16 de julho de 2025

Os 63 anos da ARUC na visão de um cruzeirense pioneiro

Por Hélio Tremendani, em depoimento a José Cruz

Hélio Tremendani chegou em Brasília em 1961, quando tinha nove anos. O pai, João Mello dos Santos, funcionário da Câmara dos Deputados, veio transferido do Rio de Janeiro. Era uma época em que milhares de cariocas aqui desembarcavam para que a máquina pública do governo continuasse a sua rotina na nova Capital brasileira. Depois dos Candangos – operários da construção civil que construíram Brasília – os novos moradores que chegaram também foram classificados como “Pioneiros”. Hélio, hoje com 72 anos, o caçula numa família de oito irmãos, é um desses personagens que viveu e ainda participa da história cultural e esportiva da cidade, do Cruzeiro, em especial.

É dele o depoimento a seguir, um mergulho nesses 63 anos da ARUC, contando sobre momentos emocionantes e marcantes dessa ainda recente história da querida instituição sócio-cultura-esportiva.

Coisa de adulto

Três Irmãos Tremendani: Melão, Melinho e Hélio (da esquerda para a direita)

“Eu tinha 11 anos e vivia na casa do Seu Dudu, um vizinho, que era dirigente da ARUC – Associação Recreativa Cultural Unidos do Cruzeiro –, que ainda não tinha sede. Ali, eu ouvia falar muito em escola de samba, sem que eu soubesse o que era. Um dia, perguntei pra minha irmã, Marli, o que era escola de samba. Pra mim, a palavra escola me remetia a estudo, estudar… mas tinha o samba no meio e aquilo me despertou curiosidade. Marli me respondeu:

– Não te mete, garoto, isso é coisa de adulto…

Mal podia imaginar que aquele fora para eu ficar distante da escola de samba seria o início de um envolvimento que eu viria a ter com essa instituição, o samba, que me conquistou e que me enche de alegrias e emoções, até hoje.

Falando sério

Passados uns dias, Marli se arrependeu por não ter esclarecido minha dúvida. Ela voltou atrás e veio me explicar:

“Garoto, escola de samba é uma reunião de sambistas, gente que dança samba, são grupos que desfilam no Carnaval…

“Aí entendi que aquela conversa toda que eu ouvia na casa do Seu Dudu era para fundar justamente uma escola de samba no bairro onde morávamos, o Gavião, que depois foi rebatizado de Cruzeiro. Foi o meu primeiro aprendizado cultural, digamos assim.

O lado real

“No seu início, Brasília era uma cidade completamente diferente do Rio: ainda deserta na imensidão do Cerrado, as obras se multiplicavam, mas não se tinha o que fazer nas horas de folga. Não havia opções para o lazer. Tinha o futebol do Cruzeiro do Sul, time do nosso bairro, que foi campeão da cidade em 1963. Porém, nem todos queriam saber de futebol e o samba estava chegando para ser a opção que identifica e vincula, ainda hoje, os cariocas, o Cruzeiro e a ARUC.

Enfim, a escola

“Foi nesse ambiente e negociações carnavalescas que em 21 de outubro de 1961 a ARUC foi fundada (foto). A movimentação na casa de Seu Dudu se estendeu, tempos depois, para a minha casa, onde o pessoal se reunia. Meus irmãos jogavam futebol no Cruzeiro do Sul e o Zé Maria, meu cunhado, era o treinador do time juvenil. Era uma grande família, um entra e sai constante e eu ali, curioso, acompanhando tudo.

“Hoje, 63 anos depois, posso afirmar que fui testemunha ocular da gestão e criação de uma associação que surgiu para valorizar e divulgar a cultura e o esporte no nosso bairro. Eu via as discussões desse movimento, minha família estava envolvida naquele novo momento da Capital, tanto na música quanto no esporte, e para mim tudo era um grande aprendizado.

“No primeiro desfile da Escola de Samba da ARUC, em 1962, eu ainda era criança e não fui. Naquele ano, o samba-enredo foi “Exaltação a Brasília”, autoria de Euclides Neres de Santana.

Antes do Carnaval de 1962, o presidente da Escola de Samba da Portela, Natal da Portela, veio a Brasília com a porta-bandeira Vilma Nascimento e o cantor e compositor Candeia.

