Por Hélio Tremendani e José Cruz
Ainda criança, Paulão aprendeu o que significava “Vamos à luta”. No início, luta era briga, mesmo! Nos tempos de escola, um olhar atravessado já era motivo para sair no braço.
Hoje, Paulão é consagrado Mestre da Capoeira, professor, sambista, desportista e o terceiro entrevistado da “Geração Dom Bosco de Educação Física”
Com o tempo, o que era briga se tornou coisa séria, profissão, inclusive, com lutas em cima de um ringue, com juiz e muita gente na arquibancada gritando para ver uma boa pancadaria.
O começo
Em Brasília desde 1957, o paulista José Paulo dos Santos, o Paulão, teve uma vida de lutas, no braço ou na disputa por um bom lugar na sociedade, enfrentando a tal de “discriminação”.
Chegou criança por aqui – não lembra com que idade nem a que tem atualmente…
No início, foi morar com a família num barraco na Fazenda Ave Branca, hoje a QR 18, em Taguatinga, com mais um irmão e três irmãs, filhos de Maria de Jesus com José dos Santos, sergipanos. O pai foi trabalhar como mestre de obras na Pederneiras, uma das construtoras que ergueu a Esplanada dos Ministérios.
Doação e cobrança
Com fala emotiva, Paulão lembra onde construíram uma cabana, com cobertura de palha de coqueiro, logo que aqui desembarcaram.
“Depois, chegaram madeiras, restos de obras, e construímos uma casinha melhor. As casas não tinham portas, era tudo aberto, porque todo mundo se respeitava, todo mundo era amigo os seus vizinhos. O terreno foi “doado” pelo então presidente Juscelino Kubitschek. Era um “presente” para os candangos, dizia a autoridade, quando visitava aquelas comunidades pioneiras.
“Ele mesmo ia avisar sobre a doação, cumprimentava as pessoas, abraçava as crianças. Tinha uma popularidade muito grande, todos gostavam dele”.
A tal doação era na palavra. Por isso, os contemplados iam delimitando os lotes. Faziam a medição, esticavam uma linha e marcavam a propriedade de cada família.
Dia da surpresa
Porém, tempos depois, veio a surpresa! Doação coisa nenhuma! Aquela gentileza era coisa de político, pois cada morador tinha que pagar pelo terreno que já ocupava. Decepção geral.
“Um dia, veio a turma da Belacap (empresa que administrava a área pública da capital, à época) e começou a pressão para que os moradores pagassem pelo terreno que ocupavam. Lembro que eu ia pagar o carnê todos os meses”, conta Paulão sobre o presente grego recebido. “Só depois de tudo pago é que liberavam a escritura”.
Hoje, profissional das artes marciais, professor e prestigiado capoeirista, ele recorda os seus primeiros anos por aqui, quando a capital estava em construção, com sua maior área ainda era poeira e barro.
Pernada e capoeira
Com o tempo, o nome de Paulão ficou vinculado à implantação e desenvolvimento da capoeira em Brasília. Ele conta que tudo começou com uma das brincadeiras entre os garotos de então, quando praticavam a “pernada”.
“Pernada Carioca eram duas pessoas, uma atacando e a outra se defendendo, que simulavam um golpe com a perna ou uma cabeçada. Essa brincadeira era acompanhada em rodas de samba. O adversário vinha me agredir e eu me defendia com uma pernada. Historicamente, era uma técnica que simulava ataque e defesa, que começaram a ser ensinadas em academias, lá nos anos de 1930. Era a origem da capoeira”, lembra Paulão.
Tablado
Já adolescente, entre uma pernada e outra, Paulão vendia “vassourinhas”, que um vizinho, Doda, fabricava para crianças.
“Doda era um cara perigosos. Era um pernambucano metido a brigador. Era muito bom de pernada. Nem a Polícia chegava junto”.
Um dia, Doda e Paulão capinaram um lote em Taguatinga e ali colocaram um tablado para jogar pernada, sem imaginar que estavam implantando a capoeira na Capital da República, ainda deserta, comparada aos dias atuais.
