15 de janeiro de 2025

Uma Piauiense inquieta e vibrante

Em 13 de maio comemora-se a libertação dos escravos e o Dia de Nossa Senhora de Fátima. É, também, o aniversário de Dona Dedé, muito conhecida no mundo do atletismo e dos corredores de rua. Aos 83 anos, ela ainda frequenta pódios e faz a festa.  Pelo seu exemplo de atleta master prestamos esta homenagem, incluindo Edelswitha Amorim Trindade, a Dona Dedé, no patamar da Memória da Cultura e do Esporte de Brasília

Quando provocada, a memória viaja nas centenas de corridas que disputou. Falando sobre a sua trajetória no atletismo, Edelswitha Amorim Trindade expande alegria e entusiasmo. E relembra o distante 1989, quando estreou nas corridas de rua. E vieram outras, num percurso que dura até hoje…

Foi variando a rotina com treinos e competições, que ela acabou com uma dor lombar e foi isso que a levou ao desafiador universo das competições. Dona Dedé viajou muito, de onde guarda lembranças maravilhosas de pessoas, provas que disputou e pódios que conquistou: Japão, Estados Unidos, Paris, Argentina, África do Sul, Chile, São Paulo, Rio de Janeiro, Curitiba, Regiões Norte e Nordeste e muito mais estão na geografia esportiva dessa mulher vibrante.

“O médico me receitou caminhadas como uma das terapias para as dores. pouco depois comecei a dar passos rápidos, trotes. Em seguida, veio a corrida. Eu tinha fôlego e não sabia. Foi assim que desabrochou em mim esse entusiasmo pelas corridas de rua”

O resultado dessa longa correria está na sala principal de seu apartamento, em Brasília. São centenas de troféus, placas, medalhas e uma pilha de jornais com reportagens contando a trajetória de Dona Dedé.

A primeira corrida

Sem saber onde estava se metendo, viveu aventuras. No final de 1989, Dona Dedé disputou uma prova de 10km, no Parque da Cidade, em Brasília, sem qualquer orientação técnica. Na raça! Aos 49 anos ela vestiu – acredite! – uma bota e foi para o asfalto correr. Era uma prova que seria “na brincadeira”. Mas, o empenho foi tanto que Dona Dedé passou mal. Além de ter forçado a barra, ela havia comido cuscuz antes da largada… Precisou ser atendida na ambulância dos Bombeiros. Resistiu à orientação para ir a um hospital e voltou ao percurso, que terminou em 1h14min. Na prática, foi uma estreia “sem noção”.

Mas… surpresa!!!

Na hora da premiação por faixa etária chamaram o seu nome três vezes…. “Edelswitha”… Além de o locutor não pronunciar o primeiro nome de forma correta, dificultando que ela identificasse a chamada, Dona Dedé nem sonhava com pódio já na primeira corrida.

“Com esse nome – Edelswitha – deve ser uma estrangeira”, disse o mestre da premiação, até que chamou pelo nome todo: “Edelswitha Amorim Trindade”. E, então, a surpresa com o resultado: Dona Dedé havia conquistado o terceiro lugar na faixa etária dos 49 anos. Foi assim que chegou ao pódio já na corrida de estreia.  Maria das Dores Ferreira, campeã, e Teresa Luzia, segunda colocada, foram as concorrentes. A medalha de bronze que Dona Dedé ganhou tornou-se o primeiro incentivo para que ela não parasse, até chegar hoje, quando completa 34 anos de intensa e prazerosa competição.

 

“Não sabia nada sobre corridas. Fui para o Parque com roupa pesada, sem estratégia de prova, nem sabia o que era isso… E as caminhadas para tratamento de saúde se transformaram em um prazer muito grande até hoje”

Mudanças de rumos

Em 1991, Dona Dedé foi para a charmosa Maratona do Rio de Janeiro, quando já tinha noções sobre o esporte que praticava. “Até hoje essa prova mora no meu coração. Foi a melhor que já disputei. Que percurso gostoso, que visual maravilhoso”, recorda.

A Maratona de Porto Alegre também está entre as favoritas da atleta, “com percurso plano é uma prova boa para melhorar o tempo”, avaliou.

