Por Hélio Tremendani e José Cruz
“É difícil encontrar outro lugar
que tenha tanta diversidade
e tantos talentos na música
como em Brasília”
Em um dos mais tradicionais redutos da cultura e da MPB em Brasília, o Feitiço das Artes, na Asa Norte, o papo rolou por quase três horas. Final de tarde, ambiente sendo preparado para mais uma noite de show, o entrevistado da vez se apresentava com a memória – e o privilégio – de ter dirigido o Canecão por 27 anos, intercalados em duas etapas. A conversa da vez é com Jerson Alvim.
Para os mais novos, o “Canecão Promoções Espetáculos Teatrais Ltda”, em Botafogo, no Rio de Janeiro foi a maior casa de shows e espetáculos musicais do país. Na sua primeira fase (1969 a 2004, com dez anos de intervalo) tinha 2.500 lugares sentados e 4.500 em pé. Fechado em 2008, a área do Canecão foi entregue recentemente a um consórcio alemão que deverá construir nova estrutura, incluindo espaço cultural multiuso.
Foi nessa fase áurea do Canecão que o carioca Jerson Alvim, perto de completar 82 anos, conviveu com grandes nomes música brasileira, estrelas do nível de Roberto Carlos, Os Quatro Baianos (Caetano, Gil, Gal e Bethânia), Vinícius, Toquinho, Maysa Matarazzo, Elis Regina, Erasmo Carlos, Alcione, Beth Carvalho. Zeca Pagodinho, Jorge Aragão, Elba Ramalho, Fagner, Gonzaguinha, Chico Buarque, Zé Ramalho, Ivan Lins, Djavan e por aí vai… E na rotina de trabalho, Jerson se pós-graduou em direção de espetáculos musicais, onde atua até hoje.
É sobre “aqueles tempos” – e os de agora –, sobre a música brasileira e a estrangeira que Jerson conversou com o repórter José Cruz e o sambista carnavalesco Hélio Tremendani, do Memórias da Cultura e do Esporte em Brasília. O depoimento não é apenas uma entrevista, mas uma aula de parte do show business brasileiro que ele viveu. Jerson entrou nesse ramo depois de aprendizado com personagens famosos da área, como Walter Clark, o grande impulsionador da TV Globo, criador do Jornal Nacional, levando essa emissora do último para o primeiro lugar em audiência. “Trabalhando e aprendendo sempre”, diz ainda hoje, humildemente. Vamos lá!
CHEGOU PARA FICAR
O Feitiço das Artes é a continuidade do Feitiço Mineiro, casa de shows criada por Jorge Ferreira (1959 – 2013)
Em novembro de 2007, Jerson estava em Brasília encerrando um ciclo à frente da Academia Music Hall, antiga Americel Hall, na Academia de Tênis.
“Eu estava de malas prontas para voltar para o Rio de Janeiro quando o Jorge (Jorge Ferreira) me convidou para ficar pelo menos por seis meses, tocando o Feitiço Mineiro. Entrei em dezembro de 2007 e estou aqui até hoje. Seriam só seis meses…”, lembrou Jerson mostrando satisfação no acerto de sua decisão de 16 anos atrás.
E por que ficou até hoje?
“É difícil se encontrar outro lugar que tenha tanta diversidade e tantos talentos quanto em Brasília. Eu encontro diversidade no Rio, diversidade muito grande de artistas cariocas, diversidade de ritmos… E a maioria já está agregada, já está engajada na cultura do Rio, na cultura carioca. E aqui em Brasília há um grande celeiro de talentos que introduz o que trazem de outros estados”.
Capital da República desde 1960, Brasília atrai, ainda hoje, nordestinos, paulistas, mineiros, cariocas, sulistas, gente de todo o Brasil que aqui chega e contribui para diversificar a cultura em todas as suas dimensões, a musical entre elas.
Essa diversidade que se observa de Norte a Sul e a oportunidade para a música nacional aqui se expandir foi observada por Jerson também nas entidades carnavalescas, como ele mesmo explica:
“Onde tem escola de samba neste Brasil que já conquistou oito títulos seguidos no Carnaval, como a ARUC, a recordista ARUC, aqui em Brasília? Das vinte escolas que conheço no Rio, a metade não tem a estrutura da ARUC. No mundo do samba, Brasília está muito bem representada”. É oportuno lembrar que essa tradição da ARUC se deve, também, ao constante intercâmbio das direções que se revezaram ao longo dos anos com entidades carnavalescas do Rio de Janeiro, como a Portela, por exemplo.
