23 de novembro de 2024

A PEQUENA NOTÁVEL

Por Hélio Tremendani e José Cruz

Goleira de 1,59m relembra a façanha do time de futsal feminino da ARUC, o único de Brasília a se tornar campeão brasileiro.

Trinta e quatro anos depois de um memorável título de campeã, Regina Célia, que fez a diferença na competição, conta detalhes da campanha e diz que era apenas “uma atleta esforçadinha”. Mas, tinha um detalhe: “No gol eu me soltava”.

Regina Célia em visita à ARUC, revendo a histórica taça de campeã brasileira

O Campeonato Brasileiro de Futsal Feminino de 1990 foi realizado em Mairinque, a 70km da capital, São Paulo. No jogo final, as meninas da ARUC enfrentaram o Saad, de São Paulo – um dos gigantes no futsal feminino, ao lado do Radar.

Depois de 4×4 no tempo regulamentar, a brasiliense Regina Célia defendeu o pênalti decisivo e garantiu o título invicto à tradicional agremiação do Cruzeiro.

Sob a orientação do técnico Jorge Wanderley, o time base da decisão jogou com: Regina Célia; Erivanda e Jane; Vânia e Ana Lúcia

DA ESQUERDA PARA A DIREITA

EM PÉ: Mário Nishimori (Prefeitura de Mairinque), Romualdo, Iara, Ana Lúcia, Erivanda, Irene, Regina e Hélio Tremendani;

AGACHADAS: Vânia, Lilian, Jorge Wanderlei (técnico), Ray, Jane e Mônica Gardez

A decisão

“O jogo do título foi o mais emocionante que disputei. O Saad tinha uma menina de 1,80m que tinha um chute fortíssimo, potente, mesmo”! – lembra Regina.

Na decisão por pênaltis, Hélio Tremendani, da direção da ARUC, sentiu o perigo, pois conhecia a ousadia de Regina e tinha certeza de que ela iria se jogar para tentar defender. Estava tão temeroso que pediu para o serviço paramédico ficar de prontidão, próximo trave onde a goleira atuava.

No decorrer do jogo, Regina já havia defendido um pênalti dessa jogadora, “com chute de homem”, como definiu Hélio. Na decisão, ela repetiu o petardo, mas a “pequena giganta” caiu abraçada à bola impedindo o gol e garantindo o inédito título para a Capital da  República.

A pancada do chute deixou marca na altura do abdômen de Regina, que levantou cambaleante, enquanto o ginásio vinha abaixo e boa parte da torcida invadia a quadra

Os paramédicos sugeriram levar a goleira ao hospital para exames. Ela concordou, mas quando viu o pódio sendo preparado, mudou de ideia, ficou para a premiação. “A taça primeiro, depois vou ao hospital”, disse ela. Ao final, a emoção superou o susto e Regina dispensou os serviços médicos.

“Na verdade, na defesa do pênalti eu bati com a cabeça na trave. Ficou tudo escuro, mas logo passou. A torcida desceu das arquibancadas para a quadra e festejamos todos. Depois, mais tarde, vi que o meu corpo estava cheio de hematomas”.

A estratégia

A campanha desse título nacional invicto, com cinco vitórias, começou com uma estratégia fora das quatro linhas. A competição tinha times fortíssimos, entre eles o Saad, de São Paulo, favorito disparado. Jogando “em casa”, ainda havia a torcida da acolhedora cidade de Mairinque – hoje com 50 mil habitantes –,  apoiadora dos times paulistas.

Era preciso conquistar as crianças, imaginou Helio Tremendani, para que a Aruc tivesse alguma torcida. E Regina, por sua baixa estatura e jogando no gol, com seu espírito alegre e sorridente, mas de séria liderança, tinha o perfil para essa tarefa.

Além disso, crescia o desempenho dela ao longo da competição, de tal forma que chamava a atenção da criançada, principalmente, que começou a torcer para aquela, até então, desconhecida goleira baixinha.

Resultado da estratégia: na partida final, a ARUC tinha a maioria do estádio, lotado com 2.800 pessoas, torcendo a seu favor.

“Numa cidade pequena, a estratégia de conquistar as crianças deu certo. Conversa daqui, abraça dali e foi assim que até almocei na casa de uma delas, inclusive, comendo num prato plástico, como ela”, conta Regina, revelando a forma como conquistou boa parte da criançada de Mairinque.

Apoio

“Sempre fui a goleira mais baixa do Brasil, mas com boa impulsão. O tamanho não me intimidava”, diz Regina, de fala modesta, mas sem esconder o orgulho de sua vitoriosa carreira.

Regina foi parar no gol porque, confessa, “eu era muito ruim na linha”. Apaixonada por esportes – faz mergulho, ainda hoje – ela achava uma “beleza” a goleira distribuir o jogo e antecipar uma jogada de ataque que poderia terminar em gol.

