21 de novembro de 2024

CÁSSIA ELLER: No ritmo da saudade

 Por José Cruz

Coincidência ou não, o melhor da entrevista foi revelado ao final de duas horas de conversa, quando Nanci Ribeiro dos Reis exibiu um precioso CD da Polygram. Nele a faixa 8 traz a gravação de “Pedra Gigante”, de Gilberto Gil e Bené Fonteles, em que ela faz emocionante duo com a filha, já famosa, Cássia Eller.

Divulgação

Dona de um timbre contralto, nessa apresentação Cássia e a mãe revelaram toda a herança artística da família.

Cantora, compositora e multi-instrumentista, a autodidata Cássia Eller deixou os palcos nacionais da MPB prematuramente, em 29 de dezembro de 2001; ela morreu aos 39 anos, no Rio de Janeiro, onde morava, devido a problemas cardíacos.

Vinte e dois anos depois daquele fim de ano triste, Nanci continua morando no mais carioca dos bairros de Brasília, o Cruzeiro Velho, um dos redutos da MPB, do samba e do Carnaval. Tudo a ver, pois foi dessa mesma casa que Cássia Eller saiu do anonimato, cresceu e ganhou fama como uma das melhores intérpretes nacionais de sua geração, do rock, inclusive. De tal forma que a conceituada revista Rolling Stones Brasil a elegeu como a 18ª entre as 100 maiores vozes da música brasileira nos anos 1990. (FOTO: Dona Nanci na frente da casa)

Orgulho

Ter gravado com a filha é um dos maiores orgulhos de Nanci. Aos 80 anos, ela se mantém ativa em suas rotinas e com memória exemplar.  Também consegue falar sobre a carreira de Cássia sem as lágrimas de antes. Mas, o orgulho, a emoção e a saudade seguem marcantes em suas conversas.

Cássia não foi cantora ao acaso, apesar de não ter frequentado qualquer escola de música. Ela tinha veia artística, herdada da avó, Maria. Também lhe sobravam determinação e força de vontade, pois aprendeu a tocar violão em manuais e o idioma inglês ouvindo músicas dos Beatles.

“A arte do canto eu trouxe de mamãe, Maria, uma bandolinista de primeira. Meus tios e tias também tocavam na mesma orquestra.  Cantei muito na noite, escondida, é claro”disse Nanci.

 

Do casamento com Altair – “que um dia terminou” – Nanci teve quatro filhos além de Cássia: Carla e Cláudia, gêmeas, Rúbia e Ronaldo. As meninas cantam “muito bem”, mas só Cássia se tornou profissional.

Dom desde criança

“Cássia nasceu feita. A babá escutava rádio e cantava o dia inteiro, eram muito apegadas, e isso ajudou muito. Quando começou a andar eu já notei que ela seria artista circense ou de escola de samba. Eu incentivava comprando os instrumentos da Hering, de brinquedo, pianinho, sax, violão. Assim, ela foi conhecendo os sons. Ela nem sequer falava, mas já se interessava por música. Espichava o pescocinho mostrando que prestava atenção no que ouvia. O som a encantava. Ela tinha um ouvido absoluto”, relato emocionado da mamãe, que recebeu a reportagem da Memória da Cultura e do Esporte em Brasília para uma viagem no tempo.

Quando a família se mudou para Santarém, no Pará, ficou mais fácil comprar um violão, vindo da Zona Franca de Manaus. Cássia tinha 10 anos. Tímida, se negou a ter aulas de música com Paulinho, irmão do compositor Maurício Tapajós, que morava em Santarém. Até ameaçava se trancar no quarto a conviver com mestres da música para ensiná-la.

Assim, sem aprendizado tradicional, ficou sem o violão desejado, que só ganhou quatro anos depois, já morando no Rio de Janeiro, com a família. Era um clássico Giannini, referência top entre os instrumentos. Mas, ainda tímida, continuava longe dos professores de música, numa escola no Meyer, onde morava.

Mesmo assim, Cássia não perdia tempo e seguia o seu “aprendizado solo” tendo livrinhos e revistas de música, com métodos e cifras, publicados semanalmente, como única orientação.

“Era um método de aprendizado para violão e guitarra que eu comprava cada novo número que saía. Sozinha, ela aprendeu tudo por ali”, contou Nanci.

Mãe e filha com veias musicais eram cúmplices e parceiras. Tanto que, ainda com 13 anos, Cássia declarou, certa vez, à sua mamãe, num presságio estarrecedor:

“Vou morrer primeiro, porque não vivo um dia sem você

Recuperada da emoção dessa lembrança, Nanci continuou a narrativa:

“Cássia impressionava. Ela tocava todos os instrumentos de percussão, os de corda e os de sopro. Era autodidata mesmo. Mas, impressionantemente tímida em se tratando de assuntos musicais!”

Num festival de música promovido pela escola onde estudava, Cássia inscreveu uma composição que falava do relacionamento do negro com o branco. Porém, no dia do concurso ela não apareceu. Mas insistia afirmar que, apesar disso, seria cantora.

 Noites em Brasília

O pai de Cássia, Altair, paraquedista do Exército, era obrigado a mudanças constantes de cidades. E foi assim que ele veio com a família para Brasília, em 1982.

Foi na Capital Federal, aos 19 anos, que Cássia apresentou o seu primeiro trabalho artístico, quando participou de um teste para o musical, Veja Você, Brasília, promovido por Oswaldo Montenegro. Sua participação foi um sucesso. De todos os colegas que participaram só ela foi aprovada. O próprio Oswaldo reconheceu que se tratava de uma artista com espaço garantido no cancioneiro brasileiro.