Para Jerson, o talento artístico está, inicialmente, acima dos interesses financeiros. “O que realmente atrai público é dar oportunidade à representação do artista dentro dos padrões que ele oferece”. Em outras palavras: “Quando se tenta olhar para o artista em benefício daquilo que a casa de shows propõe, normalmente a parceria não corre bem. Ele (artista) perde a espontaneidade, passa a trabalhar acima de tudo por interesses financeiros e se sobrepõe à criatividade”. Palavra de especialista.
O COMEÇO
“Meu contato com a música e com os shows foi a partir de 1962, quando comecei na TV Tupi e conheci alguns tipos de lideranças empresariais. Era o tempo do teatro de comédias e Carlos Duval era o meu diretor”, lembrou Jerson. Carlos Duval era um ator português. Radicado no Rio de Janeiro, se destacou no cinema, mas tornou-se especialista em direção de teatro.
Três anos depois, Jerson trocou a Tupi pela TV Globo e deu seguimento ao seu aprendizado de direção de espetáculos. Lá, conheceu a “grande força” de direção de Walter Clark, o criador do Jornal Nacional, o grande impulsionador da Globo, tirando a emissora do último e a colocando em primeiro lugar em audiência. “Walter Clark (1936 – 1997) era instinto puro. Ele conhecia todas as necessidades que uma televisão precisava para se realizar”.
OUSADIA DE UM OFFICE BOY
A entrada de Walter Clark no mundo artístico já é um show. Show de ousadia e de oportunidade. Jerson relembra esse momento:
“Walter Clark começou como office boy do Departamento Comercial da TV Rio. Um dia, o diretor comercial titular viajou. Naquela época colocava-se alguém no lugar e se rendesse bem assumia o cargo. Por isso, quem viajava tinha medo de sair, pois não sabia se, ao voltar, ainda estaria empregado. Para evitar esse risco, o tal diretor colocou um office boy para substituí-lo, Walter Clark, acreditando que com isso não correria riscos. Abusado na criatividade, Walter usou do direito do cargo e inovou em diversos setores do Comercial e tudo deu certo. Até triplicou o faturamento, dobrou a audiência e disputou a liderança com outras emissoras. Quando o titular voltou da tal viagem, o cargo estava muito bem ocupado. Colocaram o distinto senhor em outro lugar, mais acima para valorizá-lo, e Walter Clark seguiu dando o seu show de inovações. Foi o primeiro grande líder que conheci na vida”, disse Jerson.
OS MESTRES E O CLUBE DA ESQUINA
A escola de aprendizado de Jerson continuou com outros expoentes da gestão de nossas TVs: José Arrabal, na TV Tupi, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho e Augusto César Vanucci, na Globo. E quando pensou que não conheceria mais nenhum líder da direção do show business musical se deparou com Jorge Ferreira, mineiro de Cruzilha” – no Sul de Minas.
Jerson não podia imaginar que encontraria em Brasília um grande líder, condutor da cultura, um dos fundadores do PT (1980), do Clube da Esquina (1963), hoje museu, em Belo Horizonte. Mas, é preciso, antes, contar esta história, porque tem tudo a ver com o universo da música brasileira.
O Clube da Esquina, criado em 1963, ficava no encontro das ruas Divinópolis com Paraisópolis, bairro de Santa Teresa, em Belo Horizonte. Na origem desse grupo estão compositores, músicos e cantores Lô Borges, Milton Nascimento, Márcio Borges e Beto Guedes. Eles se encontravam nessa esquina, onde tinha um banco, que se tornou símbolo das reuniões dos talentos da música daquela época, dos quais Jorge Ferreira era um dos parceiros. Tratava-se de um clube sem sede nem diretoria, mas que se tornou famoso, pois até ex-presidente Juscelino Kubitschek ali conviveu e ajudou a consagrar o espaço como um dos mais valiosos da cultura musical de Minas e do Brasil.
Pois foi esse personagem musical, Jorge Ferreira, que convidou Jerson para permanecer em Brasília. E nessa parceria para shows se fortaleceu o projeto de Jorge – até conhecido como “um Homem da Noite” – estendendo-se por outras 11 iniciativas, entre elas o Bar Brasília, Mercado, Armazém do Ferreira, Bar Brasil e o Feitiço Mineiro na liderança da cultura musical.
“Foi assim que, em 2007, me acertei com Jorge para dirigir o Feitiço Mineiro. (Comercial da 306 Norte). Ele me perguntou quem eu gostaria de trazer para a iniciar a série de artistas que viriam. Respondi que precisava investir R$ 5 mil em passagem e hospedagem e mais R$ 10 mil para o Jorge Aragão, meu primeiro convidado”.