“Quero fazer isso, também”, repetia, ainda no início da carreira, sobre iniciar uma jogada de ataque. E fez, com o auxílio do então namorado, Marco Antônio Calaça, que foi um excelente goleiro e incentivava a namorada a crescer no esporte.

“Ele me ensinou a ser goleira. Fui melhorada quando cheguei à Aruc, em 1987”.

Treinos

Na ARUC, Regina passava por treinamentos de até três horas, com quatro “feras” do chute exigindo desempenho máximo dela sob a trave: Hélio Tremendani, Jorge Wanderley, Kleber Duarte e Márcio Careca se revezavam nos chutes, com Regina se desdobrando em atenção para tentar defender e, assim,  aprimorar a sua forma técnica.

“Eles chutavam forte, pra valer! Treinar cansava, mas era prazeroso”, diz ela, que em cada sessão ganhava em reflexo, reação, explosão e agilidade”

Destaque

O desempenho de Regina no gol começou a chamar atenção quatro anos antes, no 1º Campeonato Brasileiro de Futsal feminino, disputado em Petrópolis (RJ), em setembro de 1986.

Naquele ano, a ARUC não tinha um time forte para disputar tal competição e fez uma parceria com o Motonáutica, tendo Hélio Gomes Ferreira como técnico.

“Com pouca experiência em eventos nacionais e sem tempo para treinar, o time de Brasília perdeu os três jogos da fase preliminar, mas por resultados curtos. E foi aí que Regina começou a se destacar no gol. O grande mérito dela, além de agarrar bem, era a leitura do jogo. Ela sabia o quanto poderia arriscar. Assim, ela foi convidada e aceitou atuar pela Aruc”, conta Hélio, dirigente do tradicional clube do Cruzeiro. De 1984 a 1986 Regina defendeu o Minas Brasília Tênis Clube.

Campeoníssima

Nessa época, a Aruc tinha bons patrocinadores e disputava todas as competições oficiais, além de incentivar a criação de outras equipes para fortalecer os eventos locais, principalmente.

“A ARUC era o time a ser derrotado. Em dez anos consecutivos ganhamos todos os campeonatos que disputamos. A cada início de temporada dava um frio na barriga quando pensávamos: será que este ano vamos ganhar de novo”? recorda Regina.

O começo

A agilidade e o desempenho geral de Regina Célia da Silva Vieira jogando no gol de times de futsal deve-se, também, a um bom aprendizado que teve no handebol, desde os 14 anos, ainda na escola.

“Joguei muito handebol, esse esporte foi o ponto de partida. Primeiro na escola e, depois, na Ascade (Associação dos Servidores da Câmara dos Deputados). Saía de um jogo e ia para outro”, reforça Regina. Essa frequência de atuações contribuía para que ela crescesse na modalidade.

Mais tarde, quando chegou ao futsal, pode avaliar a importância do que havia feito até então: “Para mim, que vim do handebol, era fichinha defender no futsal, pois a bola que eu treinava, antes, – medicine ball – era muito mais pesada do que a do futsal”.

As bolas de medicine ball que Regina usava em treinamentos são destonadas a treinos de pilates e yoga, projetadas para melhorar a força, a resistência e a coordenação do corpo. Podem pesar até 6kg.

Liderança

Helio Tremendani, um carioca intimamente vinculado ao esporte e à cultura de Brasília há seis décadas, conviveu com parte da carreira de Regina, no futsal. Quando foi jogar na Aruc, ela foi designada capitã da equipe e assumiu a liderança do grupo.

“Os problemas das atletas passam pela Regina, antes de chegarem à direção do clube”, afirmou Hélio sobre a norma de então. E, assim, aplicando nas rotinas com as atletas as suas vivências de servidora pública e a experiência de professora e coordenadora, Regina liderou o grupo de forma harmoniosa, antes de tudo.

“Em casa também é assim. Até digo que não tenho uma casa tenho um lar. Meus filhos vivem em harmonia”, orgulha-se.

Mas… “Não sou tão boazinha… sei ouvir, ponderar e até voltar atrás, não tenho problema quanto a isso. Porém, tenho voz ativa”!

Atenção

Certa vez, o jogo dessa goleira chamou a atenção de um dirigente do Ceub, que logo lhe ofereceu uma bolsa de estudos, para quando fizesse vestibular, no tempo em que essa universidade investia em equipes esportivas. Regina, que já estudava o idioma Inglês, optou pelo curso de Letras. E, a formação que se daria em quatro anos acabou sendo em apenas três, pois ela antecipava disciplinas para ganhar tempo.

Depois de formada, Regina cursou Direito e seguiu estudando, pois isso era um incentivo: se parasse, a atuação como atleta universitária estaria encerrada, justamente o que ela não queria.