Foi nesse ambiente que cresci, que comecei a fazer a transição da infância para a adolescência, criando intimidade com as pessoas. Com o tempo, até os adultos passaram a me respeitar mais, a me ouvir… Era uma geração muito bacana nas origens da ARUC, andavam bem-vestidos, paletó, gravata, tudo dando um aspecto de muita seriedade no que tratavam.

Princípios

E foi assim, desde o início, a ARUC sempre teve esse vínculo com a seriedade, como o que é correto, com a unidade de seus associados, a confraternização saudável, a competição com respeito. Eu que convivi tudo isso, desde aquelas origens, posso afirmar que ao longo dos anos esses princípios se fortaleceram e seguem até hoje. Dá um orgulho muito grande dizer isso, porque foi esse ambiente que ajudou, também, a formar o meu caráter.

O compositor

O tempo passava, eu crescia e, aos poucos, ia me envolvendo com aqueles personagens do futebol, da escola de samba, da ARUC. Eu estava com 13 anos e lembro do dia em que um dos diretores, o Vanderlei César Cardoso, pediu para eu ir ao acampamento da construtora, ali mesmo no Cruzeiro, e chamasse o Claudinho, um operário candango, semianalfabeto, que frequentava um botequim que tinha ao lado da minha casa. Era coisa de cem metros, uma corrida rápida e chamei Claudinho.

Na volta, fiquei ouvindo a conversa. Vanderlei mostrou uma revista e falou que faria um desfile baseado naquelas imagens e que o samba-enredo seria ‘assim e assado’. Vanderlei passou a ler a reportagem, apontava para as fotos e Claudinho guardava na memória. De repente, uma surpresa pra mim: Claudinho começou a cantarolar uma letra enquanto Vanderlei ia escrevendo. Num momento, Claudinho parou e pediu um tempo para pensar mais um pouco. Mas já estava com o samba todo na cabeça. “Impressão Régia”, que ele compôs ali na minha frente, acabou se tornando um sucesso no Carnaval seguinte, 1965, quando a ARUC conquistou o seu primeiro título.

Paraibano, de estatura baixa, Claudinho estava acostumado a compor versos. Ele fazia samba de terreiro, tinha esse dom, e criava verdadeiras obras-primas.

A Ala dos Jornaleiros, no desfile do primeiro título, 1965, com o samba-enredo “Impressão Régia”

O entrosamento

Nos ensaios, eu via toda a movimentação da Escola e uma coisa me chamava atenção. Aprendi que o diretor de harmonia é o cara que faz a ligação de todos os segmentos de uma escola de samba e faz o entrosamento de tudo com quem está cantando. O diretor é um personagem importante no grupo, e tudo começa no ensaio da Escola, quando ele organiza a entrada do mestre-sala, da porta-bandeira, das passistas, tudo ao seu tempo e ao seu comando.

No Barracão

Esse aprendizado eu tive na longa convivência no Barracão da Escola. Não foi em banco escolar nem de faculdade, mas acompanhando, vendo, ouvindo, observando, perguntando…

Aprendi, também, que o diretor geral da Escola usa um apito diferente do convencional, um apito com som mais fino. Quando soava esse apito, era para que o diretor de harmonia se preparasse para a bateria entrar. Aí a emoção crescia. E era assim, aos poucos, que ele colocava cada segmento, formando o seu conjunto geral. Era fantástico acompanhar os ensaios. Fantástico!

Futebol e samba

Aqui é preciso fazer uma correlação. Eu, ainda jovem, convivia muito com o esporte e ao chegar ao Barracão comecei a fazer uma associação com a organização da Escola através dos apitos. Ali, quem mandava era o diretor geral, como no futebol, onde eu ouvia a orientação do treinador. E isso valia para todas as modalidades esportivas que pratiquei, o futebol, o basquete, o futebol de salão… No Barracão, eu chegava antes de o ensaio começar para acompanhar todo aquele ritual que precisa de atenção e organização. Era bonito ver aquela hierarquia funcionando, tudo ao seu tempo e todos obedecendo ao diretor geral da Escola.

Os ensaios eram perto de casa, o que facilitava eu estar presente e, aos poucos aprendendo. Ainda era criança, não era hora de eu entrar naquela estrutura, mas me agradava ver. E ali estava o início de minha formação e o meu envolvimento futuro com a Escola e o Carnaval.

