Por Hélio Tremendami e José Cruz
O som de um samba raiz tocando alto e a alegria na recepção aos visitantes não deixavam dúvidas de que estávamos chegando a uma legítima casa de bambas. E é sempre assim, com muita música e sorriso aberto, que Neide Paula Lima, uma sambista goiana de Uruaçu, toca ainda hoje os seus compromissos diários, que incluem projetos sociais, como campanhas de ajuda a pessoas necessitadas, mulheres, especialmente.
E foi com essa mesma disposição, numa tarde de muito sol e seca, que Neide Paula voltou ao antigo Casarão do Samba, hoje Museu de Arte, às margens do Lago Paranoá, em Brasília, para matar a saudade daqueles tempos de passista campeã.
“Quarenta anos depois… é muita emoção”
Neide não escondeu que estava, mesmo, emocionada com a revisita àquele espaço, onde sambou em noites musicais nas origens da capital da República.
Enquanto caminhava no amplo salão onde, antes, era o palco e pista de dança das passistas do samba, Neide posou para fotos, foi apresentada à equipe do Museu de Arte e tietada por turistas que visitavam o local, numa tarde de lembranças para não esquecer.
Convicção
História não falta na vida de Neide, que chegou criança em Brasília, pouco depois da inauguração da cidade, em 1960. E, mesmo contra a vontade da mãe, Maria Amélia, foi se projetando no ritmo do samba.
Neide estudou na Escola Classe da 108 Sul, onde se orgulhava de ter com como colegas filhas de deputados e senadores. Mas o seu ambiente e a sua meta tinham um roteiro que ela não abandonava, crescer nos shows musicais.
Sambão e safanões
“Desde cedo eu mostrava que tinha ouvido apurado para a música. A minha primeira manifestação pública foi por volta de 1970. Num certo dia, fui com uma amiga para um sambão na Asa Norte. Fui escondida, claro, e a volta para casa não foi nada boa”… recorda ela, com uma boa risada.
Tudo estaria muito bem se nessa saída ela não tivesse encontrado o seu irmão mais velho, Ribamar, que também teve a ideia de sambar no mesmo local, numa época de raríssimas opões de lazer na cidade.
“Na volta pra casa, minha mãe acertou as contas com a Neguinha… Levei tapas, puxões de cabelo, mas aquilo adoçou ainda mais a minha vontade de investir no mundo do samba”… conta ela.
Rainha para sempre
O tempo passava… Determinada, Neide conquistou espaços até se tornar passista e se destacar como “Rainha do Carnaval”, título que repetiu por vários anos, principalmente na ARUC, a escola de Brasília recordista em títulos carnavalescos. A rotina de faixas conquistadas entre os anos 1960/1970 acabou por consagrá-la, em definitivo, “Rainha das Rainhas”.
Mulata do Sargentelli
Neide estava convicta que o samba era a sua casa e queria ir em frente. Foi dessa forma que se tornou passista, até conquistar valorizado espaço no grupo de shows das Mulatas do Sargentelli, histórico promotor da música brasileira, também conhecido como “o gente boa do ziriguidum”. Osvaldo Sargentelli (1923 – 2002) marcou época nas noites paulistas, cariocas, no cinema e na televisão.
Lembranças
As lembranças são contadas com um misto de saudade e alegria.
“Eu queria mesmo me tornar famosa no mundo do samba”, recorda, ao lado de seu marido, Márcio Macrini, que há 30 anos acompanha o trabalho da mulher. No início, nos projetos da música. Hoje, no “Instituto de Mulheres Maria Bonita”, uma organização que a dupla criou para dar apoio a pessoas necessitadas, mulheres em situação de vulnerabilidade, principalmente. “Nosso lema é servir”, diz Neide, líder das campanhas que promove seguidamente.
“Nos anos 1970 já existiam locais de referência da música, em Brasília, como o Alvorada e Ritmo, o Brasil Moreno e uma casa no Gilberto Salomão, Fina Flor do Samba, onde eu ia sambar”
Na TV Brasília, Neide se apresentou no programa de Darlan Rosa, que era artista plástico, o mesmo que criou o Zé Gotinha, personagem das campanhas de vacinação do Governo Federal, e também idealizou a decoração externa do Memorial JK, em Brasília.
