21 de novembro de 2024
Marquinho, com Ísis, sua netinha e parceirinha nas rotinas do Vovô (Arquivo pessoal)

GERAÇÃO DOM BOSCO II: Especialista alerta para a falta de gestores do esporte

Apesar de jovem, Brasília já tem gerações de referências em diversos segmentos de sua história, como as turmas de Educação Física da Faculdade Dom Bosco, cujos personagens prestam seus depoimentos à Memória da Cultura e do Esporte

Depois do Professor Abelardo, do Handebol, que abriu esta série de depoimentos de ex-alunos da Faculdade Dom Bosco de Educação Física, agora é a vez de Marco Aurélio da Costa Guedes, natural da Ilha do Governador. E, mesmo tendo nascido no Rio de Janeiro, ele se diz “orgulhoso de ser brasiliense”.

 O começo

Filho de pai militar, da Aeronáutica, Marquinho, como é conhecido no meio esportivo, chegou em Brasília com a família em 1973, quando tinha 15 anos. Foi aluno de dois colégios de referência, o Setor Leste e o Elefante Branco, onde jogou futebol, sua paixão.

Na sequência dos estudos, ele integrou a terceira turma da Faculdade Dom Bosco. Mas, com um diferencial entre aqueles tempos e agora: os alunos dessa faculdade saiam, também, “capacitados para o pensar e o debate acadêmico, assim como especialistas na formulação de propostas, elaboração de projetos e administração no segmento da educação física e do esporte”, explicou Marquinho.

Marquinho, com Ísis, sua netinha e parceirinha nas rotinas do Vovô (Arquivo pessoal)

Planejamento e gestão

Segundo Marquinho, o currículo das faculdades de Educação Física, de agora, prepara o aluno para trabalhar mais na área fitness. Mas, não se incentiva “aquilo que já tivemos”. Sobre isso, ele explica:

“Atualmente, as faculdades, em geral, não praticam o pensar acadêmico, o debate sobre os temas da profissão e nem se prepara o formando para a gestão do setor esportivo, para a elaboração de projetos ou para a gestão de recursos públicos, ao contrário da nossa época, quando tínhamos esse ensinamento. E é isso que fez a diferença da nossa geração de profissionais”

Teoria e prática

Além da teoria recebida na faculdade Dom Bosco, Marquinho teve uma vivência prática especial, quando trabalhou no que se pode dizer uma verdadeira “escola” de intelectuais do setor, que construiu a base do esporte nacional, lá nas décadas de 1970/1980.

Era a Secretaria de Educação Física e Desporto do Ministério da Educação, conhecida pela por SEED-MEC. Ou seja, ele conviveu – e aprendeu – em duas referências da época, pois boa parte dos diretores da SEED integrava o quadro de professores da Faculdade Dom Bosco de Educação Física.

“Além da excelente faculdade onde estudei, eu tive outra escola para um valioso aprendizado, a SEED-MEC”, reconhece Marquinho.

Sem exageros, a SEED-MEC é lembrada como uma das principais referência e reduto da intelectualidade da época, nos segmentos da educação física e esporte, atividade que se desenvolveu muito, mas ainda se estrutura e busca se fortalecer no país.

Com recursos garantidos no orçamento do Ministério da Educação, a SEED financiava projetos das confederações, em geral, além da Confederação de Desporto Universitário (CBDU) e a Comissão Desportiva Militar do Brasil (CDMB). Tudo mediante um plano de aplicação que deveria ser cumprido, a fim de garantir novas liberações de verbas.

Resultado

Nas últimas décadas, porém, observa-se uma carência de profissionais capacitados para trabalhar na captação e gestão de recursos públicos para o esporte. Com isso, muito dinheiro orçamentário deixa de ser utilizado, porque faltam projetos, bons projetos, principalmente.

“Não é só elaborar um projeto, é preciso que seja um bom projeto, bem fundamentado e bem justificado”, reforça Marquinho. “E é por isso que muitas vezes o Ministério do Esporte ou as secretarias estaduais do Esporte encerram o ano sem terem usado verbas orçamentárias disponíveis para o setor, pois não foram apresentados projetos para avaliação e aprovação”.

Prioridades

Não fosse por isso, há outra questão. A maioria dos estudantes formados nas mais de 1.500 faculdades de Educação Física existentes no país está interessada em se tornar “personal trainer”, pois o retorno financeiro é imediato, ao contrário do que ocorre nas áreas de administração ou gestão do esporte.

