Por Hélio Tremendani e José Cruz
O convite para uma entrevista se transformou numa valiosa aula de introdução à cultura musical, à valorização do samba e à dança, em geral, em suas várias manifestações.
A sambista, passista, professora de dança e Rainha da Bateria da Escola de Samba da ARUC, Verônica Nuñes Amaral, foi didática em suas respostas.
A arte em família
Nascida em Brasília há trinta anos, Verônica herdou do avô, índio inca peruano, o sobrenome Nuñes. Aí está uma das origens pelo gosto artístico-musical manifestado por Verônica, mostrando carinho especial por aquele povo de tradições festivas, com suas vestes coloridas e difusor do som de raízes andinas com influências espanholas e africanas.
Júlio Cézar Nuñes, pai de Teresa Cristina, mãe de Verônica, era artesão. Ele esculpia lindas peças em pedra quartzo e vendia na Feira da Torre de TV, segundo a neta. “E a minha avó materna, baiana, chegou a ter vínculos com a etnia cigana”, revela a neta. Teresa Cristina, por sua vez, é uma exímia dançarina de danças árabes e ciganas que, claro, influenciou nos rumos artísticos da filha.
Já o pai de Verônica, Enildo Amaral, nasceu em Rio Bonito, interior do Rio de Janeiro. Mas, com 17 anos veio morar em Brasília e, por isso, se considera um “brasiliense de coração”. Toda essa relação familiar tem a ver com a sambista que se formou, Verônica, personagem principal desta reportagem.
“Meu pai me trouxe o amor pela música, principalmente. Quando jovem tinha uma banda de rock. Sempre cantou e tocou violão muito bem. Cresci escutando e apreciando sua música, que era, majoritariamente, rock nacional e MPB.
Chance para a dança
“Na dança, meu pai sempre foi coruja, sempre esteve presente nas minhas apresentações. Ele atuava como fotógrafo profissional na cobertura dos eventos onde eu estava com outras artistas. Depois, revelava e vendia as fotos”.
Não restam dúvidas de que as suas origens e o ambiente em que se criou foram incentivo para que Verônica, a caçula de três irmãos, adquirisse o gosto pelo ritmo musical. Daí para iniciar na carreira artística foi apenas um convite feito pela mãe.
“Um dia, a minha mãe me convidou para uma aula experimental de dança do ventre. Eu tinha 6 ou 7 anos de idade, por aí. Fui e gostei”.
Assim, o que seria “experimental” entrou na agenda de Verônica, mas com uma condição: os programas infantis da TV Globinho, sábado de manhã, deveriam ser respeitados. Aqueles horários eram “sagrados”, pois tinham “os melhores desenhos da época, eu não poderia ter aula naqueles horários”, lembra ela, com olhar de saudade. Mas, foi assim que começou uma paixão duradoura…
“Com certeza me identifiquei com a dança. Era algo lúdico, gostei mesmo. Foi assim que a dança entrou na minha vida. Experimentei vários estilos e ritmos, a dança do ventre, o hip hop, dança de salão, de gafieira, o forró…”
Verônica tem mais uma irmã, que, quer fazer aula de samba. Sem dúvida, tem escola em casa! Já o irmão, Eduardo, herdou do pai o gosto pelo violão, instrumento que “toca muito bem”, segundo Verônica. “Mas, também, tem um quê” da minha mãe, pois pratica a dança árabe e cigana.
Resgate para o samba
O tempo passou. Verônica integrava um grupo folclórico de danças árabes, formado por homens e mulheres, com apresentações frequentes. Com 17 anos, estava na terceira série do ensino médio e o tempo para ensaios começou a ficar apertado. Era preciso pensar no futuro profissional e, por isso, afastou-se da dança, da dança do ventre, inclusive.
Mas, com 26 anos “minha mãe me resgatou, dessa vez para o samba. Fiz uma primeira aula com Flavinho Sambista e com Isabela Teles, gostei e fui investindo”.