Para reforçar o que faziam, Paulão e Doda passaram a contar com um livro importante, lançado à época pelo consagrado Mestre Lamartine Pereira da Costa, uma das maiores referências mundiais em educação física. Em 1961, Lamartine lançou dois livres, “Capoeira sem Mestre e, pouco depois, “Capoeiragem – A Arte da Defesa Pessoal Brasileira”.
Ao som do berimbau, do atabaque, das palmas ritmadas e o jogo de corpo, gingando e simulando uma luta, lembravam o tempo da escravatura, quando os negros, tristemente, eram até proibidos de dançar.
Paixão pela capoeira
Paulão lembra da primeira turma de capoeira que se formou em Taguatinga. Além dele e Doda, tinham o Catielba, o Marcão, Sula e Marco Antônio.
Em 1961, eles estudavam na Escola Classe nº 1, quando viram um berimbau pela primeira vez. “O professor João, de História, nos viu jogando pernada e no dia seguinte levou um berimbau. Aquele instrumento marcou minha lembrança, fiquei apaixonado e foi então que comecei a investir na capoeira. Quando comecei a ficar mais espertinho vinha para o Plano. Mas era difícil chegar aqui. Não tinha estrada, era um buraco só e muito eucalipto.
Nessa época, Paulão improvisou um berimbau usando uma lata de Leite Ninho amarrada ao bambu com um arame e dali tirava o som, “quebrando o galho” para marcar o ritmo da cantoria.
Com o tempo, Paulão foi estudar no Elefante Branco, até hoje uma das escolas públicas de referência na Capital. Lá tinha aula de capoeira. A calça para lutar era feita de saco de farinha, branco, cor tradicional da veste do capoeirista.
As brigas continuavam na rotina de Paulão. Na escola, “o pau também comia… Era briga de rua, mas não envolvia arma, era na porrada mesmo”, recorda Paulão, rindo muito daqueles bons tempos. “Depois da briga, todo mundo ficava amigo e se abraçava. Era muito diferente de hoje”.
Os estudos
No terceiro ano, Paulão foi reprovado e foi chamado pela Professora Zenaide. Ela deu uma lição inesquecível. Falou que a bagunça que ele fazia e as brigas atrapalhavam o seu aprendizado. “Aquilo marcou a minha cabeça. Mudei mesmo a partir daí”, diz Paulão.
Depois, ele foi estudar no SENAI, mas no intervalo das aulas ia treinar capoeira. Lá, se formou como o segundo melhor aluno do curso de tornearia e foi indicado para trabalhar na Varig, no Aeroporto.
“O torno e o micro torno eram a minha especialidade, fazia as peças sem sujar o ambiente, só as mãos”, recorda. Dali, foi parar na Tornearia Gastone, de um italiano, enquanto estudava Eletrônica no Colégio Objetivo.
As lutas
Enquanto estudava, Paulão treinava judô, capoeira e telecatch no Clube Nipo Brasileira, em Taguatinga. O professor era o Dr. Who. “Com 21 anos, eu era faixa marrom (que antecede a preta). Eu era o bambambam no judô”.
Em 1969, quando ainda estudava no Colégio Objetivo, chegou em Brasília Waldemar Santana (1929 – 1984), consagrado lutador de boxe, luta livre, jiu-jitsu, capoeira, caratê e vale tudo. Com a Família Gracie, ele ajudou a difundir as lutas esportivas pelo país. Morreu aos 57 anos num acidente de carro.
À época, o Professor Paro era o mais destacado lutador de Brasília e, por isso, aceitou o desafio de lutar com Waldemar Santana. A luta durou 45 segundos e Paro saiu do ringue com o braço quebrado…
Algum tempo depois, a revanche, no ginásio de esportes da Polícia. Paulão foi com o amigo Jorge, que era sobrinho de Waldemar. Os dois entraram de graça. Começou a luta e outra vez braço quebrado, dessa vez com recorde, 35 segundos…
Paulão decidiu treinar com Waldemar Santana. Hoje, continua reconhecendo a importância daquela decisão. “Eu Não tenho dúvidas, Waldemar foi o meu grande mestre, o cara que me ensinou tudo o que sabia”.