O vexame

O tempo passou e chegou o ano de 1974. Eu estava com 22 anos. Fui ao estacionamento do Ginásio de Esportes Nilson Nelson acompanhar o desfile da ARUC. Cheguei lá de carona com o amigo Nei Pompeu, que tinha um Fusca, mais o Eduardo Siqueira.

Quando a ARUC desfilou, foi uma tristeza. Passou na avenida com meia dúzia de gatos pingados. Tinha tão poucos componentes que a Comissão Julgadora desclassificou nossa Escola. O título ficou com a Acadêmicos da Asa Norte. Decepcionados, pegamos o carro e voltamos pra casa.

A provocação

No dia seguinte ao desfile, o bairro do Cruzeiro pegava fogo de tanta discussão, mas já era tarde, o estrago estava na tristeza de todos os cruzeirenses. O presidente na época, quase apanhou em um bar, durante uma discussão acalorada.

Na semana seguinte, eu treinava basquete quando chegou o presidente da Escola campeã, o Comandante Renan. Ele queria entregar o convite pra festa da vitória à diretoria da ARUC. Era uma provocação claro, a rivalidade estava no ar.

Vanderlei Cardoso, diretor da ARUC, recebeu o convite e ouviu uma recomendação debochada, de que deveriam ir bem-vestidos à festa, pois autoridades do Distrito Federal e até embaixadores tinham sido convidados para o baile da vitória.

– Isso não vai ficar assim” -, respondeu Vanderlei. “Vamos dar o troco. No ano que vem vamos ganhar o Carnaval de Brasília”. De fato, o troco veio no ano seguinte, com a ARUC conquistando o título na Avenida W3.

No sábado seguinte, fui com Nei Pompeu e Eduardo, outro amigo das nossas saídas, à festa da vitória da Asa Norte. Lá, encontramos dirigentes da ARUC, o Nilton de Oliveira Sabino, Dona Ana, Olcimar, o Vareta… Naquela roda eles articulavam uma chapa para concorrer na próxima eleição, em abril de 1974. Nilton de Oliveira foi eleito e dirigiu a ARUC por quatro mandatos (1974/1980).

No livro dos 60 anos da ARUC, consta que Sabino foi o “responsável pelo reerguimento da associação, após a crise de 1974 e por trazer uma nova geração de cruzeirenses para a agremiação. Sabino é considerado o maior presidente da história da ARUC.

Geração “Volta por Cima” – 1974
Carlinhos, Esquerdinha, Ney Pompeu, Hélio Tremendani, Vareta e Zuca; Ivan, Xi, Nerício, Nonô, Maurício e Miltão

 A grande virada

Entre os cruzeirenses influentes, havia um que era uma espécie de “intelectual” do grupo, Roberto Lima de Machado. Manjava de tudo, tinha grandes conhecimentos, era culto, inteligente e tinha uma característica: nos ensinava o que sabia. Era daqueles caras que dividia o conhecimento. Foi Roberto, ao lado de Sabino, que conduziu a ARUC à volta por cima, na conquista do título de 1975, com o samba-enredo Raízes do Nosso Povo.

Depois da desclassificação em 1974, a ARUC faz desfile de gala com volta triunfal na W3, reconquistando o prestígio e o seu sétimo título ao som do samba-enredo Raízes do Nosso Povo. Mais de 10 mil pessoas vibraram com a vitória e carregaram o presidente Nilton Sabino, numa comemoração pela madrugada

Arrremessos

Lembro que certa vez Roberto me viu na quadra de basquete arremessando a bola, que insistia não entrar na cesta. Me chamou no alambrado e me ensinou a pegar a bola corretamente, a encaixar na mão e a fazer o arremesso. A partir daí a bola começou a entrar. E, antes de ir embora, me alertou:

“É simples encestar. Tens que treinar. Precisas fazer 100 arremessos por dia e acertar mais da metade pra te tornares um bom cestinha”.

“Fiquei muito feliz com aquele ensinamento, que não esqueço. Numa conversa rápida, ele me tirou um pesadelo das minhas costas, que já me preocupava”

 A desventura

Esse era o Roberto, amigo, sempre disposto a ajudar, a ensinar. Mas, tristemente, uma tragédia o aguardava.

Certo dia, por influência de outro amigo, Jacó Mendonça, que trabalhava na Aeronáutica, Roberto conseguiu uma carona aérea e viajou para o Rio de Janeiro, sem que a família soubesse. Lá, numa passada pela praia, ele mergulhou no mar e, tristemente, bateu com a cabeça num banco e areia, de forma tão forte que o deixou paraplégico. Jacob entrou em desespero e nunca se perdoou por ter conseguido aquela passagem para o amigo. Se não tivesse viajado, a tragédia não teria ocorrido, imaginava.