Nesse sentido, Marquinho lembra que em 1980, quando estava terminando a faculdade, trabalhou na Inspetoria Geral de Finanças do Ministério da Educação, antes de ir para a SEED, a convite de Ruthenio Aguiar. Ruthenio foi uma das referências na história da gestão pública da educação física brasileira, mas, lamentavelmente, já nos deixou.

Talentos

Na SEED, Marquinho trabalhou com alguns de seus professores na Dom Bosco, como o Coronel Teixeira, especialista em Legislação Esportiva, Carlos Braga, da área de recreação, Ary Façanha de Sá, que foi atleta quarto colocado no salto em distância, na Olimpíada de Helsinque, 1952. Só “feras”, como se diz, para exaltar o que representavam, de fato.

Em 1985, aprovado em concurso do Governo do Distrito Federal (GDF), Marquinho saiu da Esplanada dos Ministérios. No GDF foi lotado na Secretaria de Educação, no Centro de Ensino 11, do Gama. No ano seguinte foi para o CIEF, o Centro Interescolar de Educação Física. Nesse novo trabalho, ele aprofundou os seus conhecimentos em outro importante segmento, o desporto escolar, que acabou se tornando a sua “grande paixão”.

A Escola

Experiente na convivência desse tema, Marquinho, hoje aposentado, está convencido:

“A escola é o principal reduto para se identificar talentos, em geral, e para o esporte, em especial. A escola permite a iniciação, o esporte na base, é o ponto de partida. Na escola está a matéria prima para se ter o atleta que desejamos oferecendo a oportunidade para ingressar na profissionalização. E, uma vez identificado o talento, cabe ao ainda aluno decidir se quer ou não se tornar atleta”.

 “Mas, ao contrário, há muito tempo não se tem mais essa orientação, a fim de que o aluno, responsabilidade do Estado, se torne atleta federado a partir dos 15, 16 anos e siga a sua carreira”, diz Marquinho

As mudanças de governos a cada quatro anos, tanto em nível federal quanto estaduais e municipais, com naturais trocas de orientações e metas, acabam não dando segmento aos projetos, mesmo os que já demonstraram bons resultados.

Por exemplo: as secretarias de Educação, Brasil afora, têm um setor que cuida dos Jogos Escolares, mas não têm quem cuide da prática de educação física… E educação física é o começo de tudo, não só para se identificar candidatos a atletas, mas como atividade que contribua para o desenvolvimento do intelecto e a formação do caráter dos nossos jovens.

“Os estados não têm, também, responsáveis por criação e desenvolvimento de políticas públicas de esporte adaptadas à realidade de cada região. Tudo isso influencia na redução de descobertas de novos talentos para as diferentes modalidades”

Centros de Iniciação

Problemas à parte, Marquinho lembra uma proposta bem-sucedida aplicada em Brasília. Foram os Centros de Iniciação Desportiva, os CIDs, idealizado pelo professor José Leopoldino, do Núcleo Bandeirante, uma das regiões administrativas da capital.

“Leopoldino era um pedagogo, foi diretor de Regional de Ensino e professor da Faculdade Dom Bosco. Ele observou o potencial nas escolas para se identificar talentos para o esporte e idealizou os CIDs, iniciativa que  ainda é aplicada em várias escolas do Distrito Federal”, contou Marquinho.

 OS JEBs

“A SEED me possibilitou conhecer a realidade do esporte na escola em todo o Brasil, através dos Jogos Escolares Brasileiros, os JEBs. Minha primeira participação foi em 1980. No total, participei de mais de vinte edições dos Jogos”.

Naqueles primeiros anos, os JEBs eram disputados entre as seleções de cada Estado, um formato que escondia o desempenho dos professores em suas respectivas escolas. O reconhecimento desse trabalho era raríssimo ou nenhum. A primeira edição dos JEBs foi em 1960, em Niterói (RJ), há 63 anos, portanto. Dos JEBs participaram centenas de atletas que se se tornariam competidores olímpicos, medalhistas, inclusive, como Renan, Bernard e William, no vôlei. E, na vela, os irmãos Torben e Lars Grael.

Algum tempo depois, segundo Marquinho, houve mudanças na estrutura dos JEBs e as disputas que eram por seleções estaduais passaram a ser por escolas. A escola campeã de determinada modalidade representava o Estado no evento nacional. E, então, o trabalho do professor (técnico) passava a ser conhecido e mais valorizado.

