21 de novembro de 2024

Wander Abdalla: Bons tempos aqueles…

 Por Hélio Tremendani e José Cruz

O Milionário Futebol Clube, lá no início de Brasília, era rico só na marca, pois esse nome, “inventado”, sugeria uma ironia diante da falta de dinheiro da agremiação. Na prática, os jogadores nada ganhavam, pois praticavam o esporte por diversão, por prazer. Bons tempos em que vestiam a camisa “por amor ao clube”. Ou à bola!

O mineiro Wander Abdalla era um dos craques do “Milionário”. Agora, tantos anos depois, numa entrevista em que revela muito saudosismo, ele abriu o seu baú de memórias para contar fatos do futebol da capital federal que ele ajudou a construir.

“Inventei o Milionário Futebol Clube. O nome era uma ironia, uma provocação, porque ninguém ganhava nada, não havia dinheiro. Jogávamos pelo prazer. Os jogadores eram todos aposentados, time de peladeiros, mas bons de bola. Fazíamos jogos preliminares só para mostrar como se joga futebol”.

Neto de sírio, Wander aqui chegou e 1959, um ano antes da inauguração da nova capital. Nasceu em Conquista, próxima de Uberaba, no interior mineiro, onde, garoto, jogou bola na rua. Mas, desde então, já demonstrava liderança ao organizar competições de times formados pelos amigos. Em 1950, com 13 anos, ouviu pela Rádio Nacional o Brasil perder para o Uruguai, na trágica final da Copa do Mundo. A narração daquele jogo, ele lembra, foi de Jorge Curi. Oduvaldo Cozzi, Waldir Amaral e Doalcey Bueno de Camargo eram outros cobras da locução esportiva daquela época.

Currículo

Toda essa vivência ajudou a formar a personalidade esportiva de Wander Abdala. E foi com esse “currículo” que ele acabou se revelando um eficiente jogador, técnico e dirigente, com um desempenho que contribuiu para o surgimento de craques em Brasília, entre eles Renaldo (Atlético Paranaense e Atlético Mineiro), Anderson (Guará, Gama e Fluminense) e Gerson (Guará, Gama e Guarani de Campinas).

Roteiro

 Antes de Brasília, Wander atuou como profissional pelo Bela Vista, de Sete Lagoas, em Minas. Mas, quando ficou fora da delegação para uma excursão do clube pela Europa decidiu largar tudo e ir jogar no Goiânia Esporte Clube. Dali, foi um pulo até Brasília, para onde veio atraído pelas novidades e desafios da nova Capital, ainda em construção.

Com um desempenho esportivo que durou sete décadas, Wander se consagrou entre os pioneiros do futebol amador e profissional, tornando-se uma das referências desse esporte em Brasília.

Garoto esperto

Quando aqui chegou, Wander foi trabalhar no Departamento de Força e Luz (DFL). Ele era fiscal dos serviços da Empresa Brasileira de Engenharia, que implantava a rede elétrica no Distrito Federal. Com o pessoal disponível, ele decidiu montar um time de futebol do Departamento claro,. A partir daí, as novas contratações passaram a ser feitas de acordo com o perfil do candidato, entre elas as habilidades com a bola nos pés.

Foi assim que o DFL, nas cores vermelha e branca, deu o nome ao novo time de Brasília, o “Defelê”, sigla que se consolidou ao longo dos anos e até hoje é lembrada como a de um dos mais tradicionais times do futebol local.

“O primeiro uniforme do Defelê foi doado pela Empresa Brasileira de Engenharia. E como a empresa tinha sede no Rio de Janeiro, de lá vieram alguns reforços que passaram a valorizar o futebol local”

Em 1960, Wander, como jogador e técnico de Defelê, contratou um treinador dos bons, o Seu Didi de Carvalho, que veio de Ponte Alta, interior de Minas Gerais. Na época, Didi era um profissional muito conhecido no futebol daquele estado. Em Brasília, consagrou-se com o Defelê tornando-se bicampeão (1960-1961). Seu Didi era pai de dois ex-jogadores, Péricles e Wander Carvalho, que também fizeram história no futebol local. Wander, por sinal, ganhou esse nome de batismo em homenagem a Wander Abdalla.

