26 de março de 2025

O lado triste do Carnaval de Brasília

Por José Cruz

A palavra de ordem das escolas de samba em Brasília é resistência e resiliência, resistir para existir

A capital da República entra no seu segundo ano sem o desfile das escolas de samba na Avenida. A mais expressiva manifestação cultural da música, da arte e de criatividade popular, incentivada e apoiada Brasil afora, em Brasília perde espaço. E corre o risco de ficar mais oito anos sem o som das baterias, como ocorreu entre 2015 e 2022. É nesse clima que dirigente da Escola de Samba Acadêmicos da Asa Norte, Pablo Claudino, presta valioso depoimento à Memória da Cultura e do Esporte em Brasília. Confira.

Há 23 anos morando em Brasília, Pablo Claudino (foto) trouxe de sua terra natal, Tubarão, em Santa Catarina, a experiência de um estado com tradição em grandes eventos populares, entre eles o Carnaval, com desfile das escolas de samba em passarela fixa, desde 1989. O Carnaval de Florianópolis já figura entre os melhores do país.

Investimento

Além de apaixonado carnavalesco, Pablo vê a festa de Momo também como investimento cultural e financeiro, capaz de formar uma cadeia econômica geradora de empregos e com renda o ano inteiro. Com administração eficiente, planejamento e transparência ele acredita que isso é possível. Assim, as escolas de samba não ficariam dependentes exclusivamente das verbas públicas.

Porém, não é o que ele tem visto em Brasília. A estrutura da maioria das escolas ainda não é eficiente, principalmente porque falta um vínculo mais efetivo com suas comunidades. Além disso, o apoio governamental e capenga. Há promessas de verbas, cobranças burocráticas, adiamentos, atrasos e, por último, o aviso drástico:

Este ano, não haverá desfile das escolas”

Nova ordem

A decisão governamental volta a se tornar rotineira. A exemplo de anos anteriores, o GDF investe nos também históricos blocos de rua, de quadras, de entidades e se dá por satisfeito.

Na diretoria da Acadêmicos da Asa Norte, Pablo Claudino atua ao lado do vice-presidente Robson Farias de Souza, no impedimento do presidente Jansen de Mello, em tratamento de saúde. E é desse catarinense com alma carnavalesca nos 365 dias do ano o depoimento a seguir, que incentiva um bom debate na galeria da Memória da Cultura e do Esporte em Brasília.

Alegria e tristeza

Há 23 anos em Brasília, Pablo vive o Carnaval de 2025 com um misto de alegria e tristeza, como em 2024. Alegra-se porque a sua Escola é a atual tetracampeã (2012, 2013, 2014 e 2023); eentristece porque a capital da República entra no seu segundo ano consecutivo sem desfile. A ausência das escolas de samba repetepausas de 13 anos sem a festa maior da cultura popular, ocorridas entre 1981 e 2025.

Kenia Cavalcanti, porta-bandeiras da Acadêmicos da Asa Norte, no desfile de 2023 conquista do tetracampeonato

Houve um período em que o silêncio das baterias durou oito anos consecutivos, de 2015 a 2022, sendo que os dois últimos anos foram devido à pandemia de Covid.

“É uma geração que se criou sem ver Carnaval”. São milhares de pessoas que aqui vieram morar e em quase uma década não viram desfile das Escolas de Brasília”, diz Pablo, em tom triste com essa realidade.

Ele segue no raciocínio: “Enquanto isso, outras manifestações culturais, musicais, principalmente, surgem na cidade e cada uma vai ocupando o seu espaço”.

O carnavalesco

“Desde criança sou apaixonado por Carnaval e naquele tempo já comprava discos dos sambas-enredos das escolas do Rio de Janeiro para decorar as letras”, recorda Pablo. Essa paixão tem, também, influência do irmão mais velho, Jefferson, ritmista da Escola Primeiro de Maio e diretor do Clube Cruz e Sousa, que tinha na Império do Samba, de Tubarão, a sua entidade carnavalesca.

Branco não entra

O clube, segundo Pablo, não aceitava brancos entre os associados. Foi criado em homenagem ao poeta negro catarinense,João da Cruz e Sousa (1861 – 1898), principal nome do Simbolismo brasileiro.

A poesia simbolista se caracteriza, também, por difundir o pessimismo diante da realidade, é rica em metáforas e explora o misticismo. Cruz e Sousa era filho de escravos alforriados e sofreu com o preconceito racial, motivo que o levou a lutar contra a escravidão e o racismo.Porém, vítima da tuberculose, ele morreu cedo, aos 37 anos.