Hélio Tremendani, hoje mais para a cultura musical do que para as lutas, tentou o boxe na mesma ocasião. Não deu certo.
“Me apresentaram para o Waldemar, conversamos e ele começou a me ensinar. Não certo, mas ele ficou meu camarada”.
Paulão, ao contrário, continuou nos treinamentos. Ele e Tonhão, outro da turma do “vamos pro pau”. A dupla se deu bem, pois tinham aula de graça com Waldemar e ganhavam comida de graça. Em troca, davam aulas para os alunos dele.
Com Waldemar ensinando a história era outra. Até então, Paulão praticava mais a luta livre, agarrar, chutar, socar. Mas, com Waldemar, tinha que aprender jiu jitsu, caratê, boxe e capoeira.
“Com Waldemar, a conversa era outra. A gente era um lutador completo. Quem treinava com ele podia ir pra luta, mesmo! E eu tinha o instinto de lutador”
Esteio
Fora das aulas, Paulão era o “esteio” do grupo liderado por Waldemar Santana. Isto é, o cara que estava pronto pra brigar a qualquer momento, judô boxe, capoeira…
Eu ia a todos os campeonatos e voltava campeão. Cheguei a ser tricampeão da luta greco-romana e vice-campeão brasileiro de boxe, na categoria peso-médio.
Reforço
Waldemar trouxe da Bahia o Sansão, para ensinar capoeira. Sansão era amigo do Manoel Bonfim, o “Boa Morte”, que dava aula de boxe. Ubirajara, o Bira, dava caratê, e o Eri Sardela, que era um delegado, dava aula de jiu jitsu. Nós tínhamos a nata dos mestres das lutas. E ainda tinha o Antônio Carlos Testa, um mineiro que estudava aqui em Brasília e se tornou Mestre em caratê. Mas, Paulão guarda destaque para um mineiro, até hoje reconhecido por seus alunos:
“Eu treinei com o Testa. Foi meu grande mestre no caratê, uma das minhas referências”
Persistência
Nessa fase de aprendizados e lutas, Paulão faz uma correlação: não era apenas o lutar pelo lutar. Mas, tinha tudo a ver com “a persistência do negro, a luta pela vida para não ficar por baixo. Faz parte da origem da raça”, explicou.
“Minha educação era do tipo apanhou na rua, apanha em casa. Aprendi que nunca queria ficar por baixo. Se aparecia alguém querendo humilhar por causa da cor, eu resolvia na porrada”!
Discriminação
Da teoria para a prática: a primeira vez que Paulão sofreu discriminação foi no Clube Primavera, em Taguatinga, que reunia os 200 empresários mais ricos da cidade. Domingo era dia de baile, “dia de ver as gurias bonitas”. Para poder frequentar, o amigo Samuca apresentou toda a documentação para que Paulão se tornasse sócio do clube. Porém, o seu nome não foi aprovado. Motivo: era negro!
Para resolver o problema, Paulão juntou a turma que pulava o muro e pau quebrava no baile. Um dia, dois moleques bateram no “Seu Vasco”, que era o secretário geral do clube. A turma de Paulão entrou em campo e acabou com a valentia da molecada. E aí tudo se resolveu. Criaram uma categoria de “Sócio Atleta” em que os negros eram admitidos.
Vestibular
Em 1979, Paulão entrou em quinto lugar para o curso de Educação Física da Faculdade Dom Bosco. “Aprendi a nadar em uma semana pra não ser reprovado”, recorda.
Na faculdade, Paulão se decidiu pela luta-livre, quando recebeu o desafio de Zulu, que dividia com Rickson Gracie o pódio de melhores do Brasil.
