2 de dezembro de 2024

O legítimo berço musical de Brasília

Por Hélio Tremendani e José Cruz

A cada novo depoimento para se construir a memória da cultura e do esporte em Brasília, fica clara a importância pioneira da região do Cruzeiro – antiga Gavião – nesse contexto. E, o mais interessante, a cultura artística-musical que nesse bairro se desenvolve até hoje tem origens, também, na capela e na Lira Infantil do Cruzeiro, que ali conviviam em mútua colaboração.

O pioneiro Robson Oliveira Silva (foto), 66 anos, em Brasília desde 1964, ajuda a recuperar mais um capítulo dessa história. Vindo do Maranhão, foi morar com a família – pais e dez irmãos – em Taguatinga, mas pouco tempo depois a turma se mudou para o Cruzeiro.

 Carinho

Robson herdou da mãe, Raimunda, o carinho pelo bairro. Ela era uma das lideranças da Paróquia Nossa Senhora das Dores, no Cruzeiro Velho, e organizadora de visitas anuais à Basílica de Nossa Senhora Aparecida, interior de São Paulo.

Enquanto isso, Robson, ainda garoto, integrava a Banda Brasília, conhecida como “Lira Infantil do Cruzeiro”, criada em 1966 pelo coronel Antônio de Jesus e maestro Zuza que, mais tarde, viria a ser o líder da prestigiada Banda do Sol. A “Lira infantil”, chegou a ter 60 integrantes e fazia a abertura do desfile militar de 7 de setembro.

“Maestro Zuza (foto), com apoio do coronel Jesus, incentivava a garotada para aulas de música, onde cada um aprendia um instrumento”, conta Robson, que aprendeu a tocar tuba

 A era do rock

Brasília ainda estava em construção e famílias chegavam diariamente de todos os estados para suprir a diversidade da mão de obra na nova capital.

Como se sabe, havia falta de espaços de lazer e a juventude começava a viver a era do rock. Os jovens já frequentavam a Universidade de Brasília, um dos berços da cultura brasiliense e a criatividade surgia, como na música e artes cênicas, principalmente.

“Nessa época, eu tinha vínculo com o padre Alfredo, um americano que me incentivou a organizar uma rua de arte e lazer na frente da Igreja Nossa Senhora das Dores, onde ele era pároco. Topei a parada e como trabalhava na Rádio Planalto, eu ia no Correio Braziliense, prédio próximo, pegar restos de papel jornal que não eram usados na impressão diária. Mais uns pincéis e tinta guache era o suficiente para a nossa rua de arte e lazer”, conta Robson sobre aqueles tempos em que a criatividade era fundamental.

Show de música

Renato Russo, em 1981, na frente da Igreja Nossa Senhora da Dores

As pinturas na frente da Igreja evoluíram, a Lira Infantil arregimentava mais e mais componentes e daí surgiu a ideia de um show de música ao ar livre. “A ideia saiu da cabeça de dois camaradas, Moraes e Djalmir Assis” lembra Robson. Foi assim que surgiu o movimento Galeria Cruzeiro-Eixo, mais tarde Concerto Canta Gavião.

Padre Alfredo adorava as ideias dos jovens e dava o suporte para avançar nos projetos. Era um padre meio roqueiro, gostava do som, e liberava a energia da igreja para ligar os equipamentos. Nessa época, a Aruc já existia e a manifestação musical no Cruzeiro crescia e crescia. Nessa proposta de levar o rock para a frente da Igreja, tocaram bandas, cantores e compositores que se tornariam destaques nacionais. Por exemplo, Aborto Elétrico, de Renato Russo e Felipe, hoje baterista do Capital Inicial, Detrito Federal, Pôr do Sol, Sepultura Rock, do Cruzeiro, Leal Carvalho, Ney Valença,etc…

Apoio

“A turma jogava junto, cada um levava uma caixa de som, uma bateria, um equipamento. Todos cooperavam, era um movimento espontâneo, bonito de se ver. Assim como, a importante participação na organização do José Cesar, Tomaz, Ismael Cesar, Bebe, João do Faces do Caos, Claudelis e muitos outros moradores que se juntaram ao movimento”, conta Robson.