Em 2022 veio a pandemia e, em decorrência, as inovações, como os cursos online, e Verônica se manteve em aula com Isabela e com um grupo de profissionais do Rio de Janeiro. Na sequência, ingressou no Areté Brasil, grupo de dança, cuja mãe é a fundadora e diretora artística. Aretê ou areté é uma palavra grega que expressa o conceito de “excelência” e “alegria”.
Convites
O grupo brasiliense ganhou visibilidade e os convites para apresentações eram frequentes, para o exterior, inclusive. Foi assim que o Areté Brasil se apresentou na Itália e na Grécia. E, para este ano, já há convites para apresentações na Colômbia e no Equador.
Na volta da viagem da Europa, Teresa Cristina convidou Verônica para ser professora de um grupo de alunas. “Aceitei o convite. Para dar aula tenho que aprender mais, é isso se torna um processo contínuo de aprendizado. Venho me aprimorando com minha mãe. Ela me orientou e me orienta bastante, minha eterna professora”.
O grupo que Verônica trabalha é formado por mulheres de 47 anos para cima. Tem uma de 70 anos, o que demonstra como a dança é uma atividade inclusiva, independentemente da idade.
Na verdade, esse grupo é de mulheres que já tiveram outras vivências com danças. Por isso, a professora avançou, progressivamente, nas danças coreográficas, por exemplo, com características para apresentações artísticas e em festivais.
Profissional e passista
Agora, aos 30 anos, esbelta, bonita, culta e com discurso muito bem articulado, Verônica divide as suas atividades artísticas-musicais com a de profissional em “Consultoria de Proteção Financeira”. Traduzindo, ela orienta a fazer planejamento financeiro individualizado.
Porém, no seu perfil de 1,70m, ela se mantém discreta e não permite que se identifique nela uma apaixonada pela dança, pelos ritmos em geral – o samba em especial – e passista de primeira. Foi nesse contexto que Verônica se tornou conhecida e conquistou o seu espaço na linha de frente da bateria da Escola de Samba da Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro – ARUC.
No ano passado, Verônica conheceu o Mestre Marquinho, da Escola de Samba Bola Preta, de Sobradinho, durante uma oficina de percussão, que ele oferecia. Em seguida veio um convite e mais um desafio: coordenar a ala das passistas da Escola, que passaram a receber aulas de samba por ela ministradas.
“Foi uma surpresa, uma ascensão muito rápida”
A aparência
Como se sabe, o samba tem a raiz da cultura africana no Brasil. Vem do tempo dos sambas de roda, quando os negros dançavam nos terreiros, nos fundos dos quintais, embaladas pelo ritmo musical das batucadas. Com essa origem e identidade negra pode parecer estranho que, agora, seja uma sambista branca a rainha de bateria da mais premiada escola do Carnaval de Brasília, a ARUC.
Ao aceitar os convites em Brasília, Verônica não se apresentava como caso inédito de sambista branca.
Há exemplos de famosas que fizeram sucesso em outros carnavais, como Karine Grum, que em 2023 desfilou pela segunda vez consecutiva como Rainha da Bateria da Dragões da Real, escola de samba da torcida organizada do São Paulo F.C.
Já no Rio de Janeiro, Sabrina Sato (de origem oriental), desfila à frente da bateria da Escola de Santa de Vila Isabel e Paola Oliveira, na Grande Rio.
Tranquila
Mesmo diante dessa realidade, Verônica quis saber do Mestre Léo (Daniel Leonardo) quando a convidou para ser a Rainha da Bateria: “Porque eu e não outra pessoa”? E insistiu na tese de que Rainha da Bateria tinha que ser “uma beldade negra”.
A resposta foi que havia candidatas negras, mas não estavam disponíveis, devido outros compromissos. “Me senti com a consciência mais tranquila”.
Além disso, outros fatos contribuíram para que ela se convencesse que não estava invadindo área exclusiva.
Na reflexão de Verônica, por exemplo, os desfiles das escolas de samba misturam a influência de três etnias: à raça negra – origem histórica, música e dança –, ao povo indígena, nas fantasias com penas coloridas e à raça branca, com o seu envolvimento na construção do samba-enredo e na competição entre as escolas de samba.