A estreia do folião

Quando estava com 17 anos, Pablo foi estudar Jornalismo em Florianópolis. Em1995, teve o seu primeiro envolvimento direto com o Carnaval: “Participei da fundação do Bloco Carnavalesco Pauta que Pariu, criado por jornalistas, em 1995”, conta ele.

Pauta que Pariu, no desfile de 2024, em Florianópolis
“Vou para Floripa participar do desfile dos 30 anos do Bloco”, diz Pablo, feliz, também, pelo reencontro com os amigos.

Na reta final dos anos 1990, já formado e como repórter do jornal Diário Catarinense, Pablo foi escalado para cobrir o Carnaval do Rio de Janeiro.

“Vi pela primeira vez o desfile da Beija-Flor, pela qual sou apaixonado. Fanático, até”.

Chegada na Asa Norte

Pablo chegou à Acadêmicos da Asa Norte incentivado por colegas de trabalho, no Banco do Brasil, também integrantes da bateria da Escola e que estavam se articulando com uma nova diretoria.

“Na época, a Aruc dominava em títulos carnavalescos e em espaços na mídia. E eu fui ser o assessor de Comunicação da Acadêmico para ajudar a divulgar mais a Escola. Era o ano de 2011 e fizemos uma parceria com a Escola de Samba Unidos da Tijuca, e naquele mesmo ano já conquistamos o terceiro lugar. O enredo foi uma homenagem aos 50 anos do Sindicato dos Bancários de Brasília”, conta Pablo sobre a sua estreia no Carnaval de rua da Capital.

O tetracampeonato

Gil Santos, Rainha da Bateria da Acadêmicos da Asa Norte

Nos três anos seguintes, Pablo continuou na Assessoria de Comunicação e ajudou a sua Escola a conquistar o tricampeonato – 2012, 2013 e 2014. Depois veio a longa temporada de oito anos (2015 a 2022) sem desfiles na Avenida.

Em 2023, quando os desfiles retornaram, a Acadêmicos da Asa Norte alcançou o seu tetracampeonato com o enredo “Mulheres Pretas do Brasil”. 

O fato de o desfile do Carnaval brasiliense ter retornado em 2023 não significa que os problemas de sua preparação estavam resolvidos. Para que se tenha uma ideia, o evento só ocorreu fora de época, no dia de São João, 24 de Junho, numa noite em que a temperatura batia nos 10 graus centígrados, decisivo para espantar o público, que foi mínimo…

Presidência

Foi nesse panorama que em 2017 comecei a me envolver mais com a Escola. Mas, veio a pandemia (Covid) e os problemas internos agremiação aumentaram. Pouco depois, com o afastamento do presidente para tratamento de saúde, Pablo acumulou cargos, com o apoio do vice-presidente, Jansen de Mello.

Para superar as dificuldades, Pablo vai buscando motivações e dando à Escola um perfil que não se esgote no Carnaval. “É difícil, mas procuramos continuar comatividades ao longo do ano, ensaios, apresentações da bateria, das passistas etc”.

Novas ideias

“Em 2023, entrei para a Liga das Escolas de Samba de Brasília para tentar modificar o perfil do Carnaval, buscando uma qualidade superior, mais atrativa para os investidores e para se ter umatransparência administrativa”, explica Pablo.

Atualmente, há pendências da Liga no Tribunal de Contas do Distrito Federal sobre recursos liberados. As suspeitas são de que algumas escolas recebiam as suas parcelas e não gastavam com a atividade fim, o desfile.

Exemplos

“As escolas de samba de Santa Catarina têm a mesma pegada das do Rio de Janeiro, com ensaio técnico realizado na rua, presença de público, patrocínio do Estado, da Prefeitura e da iniciativa privada”, explica Pablo. No Rio o Carnaval se profissionalizou e as principais escolas já não são dependentes do dinheiro do jogo do bicho.

Carro Alegórico da Acadêmicos da Asa Norte, no desfile  do tetracampeonato, em 2023

Esse modelo reflete no apoio popular. Para ter público tem que ter produto atraente. O Carnaval é um produto cultural como outros eventos que pode ter captações privadas e não ficar dependente apenas dos governos, explica Pablo.

É preciso levar em conta que as escolas de Florianópolis são mais antigas que as daqui de Brasília e tem uma Liga que trabalha muito bem”, diz Pablo.

Diferença

“Aqui em Brasília não tem mecenas nem bicheiro para ajudar as escolas. E sem desfiles, é muito difícil manter comunidade carnavalesca mobilizada. Como motivar a comunidade e os componentes da Escola a ensaiar sem a perspectiva do desfile”? – questiona Pablo.

