Por Hélio Tremendani e José Cruz
A mineira Márcia Soraia Tauil Braga Zamarian, cantora, compositora, produtora e professora de canto, nasceu no Dia do Samba, 2 de dezembro. Sem dúvida, é um privilégio vir ao mundo com a marca registrada da nossa mais envolvente manifestação artística-musical.
São coincidências do calendário materno, mas, a bem da verdade, Márcia conviveu desde criança com duas escolas musicais que a colocaram na rota do estrelato, revelando-se uma intérprete de primeira, na Bossa Nova e no Samba, principalmente.
A voz e entonações que trabalha são de tal qualidade que ela se tornou parceira de ninguém mais que Roberto Menescal, com quem canta, grava e compõe.
Menescal, um dos precursores da Bossa Nova, ao lado de Carlinhos Lyra, Tom Jobim, Ronaldo Bôscoli, Vinícius de Moraes, Nara Leão… Não é uma riqueza musical? Em 2003, quando conheceu Menescal, ela já se apresentava como Márcia Tauil, seu nome artístico. Ao ouvi-la, Menescal sacramentou: “É um doce que canta”.
Márcia está entre as vozes femininas mais destacadas do país. Ao longo de sua carreira artística, também gravou singles com Jane Duboc, Juliana Caymmi, Vânia Bastos, Rildo Hora, Cristovão Bastos, Tico de Moraes entre outros artistas de sua linha musical.
Música, uma paixão
Márcia conversa sem esconder o tamanho de seu amor pela música. “Gosto de cantar… cantar”, resume. E mostra um sorriso musicalmente bonito, como se estivesse entoando um ensaio ou uma apresentação. Essa paixão ela expressa, também, no visual, com dois brincos dourados, um na forma de clave de sol – símbolo que indica a posição da nota sol em uma pauta – e outro na forma de uma colcheia, igualmente figura musical que indica a duração da metade de uma semínima, ou 1/8 de uma semibreve.
Os profissionais sabem o que esses símbolos indicam na pauta musical, mas não imaginam como eles, em arte, se destacam no visual de uma mulher bonita.
Escolas
O despertar para a música de Márcia começou bem cedo, dentro do lar, onde conviveu com duas escolas, a de seu pai Abdalla e a da sua mãe Terezinha. Mas, com estilos bem distintos e formações de extremos, sem exageros. Márcia explica:
“Minha mãe Terezinha recebeu educação formal e musical clássicas num semi-internato, onde estudou francês e aprendeu a tocar piano e violino. E o meu pai Abdalla Tauil, já viúvo e com dois filhos, era músico, tocava sambas e chorinhos num violão de seis cordas. E, veja bem, na juventude, ele chegou a tocar num bordel”. Abdalla faleceu em 2021.
Aí estão os extremos das escolas de Márcia: a mamãe tendo formação musical clássica num colégio de freiras e o papai tocando em descontraído ambiente de bordel…
O avô materno de Márcia preocupava-se com essa realidade ao ver o namoro de Terezinha e Abdalla evoluir. “Mas, no fim das contas, o amor venceu e o casal teve seis filhos e quatro filhas”, resume Márcia.
Márcia nasceu em Guaxupé, interior de Minas Gerais. Mesmo influenciada pela formação dos pais, ela não fez escola de canto, violão ou piano. Mulher cantando profissionalmente, naqueles tempos, não era atividade recomendável. Sua avó, vendo que ela se encaminhava para a música, dizia que ser cantora não era profissão para a neta. Além disso, defendia um trabalho onde tivesse carteira assinada.
Mas, Márcia insistia: “Por que o meu irmão pode ser músico e eu não? Ocorre que mundo da música era, também, o mundo das drogas e das bebidas, pelo qual já tinha passado um de seus tios, irmão do pai e cantor na mesma época de Nelson Gonçalves. Seu pai conhecera bem o ambiente, daí as limitações impostas à filha, ainda criança.
Profissional
O tempo passou, a certeza de que queria cantar se fortalecia e a segurança para conviver com “o mundo artístico” também. Ao final, só ela, entre os irmãos, se profissionalizou no canto, tornou-se compositora e sambista de lotar bares e auditórios. “E, quando preciso, me acerto com o violão”, garante.
Na adolescência, Márcia mudou-se para Mococa, no interior paulista, para estudar e morar com o irmão mais velho Ivan, músico e professor na cidade. Ali cresceu, se formou no curso de Secretariado e trabalhou em rádio onde ficava mais próxima do que gostava, a música.