Carnavalesco e Patrono

Mesmo em cadeira de rodas, Roberto continuou vinculado à ARUC. E foi sob muita pressão de Sabino, principalmente, que ele aceitou escrever o enredo da Escola de Samba para o desfile de, 1975, que mostrou “Raízes do Nosso Povo”. No ano seguinte, escreveu “O Nordeste Explode em Festa”. E um dos maiores sambas-enredos da ARUC, cuja primeira estrofe cantava:

Neste Carnaval

Relembramos o Nordeste brasileiro

Que explode em festas

Com o seu festejo fagueiro

Vamos cantar do Maranhão a Bahia

Esquecendo a nostalgia

       Em delírio popular…

Roberto foi o patrono dos carnavalescos da nossa Associação e responsável pelos carnavais de 1975 a 1988. Para isso, montou uma equipe de trabalho respeitável, que tinha a participação de Carlos Queiroz, o mais velho do grupo. Nesses 13 anos, Roberto levou a ARUC a dez conquista do título maior do Carnaval brasiliense.

Nesse inesquecível desfile, eu estava na concentração, de short e sandália. Roberto me chama, me entrega um papel com anotações, que nada mais era do que a distribuição da Escola na avenida.

– Fique ali e vá distribuindo o pessoal por alas, está tudo aí desenhado….

Que fria que eu entrei, nunca tinha feito nada parecido. Mas… ufa! Saiu tudo certo, desfilamos na W3 Sul, saindo da 512 até o encerramento, na altura da Quadra 508.

Ao final, nos sagramos campeões com vitória por um ponto sobre a Asa Norte. Uma multidão para a época, mais de dez mil pessoas vibravam na Praça 21 de Abril.  Era o início de uma nova era para a ARUC.

No ano seguinte, 1976, desfilei na Ala dos Boêmios, com os amigos do Colégio. Mas foi aí que ficou provado que eu não era carnavalesco dos bambas, eu não levava jeito pra desfilar. Eu dava o meu máximo, mas sempre me cobravam. Embora até hoje eu seja apaixonado por um bom samba, sambar não é a minha praia. E, apesar da minha participação…. ganhamos novamente. A Escola estava embalada, não tinha jeito.

Incumbência

Nesse grupo eu era o mais distante do Carnaval e, então, me deram a incumbência de criar o Departamento de Esportes da ARUC, atividade que eu tinha maior identidade e conhecimento. Todo esse movimento estava na proposta de mantado que levou Sabino a conquistar a presidência.

Em 1976, Sabino montou uma chapa para a reeleição e me chamou para ser o seu vice-presidente, no lugar de Seu Dudu, que era vizinho de minha mãe, Juracy Tremendani dos Santos. Mas num acordo que fizeram, Dudu foi para a Diretoria Administrativa e eu não tive saída, aceitei.

Até porque, tempos antes ele havia me presenteado com uma reforma no telhado da casa de minha mãe, eliminando todas as goteiras. Sabino era assim, estava sempre disposto a ajudar os amigos. Até fez um mutirão para realizar a tal reforma, que ficou ótima. Nunca mais choveu dentro de casa.

Novos aprendizados

A chapa foi eleita e na vice-presidência passei a ter mais contatos com as pessoas, visitava as redações de jornais e TV para divulgar a ARUC, conheci sobre os bastidores de uma grande agremiação, enfim.

Eu gostava de ler, hábito que mantenho até hoje. Foi quando conheci um projeto da Xerox do Brasil, que editava livros sobre o folclore brasileiro, de leitura rápida. Escrevi e ganhei as publicações. Ua dela, trazia Iemanjá na capa e aquela imagem sugeria um enredo para o próximo Carnaval, envolvendo religiosidade e macumba, tema bom para ser explorado.

O que eu não sabia era que na macumba há várias divisões, vários segmentos. Roberto, que preparava o desfile com esse apelo, precisava mudar os rumos a todo instante, pois sempre esbarrava num e em outro argumento das divisões. Acabou desistido da ideia. Vieram os carnavais de 1979 e o de 1980 e a ARUC perdeu nos dois desfiles, pois não soubemos explorar bem os temas escolhidos.

