Por Hélio Tremendani e José Cruz
Quando desembarcou em Brasília com a família, em 1963, vindo do Rio de Janeiro, Alex, então com seis anos, foi morar no mais carioca dos bairros da Capital da República, o “Gavião”, hoje “Cruzeiro”, reduto da música e do samba, em especial, e onde morou a consagrada cantora e compositora Cássia Eller. Hoje, com 67 anos, Alex é um legítimo pioneiro brasiliense.
E é dele a retrospectiva da vez, sobre a sua andança pela Capital, que já dura seis décadas, e o seu envolvimento com o esporte, a publicidade e a artes, a música, principalmente, expressão que traz do berço familiar.
O início
Como todo garoto brasileiro, Alexandre Jorge da Silva, o Alex, um dia ganhou uma bola. Mas, apesar do perfil que tinha para se tornar jogador de futebol, não foi além das peladas de rua e dos campos na deserta Brasília, ainda em construção.
“A cidade era um enorme canteiro de obas, poucas superquadras e muitos blocos ainda em construção, parecia meio fantasma, com muitos espaços, poucas árvores, poucos carros e poucas pessoas”.
Alex era bom de bola e, por isso, disputado pelos times amadores da cidade. Chegou a ser cogitado para a base do Flamengo, do Rio de Janeiro, sua cidade natal. Mas, a negativa dos pais à proposta deixou o futebol no sonho do ainda garoto, lembranças de hoje…
“Na época, fiquei frustrado. Eu sou flamenguista e gostava muito de jogar bola. Mas, hoje, sem mágoas, reconheço a decisão de meus pais, Dona Yayana e Seu Nelson: “Eles agiram certo”.
Na memória
“Fui lateral esquerdo dos bons, pode escrever aí, sugere ao repórter, com segurança. Joguei nos times do Colégio Elefante Branco, no Defelê, na AABB e até na Seleção de Brasília”, conta Alex sobre os seus anos no futebol das categorias de base. No Defelê, Alex sagrou-se campeão do Distrito Federal, com direito à foto na capa do Correio Braziliense, onde ele aparece à direita do goleiro (abaixo).
O convite para jogar no time base do Flamengo veio em 1970, quando Alex estava com 13 anos, depois de um jogo da Seleção do Distrito Federal pelo campeonato Dente de Leite, no estádio Pelezão, patrimônio da Capital que, inacreditavelmente, foi demolido há poucos anos, trocando-se uma área de esporte e lazer por um gigantesco condomínio residencial.
Naquele jogo, o “Colored”, como Alex era conhecido no grupo do futebol, tinha 13 anos e marcaria Celsinho, apontado como o principal astro rubro negro.
“Numa das jogadas, Celsinho começou a pedalar na minha frente, mas, na boa, ganhei a bola dele e ainda dei um chapéu. A torcida vibrou e me enchi de orgulho. O lateral do Flamengo era Aloísio, cujo pai era amigo de um tio meu. Isso ajudou a sair o convite para eu ir para o Rio, que acabou não vingando” recorda Alex.
Novos rumos
Essa decisão dos pais ajudou que a vida de Alex ganhasse novos rumos. Aos 15 anos, ele foi trabalhar numa agência de publicidade, onde começou um aprendizado constante que se estende até hoje. Nessa carreira, frequentou algumas das principais agências e conviveu em com alguns dos melhores profissionais do país. Nesse embalo, ele criou a primeira logomarca do Clube do Choro de Brasília, assim como a do conjunto Squema 6 e capas de vários discos LPs, entre eles um de Clodo Ferreira, recentemente falecido em Brasília.
Dessa forma, entre uma pelada de fim de semana, os estudos e o trabalho publicitário ele também desenvolveu o gosto pela música, herança de família, como contou nesta entrevista de muitas lembranças. É assim que Alex sintetiza os seus 67 anos bem vividos:
Futebol foi projeto, é prazer!
Publicidade é profissão!
Música é alimento para a alma!
Mas, dessas atividades a que ainda “toca o coração” é a música.
Futebol tá um porre. Tá chato. Nem o Flamengo…”
Entre amigos
Alex não chegou a ser jogador profissional. A publicidade e a música agradecem, pois o talento dele na criatividade e na cultura estão comprovados. Nem por isso, ele se desligou totalmente do futebol, mas parou de jogar há quatro ou cinco anos, reservando bom tempo ao filho Léo Galvão e ao neto, já com 7 anos.