A proposta avançou e o show começou. Jerson cercou a região ocupada pelo Feitiço Mineiro e ali colocou telas de TV, pois o espaço interno não seria suficiente para abrigar tanta gente, como esperado. “A casa lotou”, relembra Jerson. Isso virou mesmo uma casa de show, com mais de 300 pessoas, lotação no espaço interno, centenas de gente pela rua, sentadas na calçada vendo show de Jorge Aragão. Percebemos que o público ficou muito feliz com o show, também porque podiam estar perto do artista. O ambiente incentivava continuar criando”.
O SHOW CONTINUA
Seis meses depois de Jorge Aragão, Jerson ligou para José Éboli, presidente da Universal Music. Queria que ele viesse ver o show da maior cantora de samba da atualidade, Dhi Ribeiro, que se apresentaria no Feitiço Mineiro. A carioca Dhi já havia passado alguns anos em Brasília, quando brilhou, inclusive, num show dos 50 anos da Capital, em 2010. Éboli aceitou o convite, veio e, imediatamente à apresentação, contratou Dhi Ribeiro para o cast da Universal Music.
No ano seguinte o calendário de eventos continuou, com João Bosco, seguido de artistas do Clube da Esquina. Vieram todos, menos o Milton Nascimento, que estava doente. Foi uma semana de festa para p 22º aniversário do Feitiço Mineiro.
O tempo passava, os shows musicais se sucediam e a popularidade do Feitiço Mineiro crescia. Baden Powell, Noca da Portela, Nelson Sargento, artistas famosos do samba por aqui desfilaram e ajudaram a fortalecer a imagem da casa de shows, que se mantém na liderança do show business de Brasília até hoje.
“A grande surpresa nisso tudo é que aprendi a lidar com Jorge e passei a entender que ele não era só um empreendedor de comércio, mas um profundo conhecedor da cultura brasileira, um intelectual, um excelente homem político que esperava o presidente Lula, naqueles anos de seus dois primeiros mandatos, na cozinha da Granja do Torto, onde cozinhava depois de uma pelada de futebol”. Bons tempos aqueles, relembra Jerson.
Essa viagem que Jerson viveu ele agrade a Deus, ainda hoje, quando lembra de suas origens, ainda jovem pelas noites cariocas: “Agradeço a Deus, nem sei por que fui chamado pelo Mário Priolli (1936 – 2018), que era o fundador e o dono do Canecão. Ele nunca disse por que apostaria num garoto de 26 anos para ser o diretor da maior casa de show da América Latina, sem nunca ter feito um só show”.
Nas lembranças e agradecimentos que faz, Jerson não esquece a importância das participações de Paulinho Pedra Azul, amigo que, para ele, “é um dos sustentáculos do Feitiço Mineiro e do Feitiço da Arte”.
CANECÃO, O SUSTO
E aquele momento de enfrentar o Canecão pela primeira vez (1968) como diretor, assustou?
“Pô! Imagina! Peguei uma casa com nome, mas praticamente vazia, sem contrato com patrocinadores, bilheteria parada. Como não ia assustar”? O Canecão funcionou de 1969 até março de 2008, com dez anos de intervalo. Nesse período, Jerson trabalhou por sete anos, saiu e voltou para ficar mais 20 anos.
Enfim, começaram os shows Início de 1969, era tempo de Carnaval e Jerson promoveu 15 bailes. Fez uma seleção dos melhores da cidade e os levei para o Canecão: Baile da Cidade, Baile dos Artistas, do Atlantic e do Bola Preta.
“A partir daí a casa embalou. Maysa deu o ponta pé inicial no desfile dos artistas, começaram os shows. Quem se apresentava no Canecão ganhava projeção nacional, se ainda não tivesse. O show continuou com um calendário incrível”, conta Jerson. Nível alto de estrelas que por lá passaram: Caetano Veloso, Gilberto Gil, Gal Costa, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Alcione, Bete Carvalho, Nei Matogrosso, Tom Jobim, Vinícius de Moraes, Toquinho, Clara Nunes, Lulu Santos, Tim Maia, Jorge Aragão… A minha rotina era de acerto de contratos, datas, inovações, enfim, que eu ficava aprendendo o tempo inteiro. Eu tive essa oportunidade. Brasileiro Profissão Esperança, com Clara Nunes e Paulo Gracindo, ficou oito meses em cartaz. Tinha texto de Paulo Pontes e canções de Dolores Duran e Antônio Maria. O inesquecível show de Betânia e Chico foi gravado no Canecão e o disco vendeu mais de um milhão de cópias”.
DUAS ESTRELAS: “TE VIRA”!