Carreira
Oficialmente, a carreira de Márcia Tauil começou em 1998, quando tinha 30 anos. Já no ano seguinte lançou o seu primeiro CD. Quatro anos depois, veio o seu segundo produto musical, “Sementes no Vento”, com obras de Eduardo Gudin e Costa Netto. E ganhou o título de “Cidadã Mocoquense”, homenagem da cidade em reconhecimento à sua arte musical e ação em prol da comunidade.
“Me criei em meio à cultura musical. Ouvia música clássica, chorinho e samba, como o histórico “Pelo Telefone”, de Ernesto dos Santos, o Donga (1890-1974)” – o primeiro samba gravado no Brasil, em 1916.
“Minha voz é uma mistura do chorinho, do samba, da Bossa Nova, das canções lentas entoadas por minha mãe. A crítica diz que canto bem, com embalo à brasileira, e os músicos me dizem que gostam do balanço que dou aos ritmos. Tenho um show chamado Roda do Bem Querer, que começa lá na raiz do samba”.
Em Brasília
Márcia está em Brasília desde 2010, onde chegou acompanhando o marido, o engenheiro agrônomo Carlos Zamarian. Já tinha vindo outras vezes, para cantar, como em 2003, quando se apresentou no saudoso Feitiço Mineiro. Casa lotada!
Dos apoios que recebeu nesses seus 14 anos de convivência com a Capital da República, Márcia diz que tem “muita gratidão” a três ambientes, principalmente: o Feitiço Mineiro, que lhe abriu as portas para o público brasiliense, a Galeteria Beira Lago e o Clube da Bossa. “Muita gratidão, mesmo”, repete.
Em Brasília, Márcia frequentava ambientes da MPB, sempre acompanhada por bom público que, aos poucos, foi conquistando, tanto pela voz quanto pelo repertório. Nesse embalo, ela cantou com vários intérpretes de destaque nacional, como Miúcha, por exemplo, em 2012, no Teatro do Guará, ao lado, com registro da fotógrafa Marizan Fontinele
Mais recentemente, em agosto de 2023, Márcia fez apresentação com Jane Duboc, no Clube do Choro. Jane é outra consagrada cantora e compositora, que fez formação educacional básica nos Estados Unidos, dos 17 aos 23 anos. Em novembro de 2024, a dupla voltou a se apresentar na tradicional casa de shows
Encontro com Menescal
Apreciadora da Bossa Nova, ritmo com destaque no seu repertório, Márcia não programou um encontro ou uma visita a Roberto Menescal. Nada disso. Os dois se conheceram pessoalmente num compromisso profissional e, também, por mérito da cantora, pois ela foi lembrada por uma gravação que havia feito. Márcia conta sobre aquele momento:
“Fui convidada em 2003, quando o saudoso Fernando Faro (1927 – 2016) recebeu Costa Netto para o programa Ensaio (TV Cultura). Costa Netto já conhecia meu trabalho, pois eu havia gravado um CD, por ele produzido, com a música Estrada Delhi-Rio, parceria dele com Menescal. Quando ele foi convidado para o Ensaio, a produção do programa chamou cantores e músicos ligados à sua obra, como Menescal, Leila Pinheiro, Vânia Bastos, Chico Pinheiro, Vicente Barreto e eu”.
Parceria
Foi assim que começou a amizade que evoluiu para parceria em apresentações e projetos, já há 20 anos. O primeiro show da dupla foi em 11 de abril de 2003, em Mococa, cidade da juventude de Márcia. Dali, seguiu-se uma turnê patrocinada pelo Sesc, “A Bossa de Menescal na voz de Márcia Tauil”. Os shows continuaram pelo interior paulista e, depois, Minas Gerais.
O roteiro dessas apresentações incluiu Brasília. Foi em 2010, no Clube da Bossa e na Galeteria Beira Lago, dois ambientes que Márcia fala com carinho especial pela acolhida que sempre lhe deram, assim como o Feitiço Mineiro, reduto histórico da boa música que ficou na saudade…
Em 2011, nova apresentação no Distrito Federal, quando aqui já morava. Dessa vez no Terraço Shopping e, em 2012, nas comemorações do aniversário do Guará. Nesse mesmo ano, gravou um CD com Cely Curado, Nathália Lima e Sandra Duailibe, com o título “Elas cantam Menescal”, lançado no auditório da Associação Médica de Brasília, com a presença do homenageado.
Os shows se sucederam, mas um, em especial, ficou marcado na lembrança, realizado em outubro de 2017. Márcia participou do projeto “Dia de Luz, Festa de Sol”, que festejou os 80 anos de Menescal, no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB).
A mais recente apresentação da dupla foi em 27 de março deste ano, no Blue Note, no Rio de Janeiro, filial da tradicional casa de shows de Nova Iorque.