Há mais de dois anos, Alex participa de um grupo de 25 jogadores que começaram as suas carreiras em Brasília. Nenê, do Gama, e Paulo Victor, que chegou a ser goleiro da Seleção Brasileira, fazem parte do grupo, entre outros craques que Brasília revelou.
Reconhecimento
“Ainda bem que a vida me deu caminhos e consegui fazer publicidade como profissão. Desde os 15 anos vivo as rotinas de uma agência”
Alex trabalhou quatro anos na EBN (Empresa Brasileira de Notícias) como chefe da divisão de Mídia. Depois tornou-se sócio da Ratto Propaganda, uma das grandes empresas nesse setor. Também atuou na MPM, a grande agência no cenário nacional, e na Atual, também de destaque entre as melhores do país.
Roupa nova
Desde cedo, Alex mostrou determinação e que estava disposto a buscar espaço naquilo que gostava de fazer. Começou cedo no trabalho. Aos 15 anos, foi aprovado em concurso para ocupar cargo de auxiliar operacional, na Cobal (Companhia Brasileira de Alimentos).
“Meu pai comprou dois ternos para eu estrear no trabalho com roupa nova”
Uma reunião no primeiro dia decidiu que Alex seria “auxiliar operacional” na Cobal da Candangolândia.
“A função era para varrer o mercado, remarcar preços, o que se fazia até duas vezes por dia, e outras atividades. No segundo dia, já não fui mais de terno, mas de calça Jeans e camiseta”, recorda.
Alex não aguentou mais que um mês na Cobal. Ao findar os 30 dias, quando saiu o primeiro pagamento, ele pediu as contas à chefia.
“No dia seguinte contei a história para o pai. E disse, também, que já estava empregado numa agência de publicidade, de uma amiga, onde eu seria office boy, mas com chances de crescer. Eu estava com 16 anos. Mas, deu azar, a agência – Regis Representações Gerais e Publicidade – faliu e ela foi trabalhar na SGM, mas me levou junto.
E foi assim, conhecendo todos os setores de uma empresa de propaganda que Alex foi crescendo nessa profissão.
Em 1988, aos 31 anos, avançou, quando foi ser sócio de Luiz Antunes de Souza, o Ratão, da agência Ratto Propaganda.
O “chato”
Logo no início, Alex era “o cara chato” da Agência. Trabalhava no setor de “Tráfego”. É assim:
“Todo o trabalho que entra na agência é acompanhado pelo Tráfego. Ele cobra o cumprimento de prazos, por exemplo, desde o atendimento, criação, produção, mídia, etc. Nessa época eu já desenhava bem, gostava da arte, mas me envolvi com as questões operacionais da agência e produzi pouco naquela época.
O teste
“No final dos anos 1970, fui fazer um teste para a casa de show Odara, que seria inaugurada na 405 Sul. Eu trabalhava na agência SGB Propaganda, mas fui lá tentar uma vaga na casa, que ainda estava em obras”
O avaliador dos tetes era o “genial e talentoso e irreverente” Ary José de Oliveira, conhecido como Ary Pára-Raios, diretor musical da casa mas que também foi diretor de teatro, jornalista e ambientalista. Ele trabalhava no jornal Correio Braziliense e era um contundente defensor do Cerrado.
“Quando terminei a minha apresentação-teste, ele falou, sem rodeios: `Sua voz é boa, você canta bem, mas seu violão é medíocre. Fica por aí que a gente conversa´. E eu fiquei”.
Alex acompanhou outros tetes e conclui, que, de fato, o seu toque de violão era fraco. Só tinham feras no teste. “No final, ficaram três concorrentes, eu e as maravilhosas Nice Brown e a Cissa (Ana Cecília Tavares), forjando o trio de cantores das noites odarenses”.
Mamãe cantora
No jornal Correio Braziliense, o jornalista musical Irlan Rocha Lima registrou que foi aos 62 anos que Dona Yayana (Sebastiana Ferreira da Silva), estreava como cantora nas noites brasilienses.