A rotina de Jerson não era só de alegria com os aplausos a cada sucesso no Canecão. Certa vez ele entrou numa enrascada e só ele poderia resolver. Veja aí:
“Um dia, Mário Priolli, dono do Canecão, me chamou. Fui na sala dele e lá estava Tom Jobim, por sinal num péssimo dia, pois o jornal da leitura diária dele, o Jornal do Brasil – JB para os assíduos leitores – tinha parado de circular. Tom foi logo dizendo: `Quero cantar aqui – no Canecão – de tanto a tanto´, já foi fixando a data. Eram três semanas que já estavam ocupadas, com boa antecedência pelo não menos famoso Chico Buarque… Ainda bem que os dois, Chico e Tom, se davam muito bem e conversavam, trocando palavrões na maior intimidade de amigos. No final, depois de muita conversa consegui ajeitar datas para os dois, sem perder uma das duas estrelas. Tom ficou com as três semanas que estavam agendadas com Chico e Chico voltou nas quatro semanas seguintes.
Houve épocas, segundo Jerson, que os shows eram variados. Por exemplo, Oswaldo Montenegro cantava às 16h; Lulu Santos às 20h e Gilberto Gil às 23 horas. Espetáculos para públicos de estilos bem diferentes. Desse tempo, Jerson revela que tem uma saudade: “Eu poderia ter feito uma foto com cada artista desses. Mas, nunca fiz isso. Eu tinha um respeito muito grande pelo artista, embora a proximidade com muitos. Bethânia, por exemplo, chegava para se apresentar e ia direto para o camarim. Ela me chamava e ficávamos conversando, enquanto se maquiava. Queria revisar o dia anterior, fazer correções que achava necessário e pedia opiniões. Ela me chamava de “meu afilhado”. Quando estava pronta, descia comigo e entrava no palco. Ali ela se transformava, era outra Maria Bethânia, um show. Tudo isso me emociona até hoje…”
Nessa avalanche de espetáculos, qual foi o melhor, qual o que mais lhe agradou?
“Não tem como responder. Não tem como comparar. Eram espetáculos bem diferentes. Mas todos foram importantes. Todos fizeram história. Quem se apresentou sem nome virou sucesso, quem era sucesso se realizou. Ninguém fracassou”.
A FORÇA DO CANECÃO
A força do Canecão era impressionante. E, para mostrar a importância da marca “Canecão”, Jerson contou o seguinte episódio:
“No final dos anos 1960, a TV Record era líder de audiência. Tinha um musical todos os dias; a Globo tinha humorísticos maravilhosos, principalmente com Chico Anísio. Precisávamos de algo diferente para abrir o Canecão. Selecionamos cinco artistas para as primeiras temporadas, começando com Maysa Matarazzo, Elis Regina e Jair Rodrigues, Chico Buarque e Chico Anísio. Maysa estava há dois anos na Europa. Todo mundo queria vê-la aqui no Brasil, depois desse tempo. Consultei a agenda e ela já estava contratada para um show na boate Sucata, na Lagoa, no Rio de Janeiro. Fui falar com Ricardo Amaral, que era o dono da boate. Expliquei sobre a abertura do Canecão e Ricardo, numa boa, abriu mão do contrato com Maysa. “É presente meu”! Até as passagens dela que já havia comprado ele doou. Foi assim que pudemos fechar contrato com Maysa, que ficou dois meses se apresentando, de terça a domingo”. O repertório era maravilhoso e incluía o nostálgico “Meu Mundo Caiu” e “Ligth My Fire”, sucesso da banda norte-americana The Doors, lançada em 1967.
A força da marca Canecão era, também, proporcional ao susto que muitos artistas sentiam quando viam o tamanho da casa. “Muita gente não queria cantar lá, principalmente os que estavam acostumados a se apresentarem em boates, bem menores. Se assustavam com o tamanho da casa. Teve um cantor que olhou o palco e decretou: `Não canto aí, não´. E foi embora”, relembra Jerson.
A TRISTEZA DO AMIGO POETA
Quando Maysa morreu (1977) num acidente de carro, na ocasião em que entrava na ponte Rio-Niterói, Jerson Alvim desabou de tristeza. Nessa ocasião, ele revelou o seu lado poeta ao compor a letra de “A chuva caiu”, musicada por Sthel Nogueira. Jerson cantarola a primeira estrofe. Olhos baixo, ele procura no seu celular o link da música. Silêncio… e mostra a sua composição de pura saudade, que começa assim:
“E a chuva caiu e ninguém viu
O meu amor ir embora
Tanto tempo passou só a saudade ficou
Morando na minha vitrola
Passo a noite escutando os velhos discos rodando
As canções românticas de outrora
Ouço “Meu Mundo Caiu”, você conseguiu
Dar um fim à nossa história…
Neste início do ano 2023, perto de completar 82 anos, sentado na sua mesa cativa no Feitiço das Artes, onde é seguidamente interrompido por cumprimentos e abraços de amigos, Jerson Alvim vive ali o seu mundo real, o mundo que embalou a sua vida inteira, o mundo da música e dos shows que se revezam, sob a sua direção, numa das casas de referência das noites brasilienses.
