Por José Cruz
Prematura, nasceu pequena, muito pequena. “Cabia numa caixa de sapatos. Não imaginava que iria sobreviver”, disse-lhe a mãe Maria, certa vez.
Em 1982, quando completou um aninho, Shirlene Coelho foi identificada com paralisia cerebral, que lhe atingiu o lado esquerdo; o pezinho era virado para dentro e a mãozinha não abria totalmente.
Pois, essa garotinha, frágil na sua origem e que nasceu apenas sob os cuidados de uma parteira, cresceu e se fortaleceu, revelando-se uma gigante do paradesporto mundial.
Shirlene Coelho, 43 anos, tem histórico de competidora vitoriosa: conquistou medalhas e registrou recordes mundiais, ganhou campeonatos internacionais, Paralimpíadas e Jogos Parapan-americanos. A sua trajetória foi fantástica!
Que história!
Quando completou um aninho, Shirlene precisou de tratamento de saúde. Os seus pais, Maria e Dagmar, saíram da pequena Corumbá de Goiás, onde ela nasceu, e vieram para Brasília. Atendida em hospital de referência, o Sarah Kubitscheck, ela reagiu bem aos cuidados médicos. Shirlene cresceu, estudou e concluiu o ensino médio, em 2005.
Crescendo, Shirlene se divertia com os dois irmãos, jogando futebol e basquete, na escola e na rua onde morava, em Samambaia, no Distrito Federal. Mas, Shirlene queria trabalhar.
Alertada por sua mãe, Maria, Shirlene entregou o seu currículo no CETEFE – Centro de Treinamento de Educação Física Especial, em Brasília, que intermediava vagas para pessoas com alguma deficiência.
“Quando entreguei o meu currículo para o professor Manoel Ramos ele observou o meu perfil e apostou que eu tinha potencial para ser paratleta. E me chamou para um teste de atletismo. Para mim, atletismo era só corrida, coisa que não sabia fazer devido minhas limitações”, contou Shirlene, referindo-se à paralisia cerebral, que impedia movimentos totais do braço e da perna esquerdas.
O teste perfeito
No campo de testes, Shirlene foi desafiada a lançar um disco. Quando segurou aquela peça, até então totalmente estranha para ela, o encaixe foi perfeito. Foi como uma “pegada” de atleta profissional. Seguiu-se o lançamento, com força, o que animou o Professor Manoel a investir naquela garota, então com 25 anos.
A parte de treinamentos estava sendo acertada quando a empresa para a qual havia sido indicada, abriu falência. Mesmo assim, Shirlene continuou treinando e, em seguida surgiu nova proposta de emprego, na Spot, que atua na área de terceirização de serviços e recursos humanos.
“A nova empresa me incentivava na prática do paradesporto e até me liberava mais cedo para eu poder treinar”
Ao mesmo tempo, o professor Ulisses de Araújo, um dos fundadores do Cetefe e especialista em esportes paralímpicos, convidou Shirlene para um teste no time de basquete em cadeira de rodas. Não foi legal. A deficiência no braço impedia que ela conduzisse a cadeira e fizesse os lançamentos da bola e, por isso, a proposta para essa modalidade foi abandonada.
Com isso, Shirlene passou a ter tempo para investir no lançamento do dardo e do disco e no arremesso de peso.
Era o ano de 2006 e com poucos meses de treinamentos o seu técnico, Professor Manoel, a inscreveu numa competição em Uberlândia (MG), nas provas de dardo, disco e peso. “Na prova de dardo você vai para brincar”, disse Manoel, já que ela não tinha treinamento suficiente.
“Eu treinei pouco com o dardo. E foi com um dardo de bambu, nem oficial era”, recorda Shirlene, que viajou para Uberlândia já patrocinada pela Spot.
Sem dúvidas, foi uma bela aposta da empresa, pois o resultado dessa competição surpreendeu: Shirlene ganhou as três provas e, justamente no dardo, lançado a 23 metros, ela superou o recorde mundial à época, que era de 19 metros. Uma atleta de ponta estava surgindo para brilhar no universo paralímpico.
“Imagina, logo na minha primeira competição bater um recorde mundial”!
“Houve uma alegria muito grande de todos os colegas de trabalho e a direção da Spot passou a pagar as despesas de todas as viagens, inclusive as do meu técnico, Manoel. Na prática, a brincadeira começou a ficar séria. Vieram novas competições e a cada uma eu melhorava as marcas e batia novos recordes”, lembra ela.
