A proximidade dos Jogos Olímpicos de Paris, a partir do dia 26 de julho, me incentiva viajar pelas grandes coberturas esportivas que realizei. Olimpíada de Seul, 1988, eu estava lá.
Por José Cruz
Quando cheguei à gigantesca Vila de Imprensa do Parque Olímpico de Seul, em 1988, eu não estava apenas no meio de estranhos coreanos, mas no meio do mundo em balbúrdia infernal, sem exageros.
Ali estavam jornalistas, fotógrafos, técnicos e cinegrafistas de 159 países com o mesmo objetivo, cobrir a primeira Olimpíada com as presenças de atletas dos Estados Unidos e da então União Soviética, depois de boicotes: em dois Jogos consecutivos, Moscou, 1980, e Los Angeles, 1984, um não foi à festa do outro. Coisas da “guerra fria”. Seul seria, então, o tira-teima dos poderosos.
Ousadia
Lá se vão 36 anos daquela que foi a minha primeira cobertura internacional, de cara, os Jogos Olímpicos, evento com cerca de 40 modalidades, difícil de cobrir, principalmente sozinho!!! Ousadia do companheiro Sylvio Guedes, à época o editor de Esportes do Correio Braziliense. (Obrigado, Mestre Sylvio). Doze anos depois, eu repetiria a pauta, dessa vez nos Jogos de Sidney, em 2000. Mas, aí, o mundo já era outro, o Século já tinha mudado e isso merece crônica especial.
Eu estava, enfim, na distante mas moderna Seul, com população de hábitos estranhíssimos, como se deliciar com carne de cobra ou de cachorro, compradas em açougues que exibiam os bichinhos pendurados em ganchos macabros, como ainda se faz com os bois, porcos e frangos ocidentais. Ironicamente, o mascote dos Jogos de Seul foi “Hodori”, um simpático e sorridente tigrinho, homenagem a esse animal que habita aquela região oriental.
A chave
A primeira providência na Vila de Imprensa era pegar a chave de meu quarto, previamente alugado. O problema é que outros cinco mil e tantos jornalistas queriam o mesmo. Os Jogos começariam em uma semana e a turma das imagens e texto chegava de toda parte do mundo, cada um com suas prioridades ou urgências …
Cansado de mais de 12 horas de viagem entre Los Angeles e Seul, mochila pesada, soltei um palavrão em meio a tanta desordem e gritaria. Afinal, jornalistas indianos, chineses, russos, israelenses, etc em minha volta não entenderiam aquele desabafo… PQP!!!
Meu anonimato grosseiro não passou despercebido – imagine! –de um brasileiro que por ali passava.
– O que que há, gaúcho! – disse ele.
Olhei para o lado atraído pela voz familiar e ali estava, como disposto a me ajudar, o grande jornalista João Saldanha, ex-técnico da Seleção Brasileira, na pré-campanha da Copa de 1970 e que, em 1957, levara o Botafogo ao título estadual.
João Sem Medo
De texto e conversa simples, no nível de torcedor de arquibancada em dia de clássico, de inesquecíveis comentários e debates na TV, era ele mesmo, o “João Sem Medo”, apelido que ganhou de Nelson Rodrigues, devido à ousadia do gaúcho.
João já estava na Vila há algum tempo. Comentarista da ainda jovem TV Manchete, do Rio de Janeiro, ele acompanhava a preparação da Seleção Brasileira, que já tinha craques bem conhecidos, entre eles Taffarel, Andrade, Careca, Bebeto e Romário. Apesar disso, ficamos com a medalha de prata, na derrota para a União Soviética por 1×2, na final, com gol de Romário, também artilheiro da competição, com sete gols.
Amigo da chefia
Esse era, em resumo, o jornalista que se dispôs me ajudar. Soube, depois, que ele fizera o mesmo com tantos outros brasileiros “perdidos na vila”.
Bem ao seu estilo, João já conhecia meio mundo, os chefes de setores, principalmente, porque são os que resolvem mesmo num evento dessa magnitude. Assim, por influência dele, em meia hora eu já havia assinado uma papelada que nem li, mas estava, enfim, com a chave do ap em mãos.
João se comunicava com facilidade enorme, tanto no texto quanto na palavra. E cativava pela forma convincente como se expressava. Quando saímos do prédio, ele apontou para um “PUB”, nos arredores, e sugeriu:
– Depois que encontrares o teu prédio (o Bloco C, nunca esqueci) aparece naquele PUB. A brasileirada tá toda lá.
