Por Hélio Tremendani e José Cruz
Uma lesão no joelho tirou o cearense Raimundo Ribeiro dos campos do futebol. Aos 20 anos, ele veio para Brasília, integrou-se ao esporte e criou “A Pelada do Marreta”, promoção anual que encerra a temporada de futebol na cidade. Aos 85 anos, ele contribui para recuperar e preservar a memória do esporte na Capital da República, que ajudou a construir.
Quando desembarcou no Aeroporto de Brasília, em fevereiro de 1960, Raimundo Ribeiro Campos ficou assustado. Vindo de Fortaleza, onde nasceu, em 1940, ele esperava encontrar mais conforto na nova Capital da República, que seria inaugurada dois meses adiante, em 21 de abril. Mas não. O Aeroporto, mesmo sendo “internacional”, era um imenso barracão de madeira, bem próximo da pista de pouso. Em volta, o cerrado ainda predominava. Brasília estava em construção e toda mão-de-obra era bem-vinda.
Uma hora depois do desembarque, Raimundo estava num carro de Polícia, sua primeira carona. “Meu pai, que já morava aqui, era amigo da turma e tratou de arrumar essa carona pra me receber”, recorda.
O trajeto do Aeroporto até o Acampamento da Vila Planalto, sua primeira e única morada até hoje, foi por uma longa estrada de terra. Assim, saudado com muita poeira, Raimundo foi apresentado à cidade onde trabalhou, cresceu e se consagrou como desportista.
Essas lembranças têm, hoje, um misto de aventura. Afinal, ele saíra da já moderna Fortaleza para viver num projeto de cidade… Agora, 65 anos depois, ele reconhece que a decisão da mudança foi pra lá de acertada.
Vida nova que se iniciava, mas Raimundo não se livrou do apelido que ganhara muito cedo, “Marreta”.
Nas origens
Era um homem forte, corpo atlético e musculoso, mostram as fotos da época em que chegou, quando estava com 20 anos. Em campo, era do estilo que jogava sério, pesado, daqueles que não levava desaforo pra casa. Mm Brasília, encontrei muito nordestino trabalhando na construção da cidade. Eram os candangos. Alguns já me conheciam dos campos de futebol do Nordeste. E, lá, eu jogava de forma não muito “delicada”… quando entrava numa bola dividida com um adversário”, conta ele.
Marreta ri baixinho e conclui: “A turma dizia que eu batia forte, entrava dando marretada”… Mais risadas. A comparação pegou e o apelido ficou, até hoje, já aos 85 anos, agora um homem de conversa dócil e gentil.
Enfim, quando os amigos o viram pelos canteiros de obras logo espalharam, “O Marreta chegou”! E o jogador conhecido no Nordeste instalava-se, em definitivo, na nova capital brasileira, com a força que a palavra sugere:
Bem-vindo, Marreta!
A decisão
Os pais de Marreta tiveram 13 filhos, sendo sete homens. Quando Manuel, o pai, foi contratado por uma construtora de Brasilia, aceitou o desafio e trouxe 100 peões bons de braço para o trabalho que aqui não faltava. Mas, nesse time, nenhum era seu filho fato que ele lamentou, certa vez, com a mulher.
Passado um tempo, depois de ter dado baixa do Quartel, Marreta avisou à sua mãe: “Vou encontrar o meu pai. Vou lá ajudá-lo a construir a capital”. Estava com 20 anos. Os amigos até o alertaram que a cidade não estava pronta, havia muito barro, muita poeira, mas não adiantou. Marreta estava decidido e se mandou. E aqui está, neste 7 de fevereiro de 2025, cabelos brancos contando sobre a sua trajetória, narrativa de valor que entra para a Memória da Cultura e do Esporte de Brasília.
No esporte
O cenário desta entrevista é uma ampla área de entrada de sua casa, na rua DFL da histórica Vila Planalto, hoje um valorizados endereço gastronômico da capital Brasília. A rua é completa de casas bem construídas, diferente daqueles tempos, quando Marreta aqui chegou: “Era só barraco”…. Afinal, lá se vão 65 anos…
Na grande mesa onde estamos acomodados e conversando falta espaço para Marreta espalhar as pastas e arquivos com recortes de jornais e fotografias de sua trajetória esportiva. Numa bancada próxima há outro tanto de material guardado, registros que a imprensa brasiliense fez ao longo de sua carreira.