O relato é de Alex Silva, em seu livro:
“Certa madrugada, por volta das duas da manhã, cheguei com um grupo de amigos no bar Singular, do Zeca Magalhães, na Quadra 315 Norte, que era um dos muitos redutos da boa música de Brasília. Lá fora, ouvimos uma bela voz feminina muito bem acompanhada por músicos de primeira, quando falei: acho que é mamãe! O grupo desmanchou-se em gargalhadas achando que era uma piada. Dentro do bar, a surpresa do grupo foi maior e mais agradável. Era a mamãe!”
A irmã é uma estrela
Na inauguração do Odara, a casa estava lotada por jornalistas e convidados especiais. A irmã de Alex, Angela Regina, deu uma canja e cantou pela primeira vez no microfone e em público.
Quando ela terminou a apresentação, um dos diretores do Odara, Rômulo Marinho, “advogado, portelense, amante da boa música, com o seu jeitinho educadamente truculento” exclamou em voz alta:
“Quem é essa cantora? Quero ela cantando aquina semana que vem”
Depois da primeira “canja”, Angela Regina tornou-se a cantora oficial da família. Inclusive, fez show com Ivone Lara, Mart´nália e Elza Soares, no Memorial da América Latina; cantou com João Bosco, Joyce e com Zélia Duncan e Rosinha Valença, assim como participou do especial Cantoras Negras. Angela Regina estará no show “Essa Era dos Festivais”, em 30 de agosto, no Clube do Choro, em Brasília, cantando em parceria com Myrian Greco.
Irmãos artistas
Seu Nelson e Dona Yayana tiveram seis filhos, todos cresceram com o DNA da música em família: Arlindo, o mais velho, toca cavaquinho, Alex, no canto e no violão, Angela Regina, canto, Antônio Carlos, o Thonde, coreógrafo, bailarino e tocava pandeiro, o André Negão, baterista, DJ e percursionista, e o Petit, que morreu em acidente de trânsito, aos 14 anos, garoto inteligente que era a fonte de pesquisa da família.
Alex diz em seu livro (“Minha Trilha Sonora – Do vinil ao digital”), que a letra da música “Casa de Bamba”, um dos clássicos de Martinho da Vila, “representa muito bem este fragmento da grande família da Silva”.
Origens da família cantante
Esse DNA tem origem nos anos 1930, no Rio de Janeiro, quando o Tio-avô Synval Silva era o motorista da já famosa Carmem Miranda, a “Pequena Notável”.
Synval era o compositor da Escola de Samba Império da Tijuca. Quando completou 60 anos, ele recebeu o título de “Bacharel do Samba”, com anel e diploma outorgados pelo prestigiado Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. Tornou-se um dos cantores preferidos de Carmem Miranda, que gravou várias de suas composições. Morreu no Rio de Janeiro em 1994, aos 83 anos.
No livro “Minha Trilha Sonora”, Alex presta homenagem ao tio-avô e lembra que, além do Adeus Batucada gravou mais 15 sambas. Deixou de ser motorista para ser compositor.
Ainda em família: certa vez, Yayana se apresentou num programa do também compositor Ary Barroso (autor de Aquarela do Brasil), na Rádio Nacional do Rio de Janeiro e ganhou nota 4,5 do exigente Ary. Ele dava no máximo nota 5 aos concorrentes. E foi no Rio que ela se casou e veio para Brasília, já com quatro filhos. Aqui nasceram mais dois.
Dona Yayana vivia a música intensamente.
“Tenho um amigo que até hoje lembra que, quando descíamos para jogar bola, ouvíamos mamãe assoviando, enquanto fazia a comida. Assoviando e cantando. A base musical dos filhos vem também daí, do gosto dela pelo canto! Eu, em particular, também sou iniciado pela black música americana. Ouvia muito Tina Turner, Diana Ross, James Brown”…
Mestre da gafieira
Já o pai de Alex não tocava um só instrumento. Porém, era ótimo na afinação de violões. “Ele afinava de ouvido, com precisão enorme. E foi um grande incentivador nas carreiras dos filhos.
“Papai foi um grande incentivador das nossas carreiras. Era mineiro e dançava muito bem, o rock raiz, principalmente. Destacou-se, como professor das gafieiras Estudantina e a do Bola Preta”, conta Alex. Seu Nelson faleceu jovem, com 57 anos, em 1979.
