Por José Cruz
Além dos personagens das artes e do esporte, também eventos que marcaram época fazem parte do patrimônio cultural da Capital da República.
A “Maratona Brasília”, do Correio Braziliense, está entre essas promoções. É sobre ela e outras provas que Miguel Jabour lembra como a histórica corrida tornou-se uma das marcas registradas do calendário esportivo de Brasília e do Brasil.
Ponto de partida
As centenas de maratonas anualmente promovidas no Brasil tiveram o ano de 1980 como ponto de partida, há quase meio século. E foi o extinto Jornal do Brasil, um dos grandes diários