enxergar de novo´. Minha reação foi indignada:

– A Senhora está enganada. Enquanto eu tiver vivo, nada em mim estará morto. Veja se consegue entender. Nada em mim está morto! Era primeiro de outubro de 2015. Ila morreu em janeiro do ano seguinte. Passam quase nove anos e se eu te contar que já consigo enxergar a tua sombra? … de alguma forma já recuperei um pouco a visibilidade do olho direito e o ouvido direito continua bom.

Livros

Com o auxílio da tecnologia para pessoas cegas, Guairacá ouve a média de oito livros por mês: romances, ensaios, filosóficos, biografias. “Li o livro do Casagrande, um espetáculo”, afirma. Além disso, ele também escreve os seus livros. Para isso, liga para uma assistente, professora de educação física, e dita o conteúdo, cabendo a ela ordenar o texto final.

“Se não fizer as coisas com amor… tá perdido. E tem que acreditar no que está fazendo”

 A entrevista

A entrevista de Guairacá à Memória da Cultura e do Esporte em Brasília foi realizada na casa de Arnaldo Gomes, personagem desta reportagem, amigo de Guairacá. A conversa durou quase três horas, com um intervalo para o café, gentilmente oferecido pelo anfitrião. Nesse tempo, Guairacá falou direto, como se fosse um grande depoimento, demonstrando memória incrível e sem esconder a saudade daqueles tempos, mas insistindo, sempre, que é preciso amor no agir das pessoas”.

Da esquerda para a direita:

Hélio Tremendani, Guairacá, Pedro (filho de Guairacá) e Arnaldo Gomes, o anfitrião para a entrevista e apoiador deste portal