Estrela pop
“Aos 87 anos, completados em outubro, Menescal é uma estrela pop, um gentleman. Eu jamais imaginei que um dia iria a um programa, conheceria Menescal e nos tornaríamos parceiros”
A narrativa de Márcia sobre o grande músico e ídolo continua:
“Tudo isso aconteceu de forma muito natural. Na passagem de som que eu fazia para o programa da TV Cultura, Menescal me ouviu e simplesmente se ofereceu para tocar guitarra comigo, na música Estrada Delhi-Rio”.
E conclui:
“Ele é de uma simplicidade espantosa. Eu já vi o porteiro de uma casa de show contando histórias de música e ele tranquilamente ouvindo. Meu marido estava ansioso, para que ele pudesse descansar. Mas ele insistia em ficar ouvindo aquelas passagens. Quando fomos embora, ele me falou: “Eu escolhi essa profissão”… Um ensinamento precioso para mim.
Certa vez, Márcia e família almoçavam com o “Pop” da Bossa Nova e a sua filha menor, Ana Carolina, hoje com 14 anos, sacou que as feições de Menescal lembravam a figura de um vovô. Aos afagos do músico ela retribuiu: “Não se preocupe, vou estudar para ser geriatra e vou cuidar de você”…
Tanto Carol quanto Ana Clara, 18 anos, as duas com excelentes vozes, já tiveram o privilégio de gravar com o grande músico ao violão. Mas elas dizem que não seguirão o roteiro da mamãe Márcia. Quem garante?
Homenagem
Márcia faz homenagem ao pernambucano Rildo Hora, gaitista e produtor com quem ela já cantou e se encantou. Rildo (na foto, ao lado de Márcia) é compositor e é de sua autoria o clássico “Os Meninos da Mangueira”, em parceria com o jornalista Sérgio Cabral (1937-2024). Ele também participou de vários projetos, incluindo o show “Zeca Pagodinho 40 Anos ao Vivo” e “Casa do Samba”.
“Rildo, 85 anos, é muito requisitado. Um papa da produção brasileira, agraciado com sete Grammys. O que ele e Menescal fazem no palco é impressionante”
Márcia fez parceria com Rildo em “O dia que vi Caymmi”, sobre crônica do jornalista e escritor Célio Albuquerque.
O texto falava do dia em que Célio viu Dorival Caymmi e com ele andou de carro, um Fusca, no Rio de Janeiro. “Isso dá música”, disse Rildo. E deu mesmo, num embalo gostoso de ouvir e dançar. Márcia adaptou a crônica de Célio, em homenagem ao grande baiano, e a interpretou em 2023 no Blue Note, Rio de Janeiro, com Rildo acompanhando na gaita. A canção já está em todas as plataformas digitais.
“O dia em que vi Caymmi
Sem mantos sorriso de abrolhos
Camisa de flor, cheiro bom
Caminho de mar nos olhos”…
Saúde e limitações
Em 2012, Márcia começou a passar por anos difíceis, quando uma doença, diagnosticada tardiamente, a fez perder peso, o ânimo e a disposição para cantar. “Eu tenho a doença celíaca, devido à intolerância a glúten”, contou.
O diagnóstico só foi descoberto aos 45 anos e, nesse tempo, Márcia não parou de se apresentar. Porém, com limitações. “Quando eu melhorava, fazia um show, festivais. Passei a compor para participar de festivais de canções Inéditas, pois era apenas uma música a ser apresentada. Mas, nos shows, em muitas ocasiões, eu dividia o palco, pois eu simplesmente não tinha forças para continuar”.
“Quem identificou a doença foi o médico Iphes Campbell. Ele fez os exames, o diagnóstico, passou o tratamento e a minha vida começou a voltar ao normal. É uma vida nessa luta”…
Foi nesse ambiente de recuperação que Márcia falou para Menescal que queria gravar um CD, mas não tinha condições de levar sozinha até o fim. “Chamei a Cely Curado, a Nathália Lima e a Sandra Duailibe para gravar o Elas Cantam Menescal”, recorda.
“Gravamos, fizemos um show em grupo e tive esse apoio essencial, com a produção de Marizan Fontinele, que cuidou muito bem de todas e deu atenção às minhas necessidades”, recorda Márcia os tempos difíceis.
“Quando lançamos o CD, observei que a doença estava tão consolidada no organismo que eu precisei de anos para recuperar o fôlego. Porém, ao excluir totalmente o trigo da alimentação, a voz voltou ao normal. Foi muito esforço para vencer”.
Na pandemia
Na pandemia, Márcia estava com dificuldades novamente para cantar, mas achou que era devido ter contraído covid. Nessa ocasião, o amigo Fred Brasiliense – fotógrafo, cantor, compositor, poeta e produtor cultural – observou que as fotos que fazia da cantora mostravam uma saliência no pescoço, algo como “um carocinho”.