Duas horas de conversa e Jerson continua didático nas respostas de um mundo que ele conhece em detalhes:
Quais as diferenças entre dirigir o Canecão e o Feitiço?
“No Canecão se oferecia oportunidades de se lançar alguém e, na maioria, se apresentavam artistas consagrados. Já no Feitiço se dá a oportunidade de lançar muita gente que tem o talento, a virtude de passar pelo gargalo da MPB. Só aqui, conheci dez ou 15 artistas com esse roteiro. E as duas casas têm grande relevância na cultura da Música Popular Brasileira”.
Mas, tem mais:
“Qual o estado brasileiro que não tem representante cantando aqui no Feitiço? Mas tem muitos estados que não tem artistas que cantaram no Canecão”, conclui Jerson.
Jerson faz uma pausa e demonstra que ainda há espaço para seguir mais um pouco. Vamos lá, afinal a oportunidade de aulas como essa é muito rara.
Então, depois do samba, quais as suas preferências? Há espaço para a música estrangeira?
“Desconheço a música internacional. Com raríssimas exceções presto atenção”, diz Jerson. E conclui:
“Meu país é tão fértil em criação, em composições, que não preciso analisar o que vem dos outros. Mas as músicas lá de fora que conheço, algumas mais do passado, minha maior admiração é pelos Beatles. Eles não foram apenas um processo musical, mas social. Com eles mudou-se um processo, mudou-se hábitos como o corte dos cabelos. A música afetou diretamente a cultura em todos os sentidos, a vestimenta, inclusive, e postura social. Eles revolucionaram o mundo, o corte das calças, tipo boca de sino. A sociedade se transformou pela música dos Beatles, nunca vi nada igual. O mundo inteiro copiou e seguiu”.
E voltando à música brasileira:
“Tem tanta coisa boa nos instrumentos, por aqui, que pulsa no coração. Já notaram como o país é fértil? Os maiores percussionistas são brasileiros. Olha o que fez Naná Vasconcelos”
Juvenal de Holanda Vasconcelos, conhecido como Naná Vasconcelos foi eleito oito vezes o melhor percussionista do mundo pela revista americana Down Beat. Ganhou oito prêmios Grammy. Revolucionário na sua arte, era considerado uma autoridade mundial em percussão, a partir dos batuques dos tambores das nações de maracatu. Naná conferiu erudição a instrumentos de origem popular, chegando a gravar concertos para berimbau e orquestra, ainda na década de 1970.
Jerson encerra:
“A pulsação do brasileiro está na música, toda música do Brasil pulsa no coração. Dentro da que mais me emociona é o linguajar do samba. É um linguajar popular, não tem sofisticação. Olha o que fez Cartola, o que ele escreveu, o que ele disse de forma simples. O poeta do samba. Olha as frases dos versos de Jorge Aragão, do Paulinho da viola, Nelson Cavaquinho. A gente entende tudo, tem sentimento. Então é caso para ser estudado. Em vez de ficar estudando o fenômeno Rolling Stones, vamos estudar os nossos primeiro. Vamos saber como Noel Rosa se inspirava para escrever o que escrevia. Isso me interessa muito. O samba tomou conta da minha vida”.
O bate papo se se aproxima do final, a noite está chegando e daqui a pouco começa mais um show no Feitiço das Artes. As perguntas diminuem e fica espaço para Jerson encerrar esta valiosa aula sobre uma de nossas mais caras culturas, a música.
“Por enquanto não planejo nada. Enquanto não tiver certeza de que o meu estado de saúde vai melhorar… Vou viver o dia a dia. Viver o amanhã é frustrante, como pode ser compensador. Perto dos 82 anos não estou mais aqui para viver emoções, preciso um pouco de sossego. Não me programo para nada. Se eu puder, quero viver mais uns anos, quero fazer mais umas coisas, principalmente nessa parte de cultura. Mas preciso estar com saúde para isso… Não estou mais aqui para viver emoções, preciso um pouco mais de sossego. Se eu puder, quero viver mais uns anos, quero fazer mais umas coisas, principalmente nessa parte de cultura, mas preciso estar com saúde. Vou viver o meu dia a dia. Eu gosto é de samba!”