Nas paredes dessa área estão quadros com jornais da época, contando mais sobre os seus principais feitos, como “A Pelada do Marreta”, motivo de um capítulo mais adiante.
Em cada página, em cada recorte, em cada imagem há lembranças maravilhosas que reconstroem os tempos em que Brasília tinha no futebol o seu principal ponto de lazer. Marreta se delicia com essas lembranças e vai contanto “causos” e fatos.
O joelho
Peladeiro em Fortaleza, Marreta até tentou investir no futebol candango, logo que aqui chegou. Mas um problema sério no joelho o impediu, o que não o deixou longe do futebol, contudo. “Era uma situação muito feia no joelho. Tentar corrigir não ajudaria”, conforta-se, ainda hoje.
Porém, ele conta que o fato de ter emprego e não jogar era coisa muito séria naqueles tempos. Afinal, a vaga era ocupada, preferencialmente, por quem era bom de bola, para reforçar o time da empresa nas temporadas de bons campeonatos.
“Eu não jogava, mas o Seu Didi segurou a peteca e me garantiu a vaga na empresa, foi um grande cara”, conta Marreta, recordando os apoiadores de então.
Didi Valdir de Carvalho era pai de Péricles, um craque de bola, que chegou a jogar no América Mineiro. E foi Seu Didi quem arrumou emprego para Marreta no Departamento de Força e Luz (Defelê), dessa vez como eletricista, com direito a carteira assinada e as vantagens da época.
Nesse novo cargo, Marreta conheceu Fuminho, que era um fisioterapeuta famoso. Com ele, aprendeu as “malandragens” para ser um bom massagista, atividade que carecia de profissionais.

“Com Fuminho aprendi muito. Peguei a malandragem de onde apertar os músculos, massagear e recuperar uma lesão. Gostei do que fazia, comecei a ler e estudar sobre o assunto e foi assim que consegui o meu primeiro emprego de massagista, no próprio time do Defelê. Mas Fuminho e Seu Didi sempre me ajudando”, reconhece Marreta.
O primeiro jogo
Residência em ordem, emprego garantido Marreta apresentou-se tempos depois em outro emprego, uma construtora, claro. Era anotador fiscal. Daqueles que anotava todo tipo e quantidade de material que entrava no canteiro de obras. O movimento era frenético, Brasília estava a dois meses de ser inaugurada (21 de abril de 1960). Havia filas de caminhões carregando areia, brita, cimento, cal, tijolos… Marreta anotava tudo.
Ali, conversando com os peões, soube que no domingo seguinte haveria um clássico no campo da Vila Planalto entre os times do Pederneiras e do DFL. Essa sigla é conhecida até hoje como “Defelê” e se referia ao Departamento de Força e Luz de Brasília, que tinha um forte time de futebol.
Atração maior
Marreta lembra que a grande atração daquele clássico seria a presença do então presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira, o ousado empreendedor que periodicamente visita as obras da nova capital.
Domingo de jogo e, de fato, lá estava JK, bem à vontade e longe dos protocolos presidenciais, vestindo calça Jeans e camisa branca, que logo se tornaria amarela devido a poeirada do “campo” de jogo. “Era campo de areia, de barro, mesmo! Barro! – repete Marreta.
“A peonada era apaixonada por JK”, conta Marreta. E o desafio era chegar perto do presidente. Se possível, driblar a segurança e passar a não na camisa dele, dar um tapinha nas costas. Muitos conseguiam e isso era a consagração, a glória, festejada por longo tempo, “tocar no presidente”…
“JK era um ídolo entre os peões.
Ele abraçava todo mundo, gostava de estar entre pessoas”, lembra Marreta.
Havia outros “campos” em Brasília, a maioria por iniciativa das construtoras: Rabello, Nacional, Pederneiras. Mas o primeiro que recebeu gramado foi o do Defelê, segundo Marreta.
Craques
Era um tempo em que os craques da primeira geração do futebol Brasiliense eram Beto Prestes, Bimba, Betão, o goleiro Matil, Gaguinho, outro goleiro famoso, que morreu em 2024. Melão, irmão de Hélio Tremendani, João Dutra, Zé Walter, esse sim considerado o melhor goleiro dos anos 1960.