Orientação e acompanhamento mais sérios vieram em seguida com um prestigiado técnico, o saudoso professor Mário Cantarino, um estudioso do esporte e do atletismo, em particular.

“Cantarino me ajudou muito, na postura, nas passadas, no desempenho ao longo da distância…”

Da rua para a pista e lá estava Dona Dedé, novamente no Rio, dessa vez no Campeonato Brasileiro de Atletismo Master, na tradicional pista do Estádio Célio de Barros, no complexo do Maracanã. Ali, ela também foi para o pódio nas três provas que disputou em sua faixa etária, os 3km, os 5km e os 10km. Assim como na rua, ela também tinha bom desempenho nas competições de pista.

Naquele início de carreira, Dona Dedé corria de forma desengonçada e chamava a atenção. Sem a coordenação adequada de braços e pernas, também balançava a cabeça.

“Chegaram a me chamar de tortinha…” – disse ela, com um sorriso escondido, pela forma de como era conhecida. E contou:

“Um dia, numa prova aqui em Brasília, eu me aproximava de um determinado ponto e uma pessoa falou… lá vem aquela mulherzinha que corre tortinha” …

“Aquela tortinha é a minha mulher”, respondeu Beto, marido da corredora, que acompanhava a prova.

Nesse instante, a entrevista ganha um silêncio inesperado. A falante Dona Dedé para por uns instantes e se emociona ao lembrar “do Beto”, Roberto Vasconcellos Ribeiro, seu segundo marido, que morreu em 2018.

“Beto foi o meu porto seguro. Comprava os alimentos, fazia as minhas vitaminas, me incentivava e me acompanhava nas provas…”

Vida que segue. E seguiu.

Um novo técnico

Encerrada a fase com Mário Cantarino, Dona Dedé passou a treinar sob a orientação do técnico João Sena. Mas ela não era muito disciplinada para cumprir as regras de uma corredora de seu nível, motivo de várias lembranças e risadas.

“Sena já treinava a Carmem de Oliveira (primeira sul-americana a correr a maratona abaixo das 2h30) e isso me incentivou treinar com ele”, disse a corredora.

O que Sena não conhecia era o potencial e a disposição daquela mulher, que facilmente se incorporou aos jovens atletas de então, no Clube de Atletismo de Sobradinho (CASO).

 

“Conheci Dona Dedé numa meia maratona do Rio. No dia combinado para começarmos o trabalho, em Brasília, ela chegou na pista toda pronta para o treino, suando muito. Dona Dedé, que já tinha 51 anos, veio correndo dede a sua casa, no Núcleo Bandeirantes até Sobradinho”

Ou seja, Dona Dedé correu 25km para ir treinar… Para quem não conhece o traçado de Brasília, ela saiu de casa, atravessou o Plano Piloto até chegar em Sobradinho, cidade satélite da capital. A maior parte do percurso fez por uma estrada federal, movimento intenso de caminhões de carga e uma exaustiva subida de serra.

O que João Sena não sabia é que Dona Dedé corria escondida. Ela ri daqueles tempos em que abusava do ótimo fôlego e fazia uma prova atrás da outra, praticamente todos os fins de semana. “Eu corria escondida do Sena”, confessou, com uma gostosa risada.

No Japão

Com três anos de competições e se sentindo segura, Dona Dedé ousou. E lá se foi para Myazaki, no Japão, para o  10º Campeonato Mundial de Veteranos, na faixa etária 50-55 anos, disputando com atletas de mais de 70 países. Viajou patrocinada pelo Banco de Brasília, que ofereceu as passagens. O restante das despesas foi coberto pelo apoio dos irmãos. E do Oriente ela trouxe medalhas de prata nos 10km e na maratona, e bronze nos 5km.

Caldo de cana e pastel

“Um dia, fui de ônibus para Belo Horizonte participar da Corrida do Carteiro (10km). Cheguei lá, larguei a mochila no hotel, tomei dois caldos de cana, comi dois pastéis e fui pra largada. Sabe o que aconteceu? Ganhei na faixa etária (59 anos) e cheguei em quinto lugar na classificação geral”.