Ouro e recorde mundial
Em decorrência desse desempenho, Shirlene disputou etapas e se classificou para o seu primeiro grande evento internacional, os Jogos Parapan-americanos do Rio de Janeiro, em 2007. A aposta de Manoel estava confirmando o acerto da escolha.
Foi em 19 de agosto de 2007, que Shirlene conquistou a sua primeira medalha de ouro paralímpica em Jogos Parapan-americanos, acompanhado de recorde mundial.
No evento do Rio de Janeiro, ela marcou 27m59 no lançamento do dardo, categoria F37. Perla Muñoz, da Argentina, ficou com a prata (19m08) e a brasileira Rosenei Herrera foi bronze, com 14m35.
Carreira
Com apenas um ano e sete meses de treinamento, Shirlene estava com a sua carreira paralímpica fortemente encaminhada. Já recebia apoio do programa Caixa de Atletismo, entrou para o Bolsa Atleta do Governo Federal e a empresa onde trabalhava a dispensou para que pudesse treinar, viajar e competir. E assim foi até 2010, quando se afastou de vez da Spot. “Me pagaram tudo com se eu tivesse trabalhado. Foi um ótimo incentivo que recebi. Foram parceiros, eles vibravam comigo e agradeço por tudo isso até hoje”.
Afinal, o atletismo transformou-se em trabalho remunerado?
“Com certeza. A cada treino, a cada competição eu saia de casa para trabalhar. Eu estava sendo remunerada por isso”
Novo técnico
Quando retornou do Parapan do Rio de Janeiro, o técnico Manoel foi dispensado pelo Cetefe. E foi o próprio Manoel que indicou o professor Domingos Antônio Camargo Guimarães, Mingo para os íntimos, que já treinava outro atleta que tinha a mesma deficiência de Shirlene.
Quando encontrou Mingo e acertou os treinamentos, a primeira pergunta foi: “Quanto você vai me cobrar pelos treinamentos”? – indagou Shirlene. A resposta a surpreendeu:
– Nada! Não cobro nada de ninguém! – respondeu Mingo.
Os dois trabalham juntos há 17 anos e foi sob a orientação de Mingo que Shirlene chegou ao ouro paralímpico.
Mas, havia uma cobrança sim, porém de comportamento para a atleta e que ela nunca esqueceu:
“Mingo me disse que, ao passar os treinamentos, nunca queria ouvir as expressões, não consigo ou não dou conta. Era preciso tentar, antes de tudo”.
Mudança de estilo
Por conta disso, Shirlene foi modificando os seus movimentos e avançando nos resultados.
“Deficiente tem muito desse negócio de colocar limitações por conta do problema e acha que ali acabou, não pode ir adiante. Se faz isso, acaba não tendo mais para onde ir, fica com preguiça, se acomoda e não evolui”, repetiu Shirlene.
O resultado é que a atleta se surpreende ainda hoje, por exemplo, com a corrida que desenvolve para lançar o dardo, o que não fazia até então. O lançamento era em posição parada, sem a tradicional corrida para embalar e ganhar força e ritmo no lançamento do aparelho.
A primeira queda
“Mingo mudou isso em mim. Da mesma forma passei a girar o corpo para lançar o disco. Lembro que na primeira vez que fiz isso, caí. Ele pensou que eu não voltaria nunca mais para treinar. Mas, no dia seguinte eu estava lá. Rimos muito do acontecido e recomeçamos. Não caí mais, dei continuidade, ganhei confiança e avancei nos resultados.
Para se manter atualizada na parte técnica, Shirlene sempre ligava para o técnico quando viajava. Ao final de cada competição, ela transmitia para ele sobre o seu desempenho e ficava atenta às orientações.
“Eu tinha o Mingo aqui na cabeça, sempre lembrando do que ele me falava, de um posicionamento, faz assim, corrige a perna, o braço…”
Paralimpíadas
Vieram os grandes eventos. Em Jogos Paralímpicos, Shirlene coleciona quatro medalhas em três competições, sempre disputando na classe F37 (paralisia cerebral): no lançamento de dardo, ela ganhou a medalha de prata nos Jogos de Pequim, 2008 (com recorde mundial), e ouro, em Londres, 2012. Nessa prova na capital inglesa, ela bateu o recorde mundial, logo na primeira das cinco tentativas, quando lançou o dardo a 36,86m.