Marquinho (à direita), em reunião dos JEBs, em Porto Alegre,com José Arataca, técnico de Atletismo

 “Nesse novo formato dos JEBs a escola passou a ter mais visibilidade e a ser mais valorizada, assim como o trabalho dos professores, técnicos e o desempenho dos alunos em cada modalidade”

O sucesso dos JEBs devia-se, também à coordenação de estudos técnicos, que discutia os diferentes segmentos da competição. E nesses quadros tinha o que havia de melhor no país. “Lembro de Carlos Mossa, pai da ex-jogadora de vôlei, Vera Mossa, que coordenava os debates da arbitragem. No basquete era o grande jogador Vlamir Marques, que foi bicampeão mundial (1959-1963) na geração de ouro que tivemos”, conta Marquinho. Pelo seu trabalho e, principalmente, incentivo ao desenvolvimento do esporte escolar, Marquinho foi reconhecido e homenageado com a Medalha do Mérito do Buriti, em 1999.

Marquinho, recebendo a Medalha do Mérito do Buriti: reconhecimento público

 Na Itália

Em 1982, surgiu mais uma oportunidade para atualização de seus conhecimentos sobre o esporte escolar, quando Marquinho integrou a delegação brasileira no Campeonato Mundial Juvenil de Handebol, em Téramo, na Itália. O Brasil foi representado pela Seleção formada nos JEBs de 1981.

“O médico da delegação foi Flory Machado, e Sérgio Oliveira o jornalista convidado para cobrir o evento. Foi uma das promoções escolares mais enriquecedoras que participei, com a oportunidade de um aprendizado maravilhoso em grandes eventos”, relembra. O gaúcho Flory, que morava em Brasília, foi uma das referências na área da medicina esportiva e da ortopedia, em especial. Ele morreu em 2021, aos 77 anos.

Marquinho contou que, para um evento grandioso como aquele da Itália, as quadras de handebol foram distribuídas por toda cidade, além dos ginásios existentes. Havia, inclusive, áreas de competições nas ruas, sobre o asfalto, recebendo jogos.

“A abertura da competição foi um passeio das delegações pelas ruas estreitas da cidade. A população na janela de seus prédios jogava flores e aplaudia os visitantes. Nas ruas, gente de todo mundo. Tinha até esquimó. Um espetáculo cultural fora de série”.

 Realidade nacional

Voltando à nossa realidade e ao esporte de alto rendimento, Marquinho avalia que, nos últimos anos, estamos mais ricos, financeiramente, graças aos apoios oficiais que surgiram.

Além da Lei das Loterias e da Lei de Incentivo ao Esporte, foi criada a Bolsa Atleta, inclusive em alguns estados. E os patrocínios das estatais – Banco do Brasil, Caixa, Correios, Petrobras, etc – foi fundamental para o desenvolvimento das modalidades.

Sobre a Bolsa Atleta, Marquinho explicou que a ideia surgiu depois de uma conversa com José Haroldo Loureiro Gomes, o Arataca, técnico da equipe de atletismo da Sogipa, de Porto Alegre, que oferecia esse apoio aos seus atletas.

“O Distrito Federal foi a primeira unidade da Federação a ter a Bolsa Atleta e eu participei desse projeto. E, em 2003, quando assumiu, o então ministro do Esporte, Agnelo Queiroz, pediu o nosso modelo para elaborar o projeto nacional, que vigora até hoje”

Intercâmbio

Porém, outras iniciativas com apoio dos governos federal e estaduais contribuíram para que o Brasil desse um salto no rendimento de várias modalidades e conquistasse pódios que, até há pouco não eram comuns, como a canoagem, a ginástica e o boxe, entre outros.

Segundo Marquinho, “foram muito importantes os intercâmbios com outros países para o treinamento de nossos atletas, assim como a contratação de técnicos estrangeiros. Durante os Jogos Olímpicos Rio 2016, cerca de 40 profissionais de outros países foram contratados pelo Comitê Olímpico do Brasil (COB), com vários pódios conquistados, em decorrência dessa iniciativa”.

Assim como ocorre com os atletas, que buscam treinamentos em centros mais avançados de suas modalidades, também os técnicos precisam dessa interação e isso se observou no país na última década.

“Certa vez, conversando com o José Roberto Perrilier, que monitorava os ciclos olímpicos do COB, ele contou que a evolução técnica dos atletas brasileiros era o dobro do observado junto aos dirigentes e técnicos, que, no geral, estabilizavam em seus conhecimentos, devido à falta de intercâmbio, isto é, faltava atualização”.