Artista, ele resolvia aquele “detalhe” com os recursos da tecnologia digital. Porém, alertou à amiga que, numa consulta médica, foi diagnosticada com vários “bócios mergulhantes”. Eram do tipo que cresce para dentro da traqueia, o que dificultava a respiração. O tratamento foi cirúrgico e a retirada do “carocinho” se estendeu para um procedimento que deixou sua prega vocal esquerda com paralisia. Foram momentos tensos, pois Márcia correu o risco de não cantar mais. Final satisfatório: fonoaudiologia, exercícios e nova maneira de acertar os ajustes musculares para o canto. Márcia resiste!
Professora musical
Márcia diz que aprendeu a ser professora de canto. E dá aulas particulares para pessoas com dificuldades sérias, para cadeirantes, por exemplo, ou com Atrofia Muscular Espinhal (AME); outras que têm comprometimento de pulmão. E tem alunos que cantam com apenas 38% de capacidade pulmonar.
“Canta-se sabendo usar o que se tem”
Outro projeto é desenvolvido na Casa GOG, no Guará II, em Brasília. A proposta é o desenvolvimento sociocultural da comunidade, com extensão às crianças, na formação do Coral Infantil, na prática de capoeira, aprendizado de Libras e culinária.
Projetos sociais
Márcia conta que já trabalhou com crianças com lábio leporino e que gravou um LP com seu grupo de alunos, o “Novas Vozes de Brasília”, que foi vendido para manter o projeto, desenvolvido em 2016. Lábio leporino é uma malformação congênita que se caracteriza por uma abertura no lábio superior do feto.
“Um médico, ao pedir para uma criança falar após sua operação, teve como resposta, a criança cantando! O que esses profissionais mais desejam é ouvir a voz da criança depois da cirurgia para corrigir o lábio. Ele ficou emocionado”, conta Márcia.
Nesses projetos infantis, Márcia trabalha com músicas que não tratam do amor romântico. “Mas, canções para mexer com o coraçãozinho das crianças e despertar nelas o amor próprio e o sentimento pela música”.
Questão de dignidade
Hélio Tremendani, que participava da entrevista, quis saber como era a convivência de uma mulher no meio musical de difícil acesso, principalmente com a parceria de um mestre da Bossa Nova, Roberto Menescal.
“Esse universo de feras é difícil no início. A gente tem muita reverência pelos grandes nomes de gerações anteriores à sua. Eu tive em Menescal um grande apoiador e incentivador. Ele sempre me alertou: ‘Cuidado, essa carreira não é fácil, mas é possível”. Eu sou séria demais pelas coisas que já passei, ele também. Mas, no meio artístico eu aprendi a andar lá dentro, com ele. Foi Deus que mandou Roberto Menescal na minha vida”, reconhece. E continua: “Mas o tipo de música que canto não me dá muitas facilidades. Não tem muita abertura nas atuais programações de rádio e TV. Gostava – e gosto – de cantar forró, como em bailes, lá no início da carreira; gosto de cantar samba, música romântica. Gosto de cantar, é isso. Eu era uma moça bonita. Realmente meu pai tinha razão, as propostas nesse ambiente não todas são o que você espera… Tinha proposta para ser a morena do forró, mas eu tinha vergonha, eu queria cantar pela voz, não por um personagem com apelo sensual. Num certo Carnaval, cantei, fantasiada, tudo certo! Correu tudo bem. Mas em outro evento, nas trocas de figurino devido ao espetáculo, a abordagem não foi muito legal. Certa vez, um americano abriu uma mala de dólares e ofereceu ao meu irmão Ivan para me comprar, que saiu no tapa com ele. Isso me assustava e me retraia. Às vezes me falavam que beleza abre portas, mas depende da maneira que essa porta é aberta”, descreveu Márcia. Com a idade me sinto mais à vontade e sinto o interesse pela minha voz, pela minha arte. Isso é tão bom! E concluiu:
… A dignidade precisa ser preservada.
Um assessor especial
Para desenvolver as suas atividades artísticas-profissionais Márcia tem um “assessor” especialíssimo, o seu marido Carlos Zamarian.
A foto do casal foi produzida ao final da entrevista, na sede da Aruc
Além do apoio às iniciativas profissionais de Márcia, Carlos também tem excelente memória, que socorre a esposa nas entrevistas. São muitas informações, muitos cantores, músicas, datas, locais, eventos… Mas “DataCarlos” revela-se o recurso do momento para lembrar da informação de forma precisa.
Márcia está em Brasília há 14 anos. Integrou-se à vida artística da cidade. E, por sua expressão no contexto da música brasileira, não há dúvidas de que já faz parte da “memória da cultura e do esporte de Brasília”.