Era preciso rever os nossos rumos, já que Sabino não poderia se candidatar. Em meio aos debates, fui a uma peixada na casa de Roberto para discutir à mesa sobre os tais rumos. Eu tinha casado há pouco tempo com Albaniza Cristaldo, e dedicava bom tempo à minha casa. Mas… surpresa. Na hora de ir embora, Carlos Alberto Queiroz, o Carlinhos, meu amigo, me chama em particular e comunica que o grupo havia decidido que eu seria o candidato à presidência na eleição seguinte. Sem que eu soubesse, já tinham combinado até com Albaniza, de quem tiveram integral apoio… Fizeram a cabeça dela, como reverter a situação? Foi assim que cheguei à presidência da ARUC para a gestão de 1980/1984. Voltaria ao cargo mais duas vezes, em 1988/1990 e 1994/1996.

Com minha filha Heloisa, minha irmã Iracema e meu filho Vitor

Intercâmbio no Rio

Logo que assumimos, em 1980, montamos um bom Departamento de Esporte, criamos um baile Soul Music, nos moldes de um que eu havia conhecido em Madureira, no Rio de Janeiro. Segui com as visitas, quando conheci Jorjão, que era o Diretor de Bateria da Escola de Samba União da Ilha, e o médico, Franco, que era um compositor de mão cheia. Nos deram aulas valiosas e sugestões que trouxemos para a ARUC.

Comissão de Frente da ARUC na conquista do título de 1982 / Na foto: Seu Álvaro, Henrique, Hamilton, Paulo, (…)Neide, Zezinho e Seu Carioca, da Harmonia

Íamos muito bem, pois começamos a abrir a ARUC para dar mais opções à comunidade. Athaide da Hora, um torcedor do Fluminense doente, me sugeriu um evento, pois poderia levar o pessoal da Beija Flor, que estaria em Brasília para um jogo do Tricolor. Foi uma festa muito bacana, com a presença de muita gente.

Movimento Negro

Em outra frente, fomos procurados pelo Movimento Negro Unificado de Brasília, que não tinha onde se reunir, pois também eram perseguidos pela ditadura por se tratar de um movimento de resistência. O acordo foi fechado para se reunirem na ARUC e vários componentes deles vieram desfilar conosco, reforçando a Escola.

Essas iniciativas eram feitas o mais próximo possível da comunidade. Houve uma reunião em que até freiras vieram participar e trouxeram propostas de projetos que beneficiassem as crianças do Cruzeiro, por exemplo.

Baile das Bonecas

Com a proposta de uma entidade aberta à comunidade, combater o racismo e acolher a diversidade estava no nosso programa. Foi quando Passarito sugeriu a Sabino realizar um Baile das Bonecas, em 1979.

O Miss Gay saiu e foi um sucesso. E eu tive a dimensão da importância daquele baile quando fui com minha mulher ao médico e ele me pediu uma mesa, pois queria estar presente, no que foi atendido, claro. Na foto, as candidatas finalistas com o casal organizador (na parte inferior).

Com essa iniciativa, a primeira do gênero em Brasília, o baile foi um sucesso e dava um gás financeiro para as despesas com o Carnaval. Mas, principalmente, colocou a ARUC na vanguarda das questões sociais, até hoje reconhecidas pelas diretorias que se sucederam.

Enfrentando a Polícia

Apesar de nossa filosofia de trabalho fosse sempre voltada para a paz, a tranquilidade, a harmonia, enfim, enfrentamos, sim, um desafio que nos levou à Polícia.

Um dia, durante uma reunião de diretoria, uma delegada e dois policiais chegaram na ARUC dizendo que o evento de sábado próximo estava suspenso. O motivo da medida: o barulho incomodava os moradores.

Ocorre que perto da ARUC morada o Dr. Pimenta, um delegado de polícia que não gostava da nossa entidade. É possível que a queixa tenha partido dele, mas não se ficou sabendo sobre isso.

Os policiais que nos visitaram não traziam nenhum documento que oficializasse a medida. Decidi questioná-los e não souberam responder, apenas disseram que era queixa dos vizinhos.

Avisei aos colegas de reunião que eu ia me retirar por uns instantes. E me dirigi à Delegacia. Quando passei pelo Cruzeiro Center, encontro o Passarito, que era o presidente da Liga das Escolas de Samba de Brasília. Ele ouviu minha narrativa e me disse, indignado:

– Você não vai sozinho à Delegacia. Eu vou junto. E lá fomos falar com o delegado de plantão.