Em 1984, a SEED MEC cuidava mais desse setor com especialistas, entre eles Nelson Prudêncio, triplista medalhista olímpico, Professor Quintanilha, que era diretor técnico da CBDU e Orlando Ferracioli, que dedicou a sua vida profissional à administração e gestão pública do esporte em geral. O próprio Marquinho participou de um curso sobre Administração Esportiva, em Berlim, em 1984.

 

Marquinho, diplomado no curso de Organização e Administração Esportiva, Berlim – 1984

CIEF

Como gestor público do esporte, a partir da formação na Faculdade Dom Bosco de Educação Física, observa-se que Marco Aurélio da Costa Guedes acumulou experiências em órgãos federais e do Distrito Federal.

Nas suas andanças passou, também, por um reduto histórico do esporte escolar em Brasília, o CIEF – Centro Interescolar de Educação Física. Nesse espaço treinaram vários atletas olímpicos da cidade, entre eles Joaquim Cruz, medalha olímpico, ouro nos Jogos de Los Angeles, 1984, e prata em Seul, 1988.

“No CIEF fui chefe do setor de Jogos Escolares e das Colônias de Férias. De lá, fui para o DEFER – Departamento de Educação Física e Recreação -, órgão do Governo do Distrito Federal, quando o Sérgio Lima da Graça foi o diretor. Nessa ocasião, estudei o modelo dos Jogos Abertos de outros estados, aqui implantando, mas adaptados à realidade de nossas regiões administrativas. O evento deu super certo e foram disputados durante cinco anos”.

Escolinhas

As tradicionais “Escolinhas OK DEFER”, também foram implantadas quando Marquinho trabalhava nesse órgão. O projeto foi entregue pelo então secretário, Sérgio Lima da Graça, à Fundação Luiz Estevão, que se tornou parceira do projeto, fornecendo a mão de obra, contratação de professores e monitores.

“Chegamos a atender 19 mil crianças praticando atividade física em diversas modalidades, como a natação, o atletismo, futebol, judô, vôlei basquete. As atividades eram desenvolvidas, também, nas quadras comunitárias das cidades satélites”.

Na prática, era um programa de governo e não havia ingerência política, mas padrinhos para cada modalidade, sempre que possível com uma referência no esporte. O campeão mundial Ubiratan, por exemplo, era o padrinho do basquete; Isabel, no vôlei, Nilton Santos e Roberto Dinamite no futebol.

O vínculo desses nomes famosos às escolinhas ajudava a divulgar a atividade e, no geral, foi um projeto de bons resultados, segundo Marquinho.

Com Pelé

Do DEFER, Marquinhos foi convidado para ser o Gerente de Projetos do Ministério do Esporte, quando o astro mundial Pelé  (foto) era o ministro, no governo de Fernando Henrique Cardoso. Nessa ocasião, o foco era trabalhar com as emendas de parlamentares para os estados, definindo sobre obras prioridades em cada unidade, como pistas de atletismo, ginásios ou quadras.

Marquinho (camisa branca, à direita), em solenidade com o então ministro Pelé

 Vilas Olímpicas

Finda essa fase, em 1998, Marquinho voltou ao seu órgão de origem, o DEFER, assumindo a chefia de gabinete do então Secretário, Agrício Braga, ocasião em que redigiu o projeto da Bolsa Atleta do Distrito Federal.

Foi nesse retorno ao DEFER que Marquinho também participou do projeto de criação das Vilas Olímpicas, complexos multiesportivos abertos à comunidade das regiões administrativas, expandido o projeto de democratização do esporte.

As Vilas serviam, também, para identificar talentos. Os que se destacavam seriam enviados para o CIEF ou no DEFER, que contava com boa estrutura, como pista, piscina, ginásio, algo como se ali fossem centros de treinamentos

“Na melhor fase de funcionamento das Vilas Olímpicas – ainda em atividade – 34 mil pessoas chegaram a ser atendidas nas 11 unidades então existentes, nos turnos da manhã, tarde e noite, de sábado a domingo e com a participação de estagiários para atender a todo esse público”.

Essas Vilas (foto) são dotadas de pista der atletismo, piscina, quadras de multiuso, campos de futebol etc.

Não há dúvidas de que os dados trazidos por Marco Aurélio da Costa Guedes são importantíssima contribuição para o debate sobre o desenvolvimento do nosso esporte, quer escolar, quer comunitário, quer o de alto rendimento. As informações são de que conheceu a gestão federal e distrital, de quem viajou muito, conheceu centros avançados e trouxe experiências inovadoras, dentro da política da SEED-MEC que, lamentavelmente, não prosseguiu.