O telefone tocou…

Em 1999 Dona Dedé já escrevia a sua história no atletismo master, no Brasil e lá fora. Felicidade enorme quando ganhou a medalha de prata na sua primeira Maratona de Nova Iorque, em 1999, classificando-se para disputar a Maratona de Paris, no ano seguinte. E, felicidade ainda maior quando recebeu ligação do gerente de Marketing da Mizuno, no Brasil, informando que ela seria patrocinada pela tradicional empresa esportiva para ir à prova na capital francesa, em 2000, onde conquistou o terceiro lugar.

“Nunca pensei conhecer o mundo assim, correndo. Se soubesse, teria começado a correr mais cedo, mas só estourei para o esporte depois dos 50… ”

 O tempo passava e as corridas se sucediam.

“Corri muitas vezes na São Silvestre”, disse a veterana atleta.

– Dez vezes? – arrisquei.

“Que nada! Muito mais. Bem mais! Tenho um punhado de medalhas e troféus dessa prova”! E aponta para uma mesinha, na sala, coberta de suas conquistas, ouro, prata, bronze…

E desandou a contar mais aventuras:

Em Brasília corri todas as Maratonas. Também corri prova de 10 km no Velódromo da USP (Universidade de São Paulo). Até os 50km de Rio Grande eu fui, um bocado de vezes”.

Rio Grande, próximo da fronteira com o Uruguai, é uma cidade gaúcha que tornou tradicional a prova de 50km, com um diferencial que atrai centenas de corredores: a parte final do percurso, quando a exaustão chega ao limite, é disputada na areia da praia do Cassino, o que torna a competição mais desafiadora para os que gostam de marcar os seus tempos sofrendo…

100 Km… ufa!

Sofrimento, mesmo, Dona Dedé passou nas duas provas de 100 Km que participou, as conhecidas supermaratonas. A primeira foi em São Paulo, 1994. O percurso era de dez voltas de 10 km cada uma no Velódromo da USP. Resultado: medalha de ouro conquistada em 11h32min. Entenderam? uma mulher de 54 anos correu 100 km por quase 12 horas… Só esse feito demonstra o potencial da atleta que se descobriu muito tarde.

O segundo extenuante desafio de 100 km foi no ano seguinte, 1995, quando Dona Dedé marcou 10h49min, dessa vez na supermaratona disputada na estrada entre São Paulo e Campinas.

Nessa segunda prova de 100 Km eu também fui escondida do Sena – seu técnico à época. Ele não queria que eu fizesse tantas provas, precisava ter um calendário. Mas eu queria mesmo era correr. Teve um ano que corri seis maratonas!  O Sena dizia assim: “Ninguém segura ela…”

– A senhora tinha bom fôlego e não sabia – provoquei.

“Sou taurina, signo de gente que não é de ficar parada vai em frente sempre em busca de alcançar um objetivo”

Algumas consequências dessa correria toda surgiram no percurso da carreira, como duas cirurgias, uma em cada joelho, para resolver problema de “derrame de cartilagem”. Só isso, nada mais. O coração, até hoje, tá ótimo, garante a Dona Dedé.

A cada declaração e nova lembrança, Dona Dedé aponta ou vai buscar o troféu sobre aquela prova que está contando. Ou pega um jornal onde está registrado o seu feito. São muitas, muitas lembranças, acomodadas já de forma apertadas em dois grandes armários envidraçados e outro tanto de conquistas pendurados nas paredes ou guardados em gavetas de seu apartamento.

“Tenho mais de mil conquistas, com certeza. Imagina, são 33 anos correndo” …

E faço a pergunta da vez:

– E qual a próxima maratona?

“Não tem. É sem maratona. O joelho… não posso operar mais. Agora é corrida só de passeio…”

Ok, Dona Dedé, a gente acredita que a Senhora não correrá mais maratonas…

Já fiz muita maluquice, mas foi muito bom. E tudo isso porque fui orientada para caminhadas como tratamento de saúde. Se não fosse isso, talvez eu não tivesse descoberto como é bom  uma disputar corridas de rua”

 

A Protetora

Religiosa e com fervorosa crença em Nossa Senhora de Fátima, Dona Dedé reza o terço diariamente. A oração é uma de suas fortalezas. E canta, também, o hino que embala o final de suas preces e a reanima para novos desafios:

treze de maio 

Na cova da Iria, 

Dos céus aparece A Virgem Maria 

Há três pastorinhas

Cercadas de luz

Visitam Maria,

A Mãe de Jesus