O maranhense de São Luiz, Casimiro de Nascimento Martins, conhecido por Rei Zulu, lutou até os 63 anos. Era especialista em vale-tudo e viajava pelo Brasil desafiando lutadores. Veio a Brasília e Paulão aceitou o desafio, numa luta que “parou a cidade”. O árbitro foi Hélio Gracie, o patriarca da família que dominou as lutas no Brasil por longos anos.
Paulão perdeu. “Ele meteu o dedo no meu olho. Saí cego do ringue”, garante. Eu ia continuar lutando, mas o doutor Fleury Machado, que era o meu médico, jogou a toalha.
Depois dessa, Paulão voltou à Faculdade Dom Bosco e foi chamado à sala do Professor Mileno, diretor à época e uma das referências na educação física brasileira.
“Tomei uma bronca inesquecível, uma aula, uma lição. Disse que, agora, eu era um professor, um educador, não pode ficar subindo em ringue para lutar. Valeu! Tomei um norte na vida”
Nessa decisão, Paulão tomou como exemplos os seus “Mestres” no curso da Dom Bosco, como os consagrados professores Feijão, Mingo, Bicalho e a Professora Teia. Tinha mais, o Nilton da ginástica e Ary Façanha de Sá, ex-atleta olímpico do atletismo.
“Só tinha fera” nessa Faculdade, reconhece. Eles impunham respeito, uma grande lição. Mas, um se diferenciava, “o meu Mestre João Oliveira”, disse Paulão. “Quem estudou com João Oliveira tinha que ter postura. E eu passei a ser isso”.
Hélio Tremendani, participando da entrevista, confirmou:
“De fato, João Oliveira fazia a diferença. E tenho orgulho de dizer que era como se eu fosse filho dele”
Desafio
Dos ringues para o samba: em 1989, “três negrões” abriram o “Boca do Balão”, o primeiro bar de samba de Brasília, no Gilbertinho, o lugar chic da sociedade brasiliense, onde a elite se reunia nas horas de lazer.
“Era o lugar mais preconceituoso de Brasília, só branco circulava por lá”, diz Paulão que, com Julinho César (filho de Julinho do Samba, compositor) e Ubirajara Mariano de Castro, o Bira Negrão, compraram o tal bar e ali fizeram sucesso com samba de primeira, por cerca de três anos.
“Sábado à tarde o point do sambão e pagode de mesa de bar era lá mesmo. Derrubamos o preconceito, porque o som era de primeira e os brancos começaram a frequentar, o pessoal das embaixadas e até militares iam pra lá. Vendíamos, em média, 100 caixas de cerveja por sábado”, recorda Paulão.
ARUC
Foi nessa ocasião que Paulão ingressou na ARUC – o mais carnavalesco e premiado clube de samba de Brasília. “Fui pra ARUC convidado pelo Sabino, que era o presidente na época. Milton de Oliveira Sabino, era um cara simples, dois metros de parceiro, que morreu em 1980, lamentavelmente”.
Bira e Abelardo, do handebol, recepcionaram Paulão, e a história dessa modalidade começou a mudar em Brasília. O time foi reforçado com jogadores do Cota Mil, onde um diretor resistia à entrada de negros no clube. Resultado: foram todos para a ARUC, e já no ano seguinte o time ganhava o Brasileiro Junior, em Santo André (SP). Em seguida veio o bicampeonato. “O time era uma máquina”!
Em 1984, Paulão criou a Associação Afro-Regional de Capoeira do DF, uma academia em Taguatinga. Fez concurso para a Secretaria de Educação e foi aprovado mas, sempre vinculado à capoeira, sua paixão.
“Atualmente, trabalho com 80 crianças Down, cadeirantes e autistas, no Centro Educacional Nº 6 de Taguatinga, pelo Centro de Iniciação Desportiva (CID). Temos muitos ex-alunos dando aula de capoeira pelo mundo. Mas o mais importante é que os meus alunos de ontem, quando me encontram na rua, me cumprimentam, me respeitam.
“O Professor Mileno tinha razão, quando me alertou que eu era – e sou – uma referência para os meus alunos”