Por José Cruz
A conquista do Botafogo foi bem ao seu estilo, sofrida. Agiu como o “mocinho” do filme, que apanha muito, sobrevive, se liberta do cativeiro e prende o bandido. O Botafogo foi isso. Com dez em campo, apanhou muito do ataque de um Galo manco. Mas, em três ataques fulminantes, faturou. De fato, “há certas coisas que só acontecem com o Botafogo”.
Com o Botafogo campeão da América, lembrei de Nilton Santos, o discreto craque bicampeão mundial, que jogou apenas em dois times: o Botafogo e a Seleção Brasileira. Orgulhava-se de dizer isso. Quem mais?
Nilton morou em Brasília por um bom tempo. Ele mantinha uma coluna semanal no Correio Braziliense, onde eu trabalhava, e ali nos conhecemos.
Depois que completou 80 anos, Nilton (1925-2013) voltou para o Rio de Janeiro. Estava contrariado com a mudança, mas Dona Célia, sua mulher, queria ficar perto da família. Nilton adorava o Rio quando podia ir à praia. Já oitentão, queria a tranquilidade de Brasília.
Reportagem
Certa vez, o então secretário de Redação, Carlos Marcelo, me encomendou uma matéria sobre a rotina de Nilton Santos, já morando no Rio de Janeiro. Fui lá e acertamos que eu o acompanharia na sua ida até o Maracanã, onde ele recebia excursões de turistas estrangeiros e ganhava uns trocados para passear com o grupo pelo monumental estádio, com direito a fotos com ele, no final.
Na saída de seu apartamento, no Flamengo, ele pegou um livro na prateleira, “O Velho e o Mar”, clássico de Ernest Hemingway. Fiquei surpreso, afinal não sabia que ele gostava de literatura. “Gosto não, Cruz. É que no trem eu finjo que estou lendo e ninguém me enche o saco pedindo autógrafo”…. Mesmo assim, Nilton não era poupado. No trajeto, parou oito vezes a pedido dos fãs.
Quando descemos na estação final, o Maracanã estava coisa de 500 metros à frente, majestoso. Duvido que alguém chegue àquele monumento do futebol pela primeira vez e não se arrepie.
Havia uma alameda que levava à entrada onde ficava a sala de Nilton, Portão 8, se não me engano. Ali estava uma mesa e uma cadeira, onde sentava um bicampeão mundial, um craque como poucos esperando, no anonimato, por curiosos e barulhentos turistas.
Nilton caminhava à frente. A fotógrafa que nos acompanhava se deslocava de um lado pra outro, corria para esperá-lo mais à frente para um flagra sem pose, um instantâneo. E fez um belo trabalho de imagens. Eu ia atrás, anotações e anotações no bloquinho, enquanto Nilton revelava, em voz alta, o canto dos pássaros em alvoroço nas árvores do caminho.
Duas paixões
Poucos sabem, mas Nilton tinha duas especialidades além do futebol: entendia muito sobre aves e era um ótimo escultor e pintor, em pedaços de madeira de cedro, que ele buscava na sede do Ibama, em Brasília. Outra hora escrevo sobre como cheguei a essa descoberta e reportagem.
Nilton era um especialista em passarinhos desde os tempos em que caçava com o “compadre” Mané, lá para as bandas de Pau Grande ou mesmo na Ilha do Governador, onde morava.
Numa pequena chácara que tinha perto de Brasília, ele mandou construir um enorme viveiro, que visitava seguidamente. Com um punhado de arroz nas mãos, na cabeça e nos ombros largos do homem forte que era ele entrava no viveiro e, com os braços abertos, na forma de cruz, deixava que a passarada disputasse cada grão distribuído por seu corpo. Delirava – esse é o termo – com aquele contato. E disse-me, depois, que aquela convivência com a natureza viva lhe trazia lembranças do Mané (1933-1983), companheiro do qual sentia falta enorme e não se convencia que ele tivesse morrido. Depois, se afastava, cabeça baixa, e chorava baixinho…
As lembranças desses tempos de Nilton me vieram à cabeça a cada gol do Glorioso, no clássico em que se sagrou campeão.
Naquela caminhada pela alameda do Maracanã, já próximo da entrada, Nilton deu uma parada, esperou que eu chegasse perto e perguntou:
“Ô Cruz, você sabe porque pardal nunca quis aprender a cantar”?
Claro que eu não sabia.
A resposta veio logo com um sorriso inesquecível:
“Pardal não aprende a cantar pra não ficar preso em gaiola”.
Essa frase é a síntese do perfil e da personalidade de Nilton Santos. Ele era um homem livre. Não obedeceu nem o técnico Vicente Feola que o mandou passar a bola e voltar à lateral, no jogo de abertura do Mundial de 1958, quando fez o primeiro gol contra a Áustria (3×0 Brasil). “Não tinha ninguém me marcando, o campo estava livre, avancei e chutei”, contou aos repórteres, à época. Depois, em pé, Feola aplaudia e repetia… “boa Nilton, boa Nilton”…
Nilton não se prendia nem aos hoje tão valorizados contratos. Nem lia o que ali estava escrito, como disse certa vez. O importante era entrar em campo e jogar. Até porque, mesmo sem TV e patrocinadores valiosos, os salários não atrasavam. “Eu fazia o que gostava e ainda me pagavam”.
Inesquecível Nilton Santos.