Enquanto isso, Marreta crescia na profissão de massagista. E como havia poucos profissionais desses na cidade, ele acabou indo fazer “um bico” no time de futebol de Salão da Federação Acadêmica da Universidade de Brasília, (Faunb), mas sem perder a vaga no Defelê. A estreia de Marreta no time da Faunb foi no Campeonato Brasileiro de 1960, quando se formava a primeira geração de craques dessa modalidade na capital da República.

No basquete
Fora do futebol e do futebol de salão, Marreta também foi massagista do time de basquete do Universo, de Brasília, time que marcou época nessa modalidade, entre os anos de 2008 e 2019. Nesse período, o Universo sagrou-se campeão brasileiro em 2007. Depois, entre 2009 e 2011 conquistou o tricampeonato do Novo Basquete Brasil.

Atarciso Andrade, Aderbal, Lúcio, Índio, Bimba, Sir Perez, Gaguinho e Seu Didi (Treinador); agachados: Marreta, Sabará, Baiano, Beto Preti, Arnaldo Gomes e Emeílo
No ringue
Nessas andanças, Marreta conheceu Francisco Índio, um judoca famoso nos primeiros anos de Brasília que acabou se tornando destacado segurança do general João Figueiredo, que ocupava o cargo presidencial no regime ditatorial.
Marreta tratou de uma lesão em Índio, quando soube que era ele quem trazia o grande lutador Waldemar Santana para se apresentar em Brasília. Além do futebol, as lutas eram outro atrativo para a população ainda sem maiores espaços de lazer.
Santana era destaque nacional no boxe, na luta livre, no jiu jitsu, na capoeira e no vale tudo. Foi ele que, com a Família Gracie, ajudou a difundir as lutas no Brasil.
Essa novidade aproximou Marreta das lutas, mas sem chegar ao profissionalismo. “Era só para fazer apresentações preliminares e ganhar mais uns trocados”, diz ele.
Pelada do Marreta
Era nesse ambiente que Marreta circulava, até que num certo final de ano, época das férias, ele observou que muita gente viajava para passar as festas natalinas com os seus familiares. Brasília ficava deserta.
Numa dessas, já nos anos 1980, Marreta observou que um bom número de visitantes vinha para Brasília. Eram jogadores que daqui tinham saído para outras cidades e voltavam, também de férias, para matar a saudade da família.
Foi quando Marreta teve a ideia de juntar a turma de visitantes e fazer uma “pelada”. Com isso, ele ofereceria um atrativo para o público, na época da “seca” do futebol. Fez a primeira “pelada”, contra uma seleção local. A turma gostou e a proposta se repetiu e dura até hoje.
As atrações eram muitas: Júnior Brasília, Toni, que jogou no Botafogo, Neném, que estava num time de Portugal, Moura, Maurinho, do futebol de salão que integrou a Seleção Brasileira, Carlos Alberto, do Coritiba, o artilheiro Beijoca, que começou no Tiradentes e se consagrou no Bahia, Rildo, Dinarte, Cláudio Garcia… e por aí vai. “Só tinha fera”, diz Marreta, orgulhoso de seu feito.
“Numa dessas peladas, até o grande bicampeão mundial, Nilton Santos, que morou dez anos em Brasília, entrou em campo para reforçar o time da cidade”, conta Marreta
A ideia de criar “A Pelada do Marreta” foi apoiada logo pelo filho João Alberto (foto), que à época ensaiava se tornar goleiro. Aos poucos, a proposta ganhou novos adeptos, entre eles o empresário Tatico, do ramo de alimentos, em Brasília. “Tatico foi um pai para o sucesso da Pelada. Ele perguntava sobre o que precisávamos e nos atendia. Certa vez, eu disse que queria ter uma “carninha” pra oferecer um churrasquinho aos jogadores, depois da pelada. Ele mandou um boi inteiro. Foi uma festa, comida pra todo mundo”. A Pelada do Marreta foi incluída no calendário oficial do Distrito Federal a ser realizada a cada final de ano, encerrando a temporada de futebol.
Família
Com Júlia, Marreta teve três filhos, Carlos Alberto, que que se destacou como goleiro, Paulo César e Kátia Cristina, que se formou em Administração de Empresas e hoje mora nos Estados Unidos.