Nessa tese, fica claro que o Carnaval precisa de eficiente administração e sem visão apenas no desfile do ano seguinte. O desfile é o ápice, é a festa maior, mas as escolas precisam de outras promoções, de um calendário que motive a comunidade a participar e que a escola dê retorno a esse apoio. Essa integração garante promoções, atrai patrocinadores e dá sustentação àentidade.

Diálogo

Hélio Tremendani, que participou da entrevista, é carnavalesco das antigas. Conheceu o Carnaval de Brasília nas suas origens, acompanhou a sua evolução, os altos e baixos, presidiu a Aruc e tambémtem autoridade para falar sobre o assunto.

As ideias de Hélio vão ao encontro do que defende Pablo e a conversa entre os dois foi de uma riqueza enorme para deixar registrado o atual momento triste que os carnavalescos das escolas de samba, principalmente, vivem em Brasília.

Outros eventos

O Carnaval de Brasília já teve a participação de mais de 10 mil pessoas. Mas, surgiram outros eventos na cidadecomo os concursos de quadrilhas, na época de São João, o Porão do Rock, Capital Moto Week, etc. E o Carnaval foi ficando pra trás, porque nem todas as entidades carnavalescas acompanharam a evolução dessa concorrência cultural”, explica Hélio.  

Tem mais:

“A maioria das escolas de samba não tem relação com as suas comunidades, não há identidade entre elas e com isso falta apoio. Hélio, o primeiro presidente da Liga das Escolas de Samba de Brasília, concluiu afirmando que é preciso profissionalizar os desfiles.

Exemplos

A aula dessa dupla de especialistas continua. Os amigos, Pablo e Hélio,lembram que o concurso de quadrilhas, por exemplo, tornou-se um produto. Empregam centenas de pessoas que apresentam um espetáculo a cada ano e mobilizam costureiras, bordadeiras, decoradores, criação de temas, a parte artística, musical, transporte… a tal cadeira que emprega muita gente e promove o comércio em geral.

O que se observa nesse exemplo é a presença de numeroso público e crescimento nas várias promoções que aqui ocorrem, ano a ano. E claro, há interesse da iniciativa privada em vincular suas marcas a esses espetáculos populares que atraem milhares de pessoas. E o governo é um desses que se vincula aos shows, porque sabe que tem retorno garantido.

As escolas de samba têm que fazer a sua parte, concorrerem na disputa por verbas públicas e privadas e demonstrar ao governo que com os seus desfiles também provocam um impacto sócio econômico”, explica Hélio.

“É preciso ter visão de marketing. Desfile é investimento e o espetáculo do Carnaval é investimento e um grande negócio que deve ser trabalhado como tal”, completa Pablo.

Burocracia

Em 2024, o atual governo promoveu reunião para tratar, com antecedência, sobre o Carnaval de 2025. A ideia era liberar os recursos em junho. Porém, o edital só foi lançado em novembro, ou seja, a três meses da semana carnavalesca…

“Assim não é possível fazer Carnaval. A história se repete ano a ano”, lamenta-sePablo. E continua:

“É preciso ter mais criatividade, mais envolvimento com suas comunidades, organização das escolas, em geral, para reduzir a dependência da verba do Estado. O Carnaval resume-se a um desfile. Mas o trabalho para isso dura o anto todo, criando uma cadeia sócio econômica com quem trabalha nesse setor, como costureiras, aderecistas, eletricistas, marceneiros, bordadeiras, músicos e tudo o que envolve a preparação de um grande desfile. Paralelamente, a escola deve oferecer atividades para a comunidade, como aulas de bateria, cursos de dança para a garotada etc.

Riqueza

“Não conheço manifestação cultural no mundo que envolva tantos aspectos culturais e econômicos quanto uma escola de samba”, diz Pablo. “E preciso criar o enredo, aí entra a confecção dos carros alegóricos, do samba, vem a bateria, a criação e produção de fantasias, dos carros alegóricos, da iluminação… enfim, são muitos segmentos que empregam pessoas para se ter o espetáculo final. E isso precisa ser entendido e explorado aqui em Brasília”, diz Pablo.

Acadêmicos

A Acadêmicos da Asa Norte tem sede na Avenida L4, às margens do Lago Paranoá. É uma valorizada região do Distrito Federal com cerca de 120 mil moradores. Integra o projeto de cidade-parque do arquiteto Lúcio Costa, isto é, com ampla área verde e arborizada entre edifícios residenciais e comerciais.

Quando anunciam que nãohaverá desfile, bate uma tristeza, um desânimo, uma melancolia!!!

Hélio Tremendani, Pablo Claudino  e José Cruz Brasília, 21/2/2025