Defelê campeão

Em 1960, para chegar ao título de campeão da cidade, o Defelê disputou um turno de classificação com outras nove equipes: Guará, Rabello, Grêmio, Nacional, Pederneiras, Sobradinho, Alvorada, Real, Planalto. Nessa fase, o Defelê foi eliminado pelo Pederneiras (4×3). Porém, o Sobradinho, que havia se classificado, desistiu da competição.

PÉ (Da esquerda para a direita) Matil, Raimundinho, Anchieta, Dionísio, Euclides, Vitinho, Loureiro, Eli, Ramiro, Fino, Zé Paulo, Gavião, Wander, Pedrinho, Osvaldo, Anésio e Didi (treinador) AGACHADOS Caubi, Otávio, Paulinho, Carneiro, Dr. Ramalho (diretor), Ceará, Dr. Ciro (Presidente do clube) Élcio, ……., Juraci, Roberto Soares …….Cleóbulo (diretor) e Pelé.

A vaga foi conquistada pelo Defelê, que derrotou o Real por 5 x 1. Na etapa seguinte, com nove jogadores (Zé Paulo, lateral direito e Eli, centro avante, foram expulsos) o Defelê chegou ao título ao empatar com o Guará (1×1), iá que o empate o favorecia. O gol do título foi de Vitinho, de pênalti, aos 43 minutos do segundo tempo. Surgia assim o primeiro campeão oficial de futebol do Distrito Federal.

Presidente

Quando fala em Defelê, Wander recupera lembranças de seu ex-presidente, Dr. Ciro Machado:

“A pessoa de confiança do doutor Ciro era o Carlos Magno Maia Dias, que também era o diretor administrativo do clube. Carlos resolvia todos os problemas do dia a dia do Defelê, o que muito facilitava o presidente para resolver outras questões”. Outros personagens importantes na vida desse histórico clube do Distrito Federal foram Lincoln de Sena, Wilis Alvarenga, Rosalvo Freire, Roberto Soares Marreta e Ulisses Xavier.

E se referindo à estrutura física do futebol, Wander contou que o campo de futebol do Defelê foi o primeiro a ser gramado e iluminado no Distrito Federal. O engenheiro autor do projeto e da instalação dos refletores foi o doutor Dalmo Rebelo.

Em 1962, com 25 anos, Wander Abdalla encerrou a carreira como jogador de futebol, jogando pela Associação Esportiva Cruzeiro do Sul. . Porém, o seu vínculo com o futebol não se encerrou. Ao contrário, passou a se dedicar em tempo integral à gestão do esporte e a dirigir outras equipes.

Idealista

Hoje, aos 86 anos, Wander não nega o seu lado saudosista e o de um ex-dirigente idealista. Com o tempo, ele esteve à frente de várias agremiações profissionais de Brasília, começando pelo Guará F.C, onde jogou e, mais tarde, presidiu o clube, entre 1988 e 1991.

Foi durante a sua gestão que Wander trouxe o bicampeão Mundial Djalma Santos para treinar esse time. (foto de Djalma Santos) Confirmando o que se conhece da história da cidade, naquela época, os clubes locais “existiam” graças ao apoio de empresários. Numa cidade ainda sem alternativas de lazer, o futebol era uma das raras diversões e investir na modalidade ajudava a movimentar o comércio.

Wander Abdalla conta que o Guará era um dos clubes mais bem estruturado da cidade. Tinha o apoio do Unidade Vizinhança, que hoje é do Sesc.

“Além disso, o Girotto, dono do restaurante Girotto, no Guará, apoiava oferecendo refeições aos jogadores em dias de jogos, o Miro, dono do Café do Sítio, patrocinador oficial, ajudava financeiramente, o Tito proprietário da padaria Pão Dourado, o David, gerente da Água Indaiá, o João, dono da Drogalene, que fornecia medicamentos para a equipe, entre outros, nos ajudavam muito e foram importantíssimos na nossa estrutura. Eu saía pedindo mesmo, e até botava dinheiro do bolso em algumas ocasiões. Faz parte do idealismo”. O Café do Sítio e a Padaria Pão Dourado são marcas tradicionais há mais de 50 anos entre as principais referências da economia brasiliense.