Observa-se nessa fase de uma Brasília sem alternativas de lazer a importância do espaço físico na frente de uma igreja, o incentivo do pároco em abrir espaços para a juventude, a Lira Infantil iniciando os jovens na arte musical que, logo, revelaram-se capazes de produzir “som”, música que se espalhou Brasil afora; tudo isso próximo de uma instituição que já existia, a Aruc, histórico reduto do samba, formadora de sambistas e de uma bateria que se tornaram multicampeões do Carnaval de Brasília. E, claro, tudo isso apoiado por uma comunidade majoritariamente vinda do Rio de Janeiro, com sua alegria e paixão pelo samba.

Reduto da música

Essas iniciativas e sequência permitem concluir que desde o início de Brasília o bairro Cruzeiro era reduto da música, da qual Cássia Eller e Alexandre Carlo, da ex-banda Natirrutis se tornaram referências nacionais.

Com esses elementos, não há dúvidas em afirmar que, assim como o espaço livre na área térrea dos blocos residenciais de Brasília foram importantes para reunir garotos, seus violões e suas ideias, até tornar a Capital referência no rock, o bairro do Cruzeiro e o tradicional espaço-sede da Aruc são berços do samba e da MPB surgidos com Brasília.

Com o passar do tempo os espaços se ampliaram, ganharam o Plano Piloto e as regiões administrativas. Mas o ponto de partida do som mais remoto está lá atrás, quando garotos aprendiam em bandinhas, recebiam guitarristas que dialogavam com o padre da paróquia e tinham, então, o lazer que buscavam. Lazer praticado pela cultura musical, no bairro do Cruzeiro.

Chegando à Aruc

Voltando à narrativa de Robson, ele conta que o seu vínculo com a Aruc começou quando ingressou no Conselho de Representantes dos Moradores do Cruzeiro. Sua atuação na entidade evoluiu, com vínculo até hoje, quando ocupa o cargo de Presidente da instituição.

Em 1981, o carioca e pioneiro de Brasília, Hélio Tremendani, presidia a Aruc. A dificuldade para captar recursos era grande. Certo dia, Hélio viu aquela movimentação de garotos e instrumentos musicais em frente à paróquia e parou para ver o show. “Ele gostou do que viu e me convidou para assumir o departamento Cultural da Aruc”, conta Robson. “Foi quando Hélio acrescentou a palavra “cultura” no registro da Aruc e criou-se um Departamento Cultural para a entidade. Também passamos a ter um CNPJ, indispensável para captar recursos e aí se criou um movimento Cruzeiro-Eixo, isso é, juntando a turma musical daqui com a de lá.

“Aí veio a Rua de Arte e o Concerto Canta Gavião, mais planejado, mais organizado e com o apoio da Fundação Cultural do DF”, conta Robson.

A entrada de Robson na diretoria da Aruc reforçou a proposta para abrir o Barracão do Samba á comunidade, para cursos de dança, de música, independentemente do Carnaval. “Assumi para fortalecer o elo entre a comunidade e a Aruc”, afirmou.

Espaço na Aruc

O melhor nessas iniciativas é que as atividades desenvolvidas em frente à igreja vieram para a Aruc, fortalecendo a instituição e dando cobertura às iniciativas culturais que surgiam. Nessa ocasião, também foi feita uma pesquisa para identificar quem foram os primeiros moradores, as origens do bairro, quando, enfim, esse espaço começou a ser ocupado. Chegaram a 30 de novembro como a data de criação do bairro.

   

Concerto Canta Gavião, quadra da Aruc, 1989

A força dos movimentos de rua associados à estrutura da Aruc culminou com a adesão da Viplan, empresa de ônibus, que passou a ser parceira as iniciativas culturais e apoio do Sesc-DF.