Assim, para não ficar fora dos Jogos Universitários (JUBs), Regina foi se pós-graduar em Moderna Literatura Brasileira e, posteriormente, mais uma pós, em Direito Público. Foi dessa forma, estudando, que ela seguiu em quadra, a sua paixão.

“Os Jogos Universitários de 1985 foram em Goiânia e eu fui a primeira goleira a fazer um gol nessa competição, batendo uma falta”, recorda.

“Coisa de homem”

Para jogar e crescer no esporte, Regina enfrentou oposições. Inicialmente em casa. Seu pai não a proibia de jogar, mas era frontalmente contrário às mulheres que praticavam o futebol, de salão, que seja.

É oportuno lembra que quando Regina começou a se interessar por esportes já estava superada a repressão esportiva imposta às mulheres pelo ex-presidente Getúlio Vargas.

Em 14 de abril de 1941, na ditadura do Estado Novo (1937-1945), Getúlio Vargas assinou o Decreto-Lei nº 3199, que em seu artigo 54 tirava das mulheres o direito de praticar esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza” – aí, incluindo-se o futebol, o boxe e o remo.

Para essa decisão, o então presidente tomou como referência, entre outras, uma tese biomédica, que considerava as mulheres mais frágeis e, por isso, sua “integridade física deveria ser protegida”, segundo escreveu a pesquisadora Silvana Goellner, do curso de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Com o tempo a situação mudou e em 1979 o artigo 54 foi revogado. Ou seja, o time da ARUC sagrou-se campeão brasileiro somente 11 anos após a revogação da esdrúxula medida autoritária.

Trabalhadora

O futsal não ocupava tempo integral de Regina. Ao contrário, a prática desse esporte ocorria nas horas de folga, pois o trabalho era prioridade. Perto de completar 60 anos, ela se orgulha: “Trabalho desde os 18 anos. Dei aulas no Colégio Inei quando eu tinha 22 anos”.

Nessa ocasião, Regina já era pós-graduada e coordenava as disciplinas de Inglês técnico para os cursos de Administração de Comércio Exterior e o de Ciências Contábeis, na Universidade de Ensino de Brasília (Uneb). “Eu era mais nova que os alunos!” – recorda, orgulhosa, sobre aqueles tempos.

No Executivo

Paralelamente às aulas, Regina era secretária do Ministério da Indústria e Comércio, nos governos dos ex-presidentes João Baptista de Oliveira Figueiredo e José Sarney. Depois, trabalhou como tradutora, na Cosipa.

E, lá se vão 34 anos de vínculo como servidora. Advogada, atualmente ela atua na Procuradoria Geral da República. E afirma: “Amo o que faço”.

Fim de carreira

“Joguei pouco futebol de campo. Treinava na Faculdade Dom Bosco, mas devido à minha estatura não investi nessa modalidade. Jogava mais para ter o encontro com as meninas, quando faltava uma atleta…”

No futsal, Regina parou em 2011, aos 47 anos, quando já tinha dois filhos, Rebecca, hoje com 23 anos, e Rafael, com 20. “Foi um presente que ganhei. Meus filhos vieram como um presente”, repete. Já a decisão de parar foi “doída”, reconhece. Mas, era preciso. Muitas vezes saía para treinar num domingo. “Imagine, deixar a família para ir treinar”…                            

Regina com os filhos, Rebecca e Rafael

“Daqueles tempos” Regina guarda boas lembranças dos chefes que teve. Foram todos “maravilhosos”. Colaboraram com a carreira dela, permitindo que viajasse para um ou outro jogo, quando necessário. Mas sempre com uma recomendação, afinal, chefe é chefe:

– Vá jogar, mas traga o título!

Sem dúvida, a carreira de Regina Célia da Silva Vieira é vitoriosa, com muitos títulos em quadra ou fora dela, nos gabinetes onde trabalhou, em universidades ou salas de aula, efim.

Professora e advogada, conheceu cerca de 35 países, o que contribuiu para a sua constante atualização cultural. “Tudo isso ajuda a melhorar como ser humano. E, se não se atualizar, que vida boba seria, né”?

“Se eu não tivesse sido atleta, não sei o que teria sido.

A minha adrenalina, os meus picos dos hormônios que dão prazer

estavam na quadra. Ainda bem que pude jogar”.

Regina Célia da Silva Vieira

Nota da Redação:

Originalmente, o título “A pequena notável” foi aplicado a Carmem Miranda, portuguesa que chegou ao Brasil ainda crianças, se consagrou como cantora e ganhou prestígio internacional.

Assim como na música, o futsal também teve a sua “Pequena notável”, expressão ganhou espaço nos dicionários com a seguinte definição:

  1. digno de nota, de atenção.
  2. que pode ser percebido; apreciável, sensível.