21 de novembro de 2024

A incrível descoberta sobre os shows musicais em Brasília

Por José Cruz e Hélio Tremendani

 “Sou apaixonada por museu e por história.  Para mim, é o melhor programa em qualquer lugar do mundo”

Com esse perfil, disposição e paciência para a investigação de longo prazo, a mineira Maíra Oliveira Guimarães elegeu o Museu de Artes de Brasília, o MAB, e suas várias ocupações, para escrever a sua tese de doutorado em Arquitetura, na Universidade de Brasília (UnB).

Construído no Setor de Hotéis e Turismo Norte, às margens do Lago Paranoá, o prédio, um dos anexos do Brasília Palace Hotel, serviu para tudo – alojamento, refeitório, clube esportivo e casa de shows – antes de sua ocupação definitiva, o Museu, em 1985.

Quando avançava nas investigações, que duraram sete anos, Maíra descobriu mais sobre o emblemático prédio, chegando a algo inesperado: nos salões do Museu de Arte de Brasília estão, também, as origens dos shows e da cultura musical na ainda jovem capital federal.

A obra de um prédio que envolveu “museu, esporte e samba” é capítulo fantástico nos 63 anos da cidade. E sem se afastar do tema central, o MAB, assim Maíra sintetiza:

“É uma das mais antigas e conturbadas obras na história da capital”

 Ponto de partida

 Em 2015, um ano depois de formada em Arquitetura, pela UnB, Maíra Oliveira Guimarães soube que o prédio do Museu de Arte, fechado em 2007, seria reformado. Sem imaginar as “surpresas que teria, mas, atraída por um assunto que domina, “patrimônio e conservação”, entrou na pesquisa.

“As descobertas foram além do que eu esperava”, disse ela. “Eu queria falar sobre a reforma de um museu e cheguei a uma história muito maior, uma história que se relacionava com o meu interesse em assuntos sobre patrimônio. O prédio em questão era um anexo do Brasília Palace Hotel e se destinou a várias ocupações”, explicou a arquiteta.

A investigação durou de 2015 a 2021. Todo esse tempo para recuperar a história e tentar saber: “Afinal, por que um edifício, construído nas origens da cidade (1960) e transformado em museu (1985) continuava fechado tantas décadas depois”? Quando Maíra fez essa indagação, aquele espaço estava em ruínas e interditado.  Era muito enredo para desatar.

Múltiplas funções

Foto: J.Cruz

“Passei mais de um ano pesquisando, conversando com professores e arquitetos e ninguém sabia para qual função o prédio havia sido construído. Até então não havia estudo, nada! A história do Anexo do Brasília Palace era de conhecimento só da primeira geração de moradores de Brasília, que podia se perder no esquecimento”.

No avançar da pesquisa a autora alcançava respostas: o prédio investigado teve uma variedade de usos. Originalmente, serviu de alojamento e refeitório para os funcionários do Brasília Palace Hotel. Depois, abrigou o Clube das Forças Armadas, com duas quadras de tênis, área de recreação e cinema. Jô Soares e Ângela Roro ali se apresentaram, numa época em que Brasília ainda era carente de shows.

As pesquisas continuavam até que, um belo dia… surpresa!

“Me disseram que a Neide sabia o que mais tinha funcionado ali, o Casarão do Samba. E que ela, inclusive, havia se apresentado naquele espaço”.

Mas, quem era Neide?

“Neide de Paula foi uma passista famosa em Brasília, uma dançarina do grupo do Pernambuco do Pandeiro seus Batuqueiros, que se apresentavam semanalmente na década de 1970, aqui na capital”.

A descrição resumida sobre a sambista  é de Hélio Tremendani, da ARUC, um dos fundadores do portal da Memória da Cultura e do Esporte em Brasília e que participou da entrevista com Maíra Guimarães.

 Casa noturna

Neide contou a Maíra que, de fato, se apresentara no Casarão do Samba, o ocupante, à época, do prédio que, tempos depois, abrigaria o Museu de Arte. Segundo Neide, no Casarão desfilaram nomes da elite musical daqueles tempos, como Jair Rodrigues, Wilson Simonal, Clara Nunes, Martinho da Vila e João Nogueira. “Além, é claro, os anfitriões do grupo Pernambuco do Pandeiro e seus Batuqueiros, sempre acompanhados pelas dançarinas Mulatas de Ouro”, escreveu Maíra na narrativa de 126 páginas da sua legítima epopeia.

Concorrentes

Neide de Paula, que será tema da próxima entrevista neste espaço, contou maravilhas para Maíra. Por exemplo, que o Casarão do Samba, criado por iniciativa da Associação Bancrévea, de Sobradinho, foi a primeira casa noturna de shows populares de Brasília, concorrente da boate Tendinha, anexa ao Hotel Nacional, frequentada pela elite candanga. Já os shows no Casarão atraiam a população festeira, em geral, tornando-se ponto de partida da Brasília culturalmente musical e embrião do hoje prestigiado Clube do Choro.