“Tudo começou quando nos tornamos bairro do Plano Piloto. Procuramos o dono da Viplan que nos atendeu: além da redução da passagem nos concedeu um patrocínio. Foi o primeiro patrocínio privado que tivemos”, disse Robson.

Com esse apoio, surgiram nomes que se destacavam no cenário nacional, como Cássia Eller, cuja mãe, Nancy, mora até hoje no Cuzeiro, Renato Russo, Gerson Montenegro… Foi quando surgiu o movimento “Canta Gavião”, primeiro nome do Cruzeiro, em referência a essa ave que habitava a região. A foto ao lado foi um show do Canta Gavião no Cruzeiro Novo, nos anos 1990.

Bons tempos

“Meu pai, Djalma, e minha mãe, Raimunda (foto abaixo), com seus dez filhos, vieram em 1964 para o Cruzeiro. Eu e meus irmãos fomos criados aqui no bairro. Estudamos e crescemos, cada um pegou o seu rumo. Da família, eu e minha mãe fomos os que mais se envolveram com o bairro. Minha mãe, que vestia a camisa da Aruc, morreu em 2022, tinha 97 anos. E tem muitas famílias com essa história aqui no bairro, que vive com esse espírito comunitário”, conta Robson, num tom de saudosismo, mas orgulhoso dessa vivência e de trabalho pelo histórico Cruzeiro que continua ainda hoje, quando ele “está” – como diz – presidente da Aruc.

Berê Bahia, Vladmir Carvalho e Maria do Rosário Caetano em debate no Cine Clube Gavião Aruc, em 2019

A ideia é ocupar mais o barracão do samba, com dança e com música, independentemente do Carnaval. Robson quer, também, fazer crescer o elo entre a Aruc e a comunidade e voltar aos tempos em que o bairro era, também, uma resistência pelas boas causas. Isso já ocorreu nos anos 1990, quando o Movimento em Defesa da Cultura Candanga (Cuca) atuava com a Aruc com nomes importantes das artes e da imprensa local, como Maria do Rosário Caetano, Tetê Catalã, o poeta Ezio Pires, Omar Abud, a pesquisadora de cinema Berê Bahia, o cineasta Vladimir Carvalho, que recentemente nos deixou, enfim.

“Com esse pessoal, criamos o Cine Clube Gavião, uma vertente do Departamento Cultural. Nossa relação com a imprensa era tão forte que tínhamos a Ala dos Jornalistas na Escola de Samba da Aruc, que desfilava anualmente, liderada pelo Moa (Moacir Oliveira, ex-presidente da Aruc) e a turma do Pacotão”, conta o também jornalista Robson Silva.           

Liderança

O espírito comunitário e de liderança da Aruc foi exercido há alguns anos, quando apareceu uma conversa para derrubar árvores de um bosque, perto da Igreja Presbiteriana. O argumento é que estavam velhas e poderiam cair.

“Na verdade, a especulação imobiliária queria construir uma escola infantil, particular, ali naquele espaço. Trouxemos professores da Unb que comprovaram que as árvores não eram velhas. De fato, elas nunca caíram, estão lá até hoje e o bosque continua fazendo parte da nossa comunidade”, conta Robson.

“A Aruc é, até hoje, o principal núcleo defensor do desenvolvimento do Cruzeiro. Hoje temos a Administração do bairro, mas naquela época a rapaziada estava aqui dentro, jogava futebol, ia para as apresentações do rock, para as rodas de samba. Era uma época em que o bairro desfilava na Aruc”. Além de uma associação clubística, somos um núcleo de resistência. A história jamais será contada sem a importância que a Aruc teve, tem e terá para este bairro. É uma instituição histórica”, repete Robson. E concluiu:

O Barracão da Aruc em dia de samba   

“O Cruzeiro é o bairro mais bairro de Brasília. É um bairro comunitário, de pedir ovo emprestado para o vizinho. Várias gerações que aqui se criaram daqui nunca saíram”.