Agradecimento
“Me sinto honrada estar à altura de poder contar um pouco da minha história e fazer parte da história do Cruzeiro e da ARUC. O convite para ser a Rainha da Bateria dessa Escola foi a maior oportunidade de me apresentar como sambista. Ter no currículo essa passagem pela ARUC é relevante e sobretudo de indescritível emoção”
Palavra de especialista
Hélio, carnavalesco, ex-presidente da ARUC, na entrevista com Verônica
“Sobre a escolha de uma sambista branca para Rainha da Bateria, acredito que isso sugere que o Carnaval precisa se abrir mais, não pode ficar concentrado em grupos. Através da diversidade das raças o Carnaval se torna mais inclusivo. Na ARUC, a escolha da Rainha da Bateria é feita pelo Mestre da Bateria e seus integrantes. E, assim, Verônica foi a escolhida. Porque não temos uma sambista negra vamos ficar sem a Rainha da Bateria”? – argumenta Hélio Tremendani
Carga cultural
A diversidade cultural que se formou – e continua se formando – em Brasília, com manifestações artísticas-musicais de todas as regiões do país, é outro tema que Verônica sugere para um bom debate.
Ela lembra que, ao contrário de outras pessoas que vieram de seus estados para a capital, os que aqui nasceram não têm essa carga cultural muito forte. Até porque, Brasília não tem um folclore próprio, por isso concentra as manifestações de todo o país.
Reverência
Com isso ela explica as suas preferências, com o samba. Mas, com uma ressalva: “Também reverencio demais a dança do ventre” – onde tudo começou para mim. E explica:
“A dança do ventre vem da cultura árabe. Ao exibir essa dança, também manifesto a minha gratidão pela consciência corporal que tenho, pois se trata da mais feminina das danças que existe, mas sem aquele pertencimento que o samba nos traz. A dança do ventre, porém, conversa com o samba e era o que faltava. O samba está na minha cultura, está no meu sangue, no meu país. E traz esse pertencimento de cultura nacional, mesmo eu sendo brasiliense”.
Apoio e orgulho
Para cumprir essa agenda agitada de uma rainha sambista, participar de ensaios, ministrar aulas e se manter ativa em todos os seus compromissos profissionais, Verônica tem um apoio valioso, do marido, Michel Pinheiro da Silva, brasiliense, que dá o suporte e a tranquilidade que ela precisa. Nesta entrevista, ela tomou a iniciativa de citá-lo:
“Ele (Michel) sabe, por exemplo, que se apresentar numa escola de samba exige uma exposição maior do corpo. Por isso, é preciso ter um homem muito seguro do teu lado para te achar linda nessa condição de artista e ter orgulho de dizer que está casado com uma Rainha de Bateria de uma escola de samba”, resume Verônica sobre essa relação de confiança do casal.
Frustração
Não será este ano que Verônica irá estrear à frente da Bateria da ARUC. Problemas burocráticos que não foram tratados a tempo levaram à suspensão do desfile oficial das escolas de samba, em Brasília.
Mas, não é só isso que frustra a Rainha Verônica. Ela vê o Carnaval, Brasil afora, como uma grandiosa manifestação cultural. E cita a diferença de ritmos e manifestações artísticas dos blocos e escolas de samba que se observa.
“Da Bahia para Pernambuco, por exemplo, observa-se o registro da diferença de cultura de um estado para o outro. Cada um tem o seu ´sotaque´, digamos assim, a sua expressão musical e artística”, explica. “Mas essa riqueza da cultura nem sempre tem o apoio público, essas manifestações nem sempre são valorizadas e isso é muito triste”.
Verônica encerra lembrando o exemplo do Rio de Janeiro, que trata os desfiles de forma profissional. “Além de valorizar a cultura, esse assunto é tratado como investimento de ótimo retorno, retorno de bilhões de reais”.
“Apesar de não termos desfiles das nossas escolas de samba, desejo a todos os foliões brasilienses um alegre Carnaval de 2024”