Fundada em 1928, a Estudantina, hoje na Praça Tiradentes, integra o Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro
Bar da Val
Em 2015, Alex voltou a cantar, com Gilberto Lopes no cavaquinho, mais Arlindo Ferreira e Marcos Kuebas, na percussão. Foi quando criou um projeto chamado “Segundandeira”, que batia ponto no Bar da Val, na 407 Norte, um boteco pra lá de legal, todas as segundas-feiras.
O projeto previa que um artista da cidade sempre dividisse o palco com Alex e a música estava garantida das 19h às 22h. Depois de certo tempo o grupo se mudou para outro bar, o Fulô do Sertão, na 404 Norte.
“A coisa começou a pegar, não dava pra chamar de Segundeira e o grupo passou a se chamar `Samba da Silva´ que evoluiu para Banda Silva”.
O repertório, ainda hoje é MPB e Bossa Nova, mas, além dos bares, Alex passou a atender mais contratos com festas particulares. “Toco em bar, mas é muito pouco”, afirma.
Na pandemia
Na triste época da Covid, quando ninguém saía de casa e os músicos pararam de tocar, Alex investiu em um projeto doméstico: “Iventei a Segundeira Virtual. Passei um ano fazendo programas a cada 15 dias. Convidava um artista local, ele mandava o currículo eu roteirizava, pedia fotos pra ilustrar e gravava um programa de meia hora a 40 minutos, contando a história do artista. Depois, jogava o resultado no youtube, tinha público cativo, saí de zero pera 415 seguidores.
“Era uma forma dos artistas se manterem ativos e mostrarem os seus trabalhos e talentos”
Despedida
O último programa da série Segundeira foi com o piauiense Clodo Ferreira, piauiense, criado em Brasília, amigo de Alex e que morreu recentemente, aos 72 anos, em 16 de julho deste ano.
Clodomir Souza Ferreira, o Clodo, era compositor, instrumentista, poeta e professor de Universidade de Brasília (UnB).
Irmão de Clésio e Climério, o trio marcou época na história da música piauiense e nordestina, em especial. Clodo teve como parceiros e parceiras expoentes da música nacional, como Dominguinhos, Belchior, Fagner, Simone, Elba Ramalho, Milton Nascimento, Nara Leão, Ney Matogrosso….
“Não tenho ídolo na vida, mas posso dizer que Clodo foi o meu guru”, diz Alex, sem esconder a tristeza pela partida do talentoso amigo
Educação e respeito
Hélio Tremendani (à esquerda, na foto), também pioneiro de Brasília e intimamente vinculado aos movimentos carnavalescos e musicais da cidade, que acompanhou esta entrevista, quis saber como Alex conviveu na noite artística brasiliense, sendo negro. Sofreu discriminação? A explicação foi didática:
“Minha mãe era muito positiva. Era uma entidade. Onde ela chegava, agradava, confortava as pessoas. Ela nos deu uma formação para que a gente sempre soubesse se comportar. Quando dois irmãos brigavam, ela colocava os dois abraçados, um olhando para o outro. Ensinou e crescemos num mundo de brancos, onde tinham poucos negros. Nas provocações, eu sempre procurei não ser grosseiro, extremista, mas justo comigo mesmo. E enxergar da mesma forma a questão da negritude. Nem todo branco é racista. A mãe do meu filho, por exemplo, é uma loura gringa. Eu sempre soube me colocar e respeitar as pessoas. Certa vez fui disputar as prévias do Movimento Negro Unido (Unificado). Quando cheguei com duas brancas na reunião, o meu único oponente começou discurso que ele falou uma palavra mais de cinco vezes: igualdade, mas em vários contextos. Eu nasci diferente, mas quem não me vê igual… eu luto por respeito, e a galera ficou puta comigo. Tenho irmão que é subserviente, que não acredita na sua negritude. Eu era tráfego num certo momento da minha carreira de publicitário e ganhamos concorrência da Américan Airlines, uma empresa norte-americana. Sei como combater as agressões sem ser agressivo”.
“Atualmente, sigo na publicidade, mas como autônomo, também fazendo diagramação e desenho gráfico. Na verdade, eu gosto de trabalhar”