Fiz isso. Lembro que Paulo Stein e o fotógrafo Gil Pinheiro, da revista Manchete, ouviam João, que contava “causos” dos entreveiros que enfrentara. Depois, foram chegando outros jornalistas brasileiros. Os mais íntimos diziam que ele mentia muito. Não creio.
“João tinha a capacidade de mentir com graça e convincentemente”, disse, certa vez, o jornalista e cronista Armando Nogueira. Disse mais: “João Saldanha era insuportavelmente inteligente”
Papo e cachaça
Logo de chegada, observei sobre a mesa uma garrada de “Soju”, nome estranho de bebidas, principalmente para mim, de pouca resistência… Era uma gostosa cachaça coreana, parecida saquê, que a “brasileirada” esvaziou em menos de meia hora. Naquela noite, Soju foi decisiva para me ajudar na adaptação ao fuso horário, de 12 horas à frente do Brasil.
Depois daquele inédito encontro e pequena convivência, eu e João Saldanha não nos vimos mais. Jornalistas da imprensa escrita trabalham em áreas diferentes dos da TV e nem sempre estão nas mesmas coberturas. Mas o acompanhava pela televisão e jornais por onde passou.
Mas, aquele rápido e casual encontro, fez crescer a minha admiração profissional, sobretudo, por João Saldanha, a ponto de chegar às lagrimas na sua morte, 12 de julho de 1990, depois da Copa do Mundo da Itália.
Quando viajou, ele já estava bombardeado devido a sérios problemas nos pulmões. João fumava ininterruptamente. Sabia dos riscos daquela cobertura tendo uma saúde abaladíssima. Mesmo assim, João “Sem Medo” foi para a sua última Copa. Já em cadeira de rodas, mas foi.
Alguns anos depois, já neste século, entrevistei e me tornei amigo de Bebeto de Freitas, sobrinho de João Saldanha, que manteve o DNA do tio. Ex-jogador de vôlei, técnico consagrado e gestor esportivo sério, ele me contou histórias maravilhosas – muitas preocupantes – sobre os bastidores do nosso esporte em geral e o olímpico em particular. Foi numa conversa por mais de oito horas entre um café da manhã, almoço e janta. Mas isso é assunto para um próximo comentário.
Jogos e doping
Seul recebia os Jogos que ficaram conhecidos como “a Olimpíada de Bem Johnson”, referência ao jamaicano naturalizado canadense, o primeiro homem a correr os 100m abaixo dos 10 segundos, mas reprovado no exame antidoping.
O velocista, com musculatura de um halterofilista, fez fenomenais 9s79 na final, mas não lhe valeu de nada. Foi um baita escândalo, como se ele fosse o único a estar naquela situação, inclusive entre as mulheres… O doping, os seus exames e consequências ainda são mistérios nas Olimpíadas modernas, porque o desempenho dos atletas esconde patrocínios e interesses milionários que nem imaginamos.
Brasileiros
Para os brasileiros os bem-organizados Jogos de Seul foram celebrados com a primeira medalha de ouro conquistada pelo judô, feito de Aurélio Miguel.
Com outros jornalistas, eu acompanhava um jogo de basquete, quando o monitor de TV nas nossas cabines anunciou que Aurélio havia se classificado para a luta final. A prata estava garantida, no mínimo e isso era notícia importantíssima. Lembro bem, era em torno de 19h locais, enquanto ainda amanhecia o mesmo dia no Brasil…
Saímos em disparada para o ginásio de lutas. No trajeto, o ônibus exclusivo da imprensa mostrava a luta de Aurélio contra o alemão Marco Meiling, por um pequeno monitor.
Quando chegamos ao local do judô, enfrentando trânsito pavoroso, a medalha dourada já estava com o campeão olímpico, na derrota que impôs a Meiling, na categoria meio pesado (95kg).
Porém, ainda pegamos a coletiva daquele judoca com cara de garotão, então com 24 anos, ponto de partida para que o nosso judô fizesse escola e se tornasse referência mundial.
E o que nos espera em Paris, além da moderna tecnologia que contrasta espetacularmente com a maquinha de escrever portátil que levei para Seul, há 36 anos, usando um telex para transmitir o material? E os repórteres de hoje, com tecnologia instantânea, podendo escrever matérias de seus celulares e, melhor! Fotografar o evento com imagens de qualidade.
Paris está em festa
Que venham os Jogos!
Independentemente de resultados, “I love Paris every moment”, como disse o músico e compositor norte-americano, Coler Porter, nessa maravilhosa música.