“Pequim foi a minha estreia em grandes provas fora do país. Eu não tinha noção do que faria lá. Fui para uma festa internacional. Eu tinha 27 anos e apenas dois anos de treinos e competições nacionais. Voltei com prata e recorde mundial”
No Rio de Janeiro
Já nos Jogos Paralímpicos do Rio de Janeiro, Shirlene teve tripla premiação pois além dos dois pódios conquistados ela foi honrada para desfilar com a Bandeira Nacional, na abertura da competição, um prêmio extra para a paratleta.
No campo de provas, ela ganhou a medalha de ouro no lançamento do dardo com a marca de 37,57m, sagrando-se bicampeã paralímpica.
No mesmo evento, ela também ganhou a medalha de prata no lançamento de disco, encerrando a série de pódios paralímpicos, até aqui com quatro valiosas conquistas e recorde.
Antidoping
Assim como nos olímpicos, os atletas paralímpicos passam por exames antidoping. Inclusive, para poder ter validada uma nova marca no lançamento der dardo (quando marcou 33m), que fez em Uberlândia (MG), Shirlene precisou viajar a São Paulo para o exame de urina, pois a organização não havia providenciado os kits para testar os paratletas.
“Os testes antidoping são comuns na vida do atleta. Inclusive os fora de competição. Só na minha casa, as agentes me visitaram três vezes, de surpresa. Chegam sem aviso com o kit e colhem a urina para examinar”, contou Shirlene.
Sem torcida
Shirlene tem uma característica que conserva desde o início da carreira: não acompanha a prova das adversárias.
“Nunca acompanhei o desempenho das adversárias na pista de competição. Também não vejo o resultado que fizeram. Enquanto elas estão na pista eu fico de fora, aquecendo, me concentrando e esperando a minha vez. Sempre fui assim. Fico atenta naquilo que vou fazer. Sou eu, a minha prova e o meu resultado. O que está em volta não dou atenção”.
Mundial
Além das Paralimpíadas, Shirlene disputou dois Campeonatos Mundiais de Atletismo, eventos que ocorrem a cada dois anos: em 2009, na Nova Zelândia, e 2011 em Lion (França). Além disso, participou de um evento na Tunísia, em 2013.
Na competição da Nova Zelândia, retornou com a medalha de ouro no lançamento do dardo, prata no disco e um quarto lugar no arremesso de peso.
Já em Lion, ela foi medalha de ouro no lançamento de dardo, com 35m (recorde mundial) e prata no lançamento de disco, e um quarto lugar no arremesso de peso.
Aprendizados
Shirlene diz que o Professor Mingo tem uma explicação para esse seu desempenho no esporte. É o seguinte:
“Eu sempre fui uma menina muito ativa. Meus pais não me limitavam, me deixavam brincar à vontade. Eu era a única filha mulher, com dois irmãos e eu procurava fazer o que eles faziam. Além disso, os exercícios no meu tratamento, quando estive no Hospital Sarah, foram importantes. Tudo isso me ajudou muito no desempenho no esporte”.
Desacelerando
Depois dos resultados nos Jogos Parapan-americanos do Rio de Janeiro, Shirlene não parou, apenas desacelerou. Quer ficar mais próximo da família e concluir a faculdade de Educação Física. Mas, sem tirar o olho dos treinos e, claro, das competições.
Casada com Jesse Watson, Shirlene tem dois filhos, Benjamim, com 5 anos, e Elise, com 3. Estudou até o sexto semestre do curso de Educação Física na Universidade Católica. Fora de competições, ela perdeu os benefícios da Bolsa Atleta e dos patrocínios e, em decorrência, suspendeu os estudos, cujas mensalidades são caríssimas.
Filiada à Associação Paradesportiva de Atletismo (APA), de Pernambuco, Shirlene está voltando aos poucos à sua forma.
Depois de quase sete anos parada está em fase de readaptação, com o Professor Mingo, claro. Reconhece que se tornou sedentária, o peso aumentou e o corpo já não responde como antes. Mas, está voltando, garante. Para isso, faz academia e treino de campo três vezes por semana.
“Tenho esperanças de voltar a competir no dardo, que é a minha prova. Atualmente, tenho marcas para ter resultado num Jogos Parapanamericanos, mas Olimpíadas ainda não”.
Shirlene voltando à forma? Competitiva? Alguém duvida? Ela já mostrou do que é capaz. E, com os seus resultados, entrou para a história do esporte paralímpico brasileiro e mundial