Em 2005, já separado, Marreta conheceu Leide Barros (foto), “a mulher de valor que segura a barra aqui em casa”, diz ele.
Em 2016 eles se casaram, já na presença dos filhos Ivan e João Pedro.
A surpresa
Nas suas andanças pela Vila Planalto, Marreta parou, outro dia, no Restaurante da Tia Zélia. Trata-se de um dos endereços mais conhecidos da gastronomia da região, atraindo clientes de toda capital pela qualidade do cardápio e ambiente ao ar livre, com mesas sobre frondosas árvores.
Presença ilustre com alguma frequência é a do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Com esse prestigiado cliente, o restaurante tornou-se um consagrado reduto de petistas e simpatizantes.
Tia Zélia (na foto, com vestido em listras rosa e vermelho) contou que certa vez Lula perguntou por Marreta. Queria saber sobre o personagem histórico da Vila Planalto. Marreta encheu-se de alegria com a notícia e encontrou o Presidente tempos depois, no mesmo espaço.
Lula, ex-peladeiro, prometeu comparecer à próxima Pelada, final de 2024. Porém, com problemas de saúde que o levaram à uma internação de trinta dias, Marreta não realizou a Pelada da última temporada. Assim, a atração maior do próximo jogo, em dezembro, deverá ser a presença do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Grandes nomes
Com o conhecimento de quem vivenciou de perto o futebol de Brasília, desde as suas origens, há 65 anos, Marreta faz a sua seleção, escolhe os melhores que viu jogar.
Melão é o primeiro que lhe vem à lembrança. “Era um grande zagueiro. Marcou Pelé, num jogo da Seleção de Brasília contra o Santos”, recorda. Era da geração de ouro das origens do futebol em Basília, segundo Marreta. Melão fez teste e teve a oportunidade de assinar com o Fluminense, jogou ao lado de Carlos Alberto Torres. Ele estava no juvenil, pronto pra subir aos profissionais. Mas não quis ficar por lá, alegou que “não se adaptava”, disse Hélio Tremendani, irmão de Melão.
Segue a seleção de Marreta, agora no futsal: Axel, “não tinha pra ninguém, era ele” . No mesmo time ele cita Guairacá e Arnaldo Gomes. No gol, três destaques, Lula, Fitinha e Waltinho.
Com Garrincha
Em maio de 1972, já encerrando carreira, Garrincha veio reforçar o time do Ceub num jogo contra o Cruzeiro (0x0). A vinda do consagrado ponta direita do Botafogo e da Seleção Brasileira foi articulada por Arnaldo Gomes, um experiente ponta esquerda do futebol de Brasília. Arnaldo articulou para que Marreta acompanhasse Garrincha, que ficou hospedado no Brasília Palace, às margens do Lago Paranoá.
“Foi uma passagem muito tumultuada, pois a companheira de Mané, a cantora Elza Soares, veio para Brasília e atrapalhou as negociações com o Ceub. Ela queria que, pela participação no jogo, Garrincha ganhasse um apartamento na 308 Sul, o que não conseguiu”, lembra Marreta.
Os melhores
De sua vivência no futebol brasiliense, Marreta faz uma seleção dos melhores: Goleiro: Zé Walter; Lateral direito: Aderbal; Zagueiro central: Melão; Quarto zagueiro: Bimba; Lateral esquerdo: Serginho; Meio campo: Zé Maria e João Dutra; Ponta direita: Zezé; Centroavante: Beto Preti; Ponta esquerda: Arnaldo Gomes.
Obrigado, Marreta

A Vila Planalto, assim como o Núcleo Bandeirantes e o Cruzeiro são redutos onde ainda hoje moram pioneiros brasilienses e seus familiares.
Nesses locais, que por suas origens fogem ao traçado moderno de Brasília, o espírito comunitário predomina e o saudável princípio de cumprimentar o “vizinho” ainda resiste às modernidades.
Foi aí, na Vila Planalto, berço do futebol candango, que encontramos Marreta, porta aberta nos esperando para uma conversa de duas horas. Ele faz parte da geração pioneiríssima da cidade e suas manifestações são valiosas para a história de Brasília, desde o tempo em que estava sendo construída. Marreta participou, com seu pai, Manuel, dessa construção. Obrigado, Amigo, pela recepção e pelos relatos, valiosos para o propósito deste espaço em que se recupera a “Memória da Cultura e do Esporte em Brasília”.