Logo na chegada, os policiais tiraram a maior onda e Passarito resolveu bater de frente. Eu entrei na dele e quase apanhamos lá dentro, porque o clique esquentou, mesmo!

Passarito viu um telefone e decidiu ligar para um amigo, Rômulo Marinho, um “branco com alma de preto”, dono da Odara, onde alguns dos melhores cantores da cidade se apresentavam. Rômulo ouviu a história de que não queriam deixar a ARUC ensaiar e decidiu ligar para um Desembargador, seu amigo que falou com o delegado e sugeriu que ele fosse procurar bandidos na rua em vez de se preocupar com quem fazia o Carnaval de Brasília. Depois daquele episódio, Rômulo Marinho acabou ingressando na Ala dos Compositores da ARUC.

Respeito

Essa atuação estava no meu programa de mandato, ter uma entidade aberta, onde todos poderiam se manifestar, sem críticas ou censuras, mas respeitando as individualidades.

Em 1980, tivemos outra iniciativa, passamos a promover um concerto de rua, que tinha entre os participantes, os as bandas Aborto Elétrico, com Renato Russo à frente. Os concertos eram nos fins de semana, em frente à Igreja Nossa Senhora das Dores, no Cruzeiro Velho.  

No mesmo ano, criei o Departamento Cultural e Ismael assumiu e lançou o concerto musical Canta Gavião. Gavião era o nome de origem do nosso bairro, mais tarde substituído por Cruzeiro.

Nosso espaço

É oportuno colocar que nos primeiros anos de Brasília, o bairro Cruzeiro não tinha infraestrutura alguma. O mato dominava, não havia iluminação pública e eu pensava, sempre que era preciso dar “vida” ao Cruzeiro, começando por contar a sua história, a vinda dos moradores, transferidos do Rio de Janeiro. Para isso, montamos uma equipe que na pesquisa realizada alcançou a data de 30 de novembro de 1959, quando começaram a chegar os primeiros moradores.

Na sequência desse projeto, foi importante a participação e apoio do ex-governador José Aparecido. Ele encampou a proposta de dar autonomia ao bairro e criou a Administração do Ceruzeiro. Vital Morais foi nomeado o administrador interino, substituído por Ligia Hogen, efetiva.

Com essas mudanças, o Cruzeiro passou a ter identidade própria e, por isso, respeitado, valorizando-se, inclusive, como um dos mais valorizados espaços históricos da nova capital. Claro que sofremos ameaças, da especulação imobiliária, de um lado, e de templos religiosos, de outro. Mas resistimos e nos consolidamos sem ser preciso a adesão partidária ou política, sem trocar voto por dinheiro, por favores. A dignidade da comunidade cruzeirense precisava ser respeitada e exaltada e nesse ponto a ARUC sempre teve participação fundamental.

Esporte e preconceito

O Departamento de Esporte da ARUC começou em 1974, quando se inaugura a fase de promoção de torneios. Criei um projeto de escolinhas e passei a filiar as modalidades às respectivas federações. Isso motivava os alunos, pois passaram a disputar títulos nas competições oficiais da cidade. Mas, há um capítulo triste nessa fase, que aos poucos fomos superando: o preconceito.

Esse preconceito se manifestava mais pele elite dos clubes sociais da cidade, que não aceitavam que uma associação comunitária, como a nossa, fosse mais forte a ponto de ganhar campeonatos locais. Chegamos a ouvir que não era possível o clube X perder o campeonato para os “favelados da ARUC”…

Enquanto isso, por termos massificado o esporte na nossa comunidade, nos tornamos uma fábrica de talentos, com equipes fortíssimas. Assim, atingíamos a dois objetivos dessa iniciativa: enquanto dávamos lazer para a garotada nos tornávamos uma fábrica de revelações de jogadores, o que culminava com a formação de equipes fortes e que conquistavam títulos.

Nossa filosofia

Na verdade, a ARUC pertence a uma comunidade histórica do Distrito Federal que, no início, lá nos anos 1960, era chamada de Bairro do Gavião. Mais tarde é que passou a se chamar de Cruzeiro Velho, a fim de diferenciar de outro bairro, o Cruzeiro Novo, mais recente na história da Capital.