Incentivada pelo ambiente musical da cidade, Cássia reinava nas noites de Brasília, fazendo sucesso em bares de referência musicais como o Bom Demais, entre outros. Nesses redutos desfilavam grupos que se tornaram famosos nacionalmente, como o Capital Inicial e o Legião Urbana.

Palavra de especialista

Ex-presidente da ARUC e uma das referências da cultura musical da cidade, Hélio Tremendani, lembra que os jovens se encontravam também numa esquina do Cruzeiro Velho, onde faziam verdadeiros concertos e, assim, se tornaram referência para a comunidade, praticamente sem qualquer lazer.

“Cássia ficava no estacionamento tocando e cantando, enquanto Jessé (Jessé Florentino Santos), também cantor e compositor, morava mais adiante. Mas os dois nunca se encontraram. Aqui em Brasília também moravam Ney Matogrosso, que era amigo de Vantuil, músico. Eles se reuniam embaixo da arquibancada da ARUC para ensaiar. O Cruzeiro era referência da cidade, tudo acontecia aqui, tudo sendo, também, forte referência para Cássia Eller.

BH e São Paulo

  Quando completou 21 anos, Cássia foi para Belo Horizonte com a amiga Zélia Duncan, mas não conseguiram evoluir profissionalmente. São Paulo foi a próxima parada, com nova temporada de dificuldades, passando fome, inclusive, no relato da mamãe Nanci.

“Eu já estava separada quando ela foi para São Paulo. Ralou muito, mesmo. Passou fome, inclusive. Mas o seu desejo de prosperar era tanto, que ela não falava nas dificuldades para a gente” (Nanci)

Cássia se preparava para entregar o apartamento em São Paulo e retornar para Brasília quando se encontrou na rua com um tio, empresário de artistas, que decidiu apoiá-la. Levou uma gravação para o amigo Mayrton Bahia, da Polygram, que se encantou com o que ouvira. Era o ano de 1993 e foi assim que Cássia Eller assinou contrato com a gravadora, começando nova e progressiva etapa no Rio de Janeiro, ingressando em definitivo no profissionalismo da MPB.

A partir daí foram novos tempos, novas gravações, participações em músicas de novelas, como “A Cor do Pecado”. E “estourou” com “Malandragem”, de Cazuza, com melodia de Frejat, em homenagem que ele fez à amiga Ângela Ro Ro. Dali em diante, Cássia partiu para o aplauso constante.

Ato final

 “Perto do final do ano de 2001 eu embarcava para o Rio de Janeiro. Passaria o Réveillon com minha filha, que faria o show da virada na Barra e me queria ao lado dela. Para mim seria o maior Réveillon do mundo. Já próximo do embarque, Cláudia, minha outra filha, recebeu uma ligação. Observei que ela tremeu e mudou a fisionomia. Me assustei. Não demorou para que começasse a chorar. Vi logo que era algo muito grave. Cláudia me confirmou que Cássia estava internada num hospital e que estava muito mal. Comecei a chorar, a gritar, estava desesperada. Uma senhora se aproximou e pediu para me abraçar. E disse no meu ouvido: O meu nome é Ângela. Em seguida veio nova ligação do Rio. O choro de Cláudia aumentou. Era a hora da morte de Cássia, no dia do meu aniversário”!

Chico Chico

Francisco Ribeiro Eller, o Chico Chico, tem 30 anos. É o filho único de Cássia Eller, tendo o baixista Tavinho Fialho como pai. Tavinho não chegou a conhecer o filho: ele morreu num acidente de carro, uma semana antes do nascimento do garoto, em 22 de agosto de 1993. Depois de alguns anos de disputas judiciais, Maria Eugênia Vieira Martins, companheira de Cássia Eller, ficou com a tutela definitiva de Chico Chico, à qual ele chama de “mãe”.

Foto: Renise Silva/ Divulgação

Vida que segue

 Chico Chico herdou de Cássia o gosto pela música, tradição na família que vem desde sua bisavó.

 “Ele ainda usava fraldas quando já se sentava na bateria e tocava, brincando, claro. Além do talento natural, o ambiente da casa era uma alegria só. Todo mundo se reunia lá. O pai, Otávio Coelho Fialho, o Tavinho, era um baixista muito bom. Mesmo assim, o meu neto não sofreu a cobrança, como os filhos de outros famosos, como Jair Rodrigues, Elis Regina, Roberto Carlos. Ele trabalha mais nos bastidores, é letrista e canta muito bem, tem um estúdio de gravação no Rio de Janeiro.

E é tímido como Cássia.

O dia que se abrir, vai estourar”.

O GALO

Um vistoso galo de metal enfeita a sala principal de Nanci Ribeiro dos Reis, em Brasília. Mineira, de Belo Horizonte, ela é torcedora do Atlético. “O meu pai, Waldomiro, estava na reunião que fundou o Clube Atlético Mineiro”, em 1908, diz Nanci, com orgulho.

Na minha família, quando menino nasce ele não chora, grita Galooo!!!

Das poucas lembranças que guarda de Cássia, Nanci exibe uma camisa do Clube Atlético Mineiro, que veste sempre que sai para ver um jogo do Galo e, assim, reforça a torcida com a imagem simbólica da filha querida.

Nos dias de hoje

Hoje, o núcleo familiar de Cássia Eller apoia e dá todo o suporte contextual para o espetáculo “Cássia Rejane – Muito Mais que Eller”, ambientado a partir de 1962, data do nascimento da cantora, até 1989, ano em que ela “estourou” nacionalmente com Renato Russo. O espetáculo recupera histórias de uma Cássia que só a mãe e os irmãos viram, através de lembranças contadas por Nanci, Carla, Cláudia, Rúbia e Ronaldo. Ou seja, Cássia está viva!