“Para ser dirigente tem que ter dinheiro ou prestígio. Eu tinha prestígio, porque gostava do que fazia e fazia bem”

 Candidato

 Com essa filosofia, Wander concorreu duas vezes à presidência da então Federação Metropolitana de Futebol. Perdeu em ambas: em 1986, para Wagner Marques e em 1992, para Tadeu Roriz.

“Em 1986, os dirigentes dos clubes me indicaram para ser o representante deles na eleição da Federação. Eu sabia que estava disputando um cargo político, justamente o que eu não era e não sou. Mas, na hora do voto, os mesmos dirigentes roeram a corda, votaram no outro candidato e eu perdi”, recorda Wander.

Perder a eleição não o tirou dos propósitos de “fazer” futebol. Hoje, está claro, que o esporte local foi quem perdeu a oportunidade de ter um dirigente que não estava ali por acaso, mas era conhecedor sobre a gestão da modalidade.

 Entre 1985 e 1987, depois de passar pela gestão do Taguatinga e do Gama, Wander Abdala voltou ao Clube de Regatas Guará, dessa vez como gerente de futebol, durante a Taça de Prata que, mais tarde, se tornaria a atual Copa do Brasil.

Não demorou para que Wander fosse convidado pelo então administrador dessa cidade satélite para ser o presidente do Guará, em substituição a Marcelo Poli, que havia renunciado.

Nessa posição, Wander se revelou um dirigente audacioso ao contratar jogadores que estavam em fim de carreira, mas ainda com ótima qualidade técnica. Entre eles, Beijoca, do Bahia, e Ailtom Lira, ex-Santos e São Paulo. Também vieram Ataliba e Mauro (Corinthians) e Dema (Santos), todos dirigidos pelo bicampeão mundial, Djalma Santos.

Nas suas andanças, Wander voltaria ao Guará como gerente de futebol, em 1998, depois de passagens pelo Sobradinho, 1994, e comodoro do Motonáutica, 1995.

Nilton Santos

Apoiado por amigos com bom trânsito entre os governantes da época, Wander liderou a vinda de Nilton Santos, que morava em Uberaba (MG), para Brasília.  

Arquivo pessoal

Nilton aqui chegou em 1987 com o prestígio de ter sido o lateral esquerdo que se sagrou bicampeão mundial (1958/1962), numa inesquecível Seleção que tinha um ataque formado por Garrincha, Didi, Vavá, Pelé e Zagalo. O destino de Nilton foi treinar o Taguatinga, onde sagrou-se vice-campeão da cidade naquela temporada.

À época, José Aparecido de Oliveira era o governador do Distrito Federal. E foi ele quem nomeou Nilton Santos para dirigir uma escolinha de futebol no extinto Departamento de Educação Física e Recreação (DEFER), que ficava no estádio Mané Garrincha. Paralelamente, o então ministro da Previdência, Rafael de Almeida Magalhães, amigo de Aparecido, ofereceu a Nilton Santos um apartamento para morar, na 214 Sul.

Para cumprir esse roteiro no futebol em todas as suas frentes, Wander lembra que Brasília sempre teve grandes construtoras aqui instaladas, embora nem todas tenham sido parceiras nas iniciativas do futebol. Ainda hoje a cidade está em constantes obras, com a presença de grandes empreiteiras nacionais nos principais canteiros.

“Mas essas empreiteiras poderiam ter ajudado muito mais”, diz Wander, que conhece bem o assunto. “Com o apoio delas (construtoras), Brasília poderia ter tido outros rumos no futebol, por exemplo, ter dois bons times na Séria A do Brasileirão”, aposta. E, a propósito de apoios empresariais, contra outro “causo”:

“Certa vez, decidi ir às empresas de ônibus pedir apoio para o nosso futebol. Visitei um empresário meu amigo, que tinha uma frota de 500 ônibus. O cara chorou tanta miséria que eu saí de lá quase tirando dinheiro do bolso para ajudá-lo a pagar as contas”…

Dirigentes

O problema não é só dinheiro, na avaliação desse especialista em futebol. Para ele faltam, também, dirigentes!

“É verdade. Não temos gente competente para bem dirigirem as agremiações. Quando aparece um, não é profissional, mas amador. E isso é no Brasil todo, pode-se ver, faltam dirigentes profissionais”!