Anos de Ouro

Um pouco mais daqueles momentos está no depoimento que Neide de Paula deu Maíra, transcrito em seu valioso trabalho “O Museu de Arte de Brasília desde o Anexo do Brasília Palace Hotel”:

“O Casarão do Samba era a maior casa de 

shows de Brasília… Embaixo da escadaria

tinha um hall com sofás, era uma recepção…

A escada era um lugar importante… Naquela

época as pessoas eram muito elegantes,                      

quem ia só pra dançar levava três camisas.                         

O varandão também era bom pra tomar um                       

 ar entre as dançarias. Foram anos de ouro”.

Memória

“Tem pouca coisa publicada sobre o Casarão do Samba”, revelou Maíra. “Minha principal fonte foi o acervo digital da Biblioteca Nacional, onde também não há fotos daquela época”.

Maíra sugere buscar mais, muito mais:

“Ainda tem muito para se escrever sobre aquele espaço. A linha  do tempo dos eventos, por exemplo. O tempo cronológico de seu funcionamento é pequeno, sete anos, possível de pesquisar. Falta também a memória visual, que é pouca, pequena. Cadê as fotos mostrando o salão cheio”? indaga Maíra, mostrando que ainda há bom pedaço da história escondido, esperando por pesquisadores com bom fôlego.

Ocupante definitivo

Em 1980, a Novacap suspendeu a concessão de uso ao Casarão do Samba. Cinco anos depois, finalmente, o espaço abria as portas já como o Museu de Arte de Brasília.  Atualmente, acolhe, entre outras, obras de Tarsila do Amaral, Alfredo Volpi e Sérgio Rodrigues.

Depoimento

 “O processo todo foi muito emocionante. A importância da história é interessante, é rica, mas não é bonita”

A manifestação da autora do trabalho e revelada em tom triste, mas sincero. Afinal, ela tem base pra assim se expressar: pesquisou, conversou, ouviu, tomou dezenas de depoimentos, folheou outro tanto de livros e jornais, checou informações, comparou dados e datas, buscou fotografias, enfim.

A autora

Essa preferência de Maíra Oliveira Guimarães pelas artes e pela pesquisa foi explicada na entrevista de quase duas horas, quando contou que aqui chegou, com a família, quando tinha 10 anos, vinda de Belo Horizonte. Formada em arquitetura, pela UnB, em 2014, fez graduação simultânea, com especialização em restauro, pela Faculdade Politécnico de Turin, Itália (2011 a 2014). A produção acadêmica de Maíra “é voltada à história das cidades, dos prédios e também das pessoas”, como ela mesma descreve.

O livro

De tudo o que colheu escreveu um pequeno livro, lançado em 2020, chamado “O Museu de Arte de Brasília desde o Anexo do Brasília Palace Hotel”. São 126 páginas de informações sobre um valorizado espaço da Capital, não só pelo o que representa no conjunto do Plano Piloto quanto pelo o acervo histórico-arquitetônico que ali foi construído. Em 2022, Maíra concluiu a tese de doutoramento “Museus Possíveis: Histórias do Museu de Arte de Brasília, disponível na íntegra no site da UnB.

Com autoridade profissional para opinar, Maíra propôs que a região que abrange a Concha Acústica, o Brasília Palace Hotel e o Palácio da Alvorada seja transformado em um grande Parque, uma espécie de museu ao ar livre, não só pelas relíquias que ali foram construídas como para lembrar o simbolismo daquelas obras:

“As origens e o sofrimento da

cultura artística de Brasília foram vividos

 em tempos de muita repressão”

Orientadora

Toda essa epopeia de sete anos para recuperar informações e reconstruir parte da história da nossa Capital, Maíra Oliveira Guimarães teve Sylvia Ficher como orientadora, uma das principais referências quando se fala sobre a história de Brasília.

“Acredito que tudo isso que foi feito seja importante, mas depende das pessoas vão ler, que vão se interessar pelo assunto.  Fico orgulhosa do que coloquei, mas essa importância depende do que vai acontecer, da divulgação científica. Quem vai ler isso na internet, quem vai se interessar? Até aqui, o MAB é um grande parceiro, está articulando a impressão da minha tese. A expectativa é que isso aconteça, pois isso é muito importante”.

Para os brasilienses, em geral, a publicação é riquíssimo documento histórico de fatos envolvendo apenas uma pequena região da cidade, mas valorizadíssima pelo conjunto de prédios, em destaque o Palácio da Alvorada. E, independentemente das dúvidas da autora, ela já tem um reconhecimento maior a ser festejado, o de Sylvia Ficher, sua orientadora, que escreveu na apresentação do livro:

“Obrigado, Maíra, essas estórias mereciam ser contadas”