“Foi nesse programa do Darlan Rosa que um cara chamado Mucuri me viu e me convidou para ir me apresentar no Sargentelli. Fui e fiquei dois anos, em São Paulo. Sargentelli era uma pessoa alegre, brincalhona, gostava muito do que fazia e das mulatas, claro”.
Dois anos depois, Neide Paula voltou para Brasília e se vinculou à companhia de Ari Martins. Era um grupo de danças que viajava pelo Brasil. Me apresentei em várias cidades. Sambamos no Guarujá em Santos, e até no Rio Grande do Sul, em Pelotas, Rio Grande e São José do Norte. “Foi quando conhecemos a Escola de Samba Aguenta se Puder, em Pelotas, Um show, pois nunca tínhamos visto uma bateria acompanhada por metais, por instrumentos de sopro. O som era uma beleza”.
Casarão do Samba
O Casarão do Samba, onde hoje está instalado o Museu de Arte de Brasília, na área do Brasília Palace Hotel, funcionava sempre nos sábados. Foi uma casa muito importante para a música da Capital, que era frequentada por políticos, embaixadores, diplomatas, enfim. Naquele espaço se apresentaram estrelas da MPB e do samba, entre eles Jair Rodrigues, Erivelto Martins, Elza Soares, Alcione, Clara Nunes, a Guerreira, Emílio Santiago… “só gente da pesada”, recorda Neide Paula.
“O Casarão do Samba era a maior casa de show de Brasília. Embaixo da escadaria que leva ao piso superior, onde ficava o salão dança, tinha um hall, com sofás, onde funcionava a recepção. Naquela época as pessoas eram muito elegantes, quem ia só para dançar levava até três camisas. O varandão também era muito bom pra tomar um ar entre as dançarinas. Foram anos de ouro”.
A descrição é de Maíra Oliveira Guimarães, autora do Livro “O Museu de Arte de Brasília desde o Anexo do Brasília Palace Hotel”.
A escada
A escada que ficou na lembrança de Neide é a mesma que ela subiu na visita que fez no agora Museu de Arte, quarenta anos depois. Dando acesso ao piso superior, a escada tinha, também, um simbolismo, uma espécie de ascensão rumo ao topo da fama como sambista.
“Eu e minhas colegas de dança íamos para perto da escada ver quem estava chegando, se tinha algum famoso, político ou diplomata, gente de poder. Isso dava prestígio à casa. Era deles que vinham os aplausos de nossas apresentações, um incentivo que nos deixava muito feliz.
Neide Paula conta mais:
“O Casarão do Samba foi um espaço muito importante para a música em Brasília. Naquela época, logo no início da cidade, tinha só uma concorrente na noite da cidade, era a boate Tendinha, no Hotel Nacional. Mas, todo mundo queria conhecer o Casarão, sem dúvida de muito valor para nós, sambistas, cantores, artistas e empresários. Bate a saudade, sabe? ….”
Corpo Pintado
“Também sambei, e muito, no Carnaval de Brasília. E, bem antes de se conhecer a Mulata Globeleza, eu desfilei com o corpo todo pintado. Eu tinha um amigo que era artista plástico e sugeriu pintar o corpo. Isso foi em 1990…., quando eu tinha tudo em abundância, mas também tudo estava no lugar, entendeu”? O riso de Neide é inevitável.
Depoimento
Certa vez, o Hélio, ex-presidente da ARUC e hoje um dos produtores do portal “Memória da Cultura e do Esporte em Brasília”, levou Neide Paula para conhecer a sua escola de samba, a tradicional Portela, no Rio de Janeiro, onde foi muito bem recebida pela diretoria da agremiação.
“Lá, também fomos recebidos por um cara chamado Cabelo Frito, que nos esnobou. Disse que Brasília não tinha samba. Dona Ana, que era a mulher do presidente da ARUC, me incentivou. Disse assim: ‘Quando o samba começar e você entrar na pista e riscar esse tapete, cai no samba, arrasa!!!’ E assim foi, abri o espaço e as outras mulatas, sem saberem o que eu tinha de fôlego, ficaram de cara me vendo sambar. Dei o meu show”.
Felicidade
“Fui muito feliz nesse mundo do samba. E a minha mãe, que morreu em 2018, viu o meu sucesso. Ela se tornou a minha maior fã. Ela gostava muito de mim e não escondia de ninguém que adorava todo aquele meu sucesso”…