Neste rápido resumo, mostro como eu, que aqui cheguei garoto, vi crescer essa comunidade, orgulho da história de Brasília

É natural que na disputa esportiva ou na carnavalesca haja adversidades que às vezes são exageradas. Nossa comunidade sempre procurou evitar as provocações nesse sentido. Mas com um alerta: nada de provocações, mas, também, ninguém vai correr das agressões, nesse caso é preciso reagir.

Houve época em procuraram estigmatizar a ARUC com um local violento, que nunca foi, todos sabem. E a imprensa, que sempre nos deu ampla coberturas em todas as nossas iniciativas, está aí para contar a verdade – como ainda conta – e mostrar que nosso espaço é de promoção e fortalecimento da cultura, do esporte e dos valores humanos.

Ninguém jogou

Para ilustrar esse comportamento, lembro do dia em que fomos à AABB para um jogo pelo Campeonato de Futebol de Salão, tudo acertado previamente. Quando as equipes chegaram, um jogo de basquete estava sendo disputado. Reclamamos e o dirigente do basquete disse que ‘isso é um problema de vocês´. Diante dessa reação, as equipes de futebol de salão invadiram a quadra e o impasse estava criado. O presidente da AABB, na época, mandou desligar as luzes do ginásio e ninguém jogou naquela noite.

Regularização

Foi na base da resistência que alcançamos nossas conquistas. A regularização da área ocupada pela ARUC, inclusive, ocorreu só agora, em 2024, isto é, 63 anos depois de a agremiação ter sido criada.

Porém, é preciso fazer justiça, pois o grande articulador para a regularização da área da ARUC foi do vice-governador Paco Brito, no primeiro governo de Ibaneis (2019 a 2022). Para isso tivemos três reuniões, inclusive na casa de Paco Brito. “Eu vou ajudar vocês”, afirmou ele, no primeiro encontro. E assim foi até o dia em que o governador assinou o documento legal nos dando garantia de posse do espaço. Agora, estamos revitalizando a área e temos um pré-contrato com um empresário para um melhor aproveitamento do espaço e, por extensão, dos seus associados.

Muito obrigado

Estamos completando 63 anos em 21 de outubro. Eu acompanhei essa trajetória desde o início, me envolvi em vários momentos com os propósitos dessa associação de bairro, ajudei a conquistar títulos, nas quadras esportivas e no asfaltado dos desfiles carnavalescos.

Porém, nada do que a ARUC conquistou nesse tempo foi obras de uma só pessoa, mas de um grupo de abnegados cruzeirenses, que se sucederam nas diretorias, de atletas que vestiram e suaram a camisa, chegando a títulos internacionais.

Em resumo …

Na memória, foram 31 títulos da ARUC conquistados no Carnaval brasiliense.

Já no esporte, os nossos destaques são:

No Handebol masculino – Bicampeão brasileiro de Handebol Júnior, masculino, em 1979 e 1980. Em 1979, o time Juvenil de Handebol também ganhou o Campeonato Brasileiro, disputado em Caxias do Sul (RS) e a Copa Mercosul, em Santa Maria, também no Rio Grande do sul, em 2005.

No Handebol feminino – As equipes Master de Handebol, categoria mais 40 anos (foto), sagrou-se campeã mundial em 2021, na Croácia. No mesmo evento, o time mais 30 anos da ARUC ganhou a medalha de bronze.

No Futsal masculino – Campeão brasiliense de 1981 (foto)

            Em pé, da esquerda para a direita: Miltão, Fitinha,

            Maurição, assaroto,, Toinha, Pantera, Roberto e

            Vareta (massagista) – Agachados: Zequinha, Redi,

            Hugo, Marcão, Lourinho e Ricardo

No Futsal feminino – Campeão brasiliense de 1990 (foto)

Em pé: Mário (Organizador do evento), Romualdo, Iara, Ana Lucia Improise Erivanda, Irene, Regina Da Silva Vieira e Hélio;
Agachados: Vânia, Lilía, Jorge (Técnico), Ray, Jane e Monica Gardes.

Na garra

São seis décadas de muito trabalho. Em 63 anos, nenhuma história dessas se constrói de graça. Precisa ser conquistada. E foi isso que fizemos e continuamos fazendo, no dia a dia da ARUC. Na garra!

O mérito maior dessa trajetória é da nossa Comunidade e isso ninguém nos tira.