 Exemplo

Wander cita uma proposta que aplicou no seu tempo e vingou, entre tantas outras: os jogos do Guará, aos domingos, foram antecipados para às 11h. Com isso, fugia da concorrência dos jogos da TV, à tarde, e oferecia uma alternativa de lazer pela manhã para o torcedor local. “O resultado foi visível. Tínhamos até quatro mil pessoas no estádio”, recorda.

Na bronca

Analista por excelência, Wander Abdala fica na bronca com os salários pagos hoje em dia para técnicos e jogadores. E sugere que o governo interfira, estipulando um teto de R$ 100 mil mensais. Mas reconhece que isso é muito difícil de ocorrer, pois o governo não pode interferir em negócios da iniciativa privada, como as agremiações esportivas.

Consolo

“Com boa base para analisar o futebol de ontem e o de hoje, em todos os seus segmentos, Wander se lamenta. Desejaria ter nascido vinte anos atrás e não 86… Porque, na atualidade, ele vê muita ajuda dos governos, em geral, para o esporte, como um todo.

“Com o dinheiro de hoje eu poderia fazer muito mais do que fiz. Inclusive como jogador. Se eu fosse mexer com o futebol, hoje, seria preso, porque todo mundo que fala a verdade é comunista…”

 Desabafo

“Veja o caso do Distrito Federal. O banco daqui (BRB), patrocina o Flamengo, a Fórmula 1, a Fórmula 4, a Confederação de Tênis… Mas, não temos dirigentes. Que pena!

 Futebol atual

“Prefiro ver o futebol internacional, porque lá tem futebol. Aqui é briga, é porrada. Na Inglaterra o futebol é jogado, é muito bom de se ver.

Temos condições para ser o melhor futebol do mundo, mas…”

 CADÊ OS CRAQUES?

 No início de Brasília o futebol era em campo de barro, a chuteira era com agarradeiras presas na sola com prego, a bola era de couro, pesada! Mas, tínhamos jogadores de excelente qualidade. Depois, a tecnologia melhorou tudo isso, mas não surgiram jogadores do mesmo nível de antes

“Obrigado, Brasília”

“Viver em Brasília foi uma das melhores fases que tive. Aqui, casei com Luzia Lúcia, de Uberaba (MG). Tivemos três filhos, Vander Jr, Juliana e Volmar, que tristemente morreu, em 1991. Fui funcionário público e dono de empresa. Tenho conhecimentos em vários setores da cidade, fui comodoro do Clube Motonáutica, diretor de clubes. Foi uma vida rica. Tudo o que tive e o que tenho foi conquistado aqui. As amizades, essas sim, são o que vale muito e tudo, a maioria feita através do futebol”.

O MELHOR DE BRASÍLIA NOS ANOS 1960

Wander buscou na memória os nomes de alguns dos melhores jogadores que marcaram a sua geração. Na avaliação dele, Sabará foi o melhor de todos. “Ele era um volante, jogou no Guará, no Rabello e no Luiziânia”.

 Atacante: Iris, era dentista, marcava três a quatro gols por jogo

Goleiro: Matil – jogava no Defelê

Zagueiro central: Edilson Braga, era sargento da Aeronáutica.

Zagueiro: Melão, um grande jogador, marcou o Pelé no jogo do Santos 5×1 Seleção de Brasília, no estádio Pelezão.

Ponta esquerda: Joãzinho, que jogou na Rabello

 Companheiro

 A entrevista de Wander Abdalla foi acompanhada por seu amigo e companheiro das antigas, Marcos Aurélio Souza Sudário, o Maranhão, 63 anos.

Natural de São Francisco, interior maranhense, ele está em Brasília desde 1980. Funcionário aposentado do GDF, aqui atuou como preparador físico do Guará, do Dom Pedro, do Bandeirantes, Ceilândia, Brasiliense e Aruc e está de acordo com o depoimento do amigo ao portal Memória da Cultura e do Esporte em Brasília.

“De fato, o tempo passou. Não tenho mais motivação para continuar”, resumiu. Antes, todos os times tinham uma estrutura mínima para se atuar. Hoje, é só o Brasiliense e o Gama. Tudo para se disputar um campeonato que dura apenas três meses”, sintetizou Maranhão.

E concluiu, mostrando a realidade do amadorismo que ainda se observa em Brasília: “Sem investimento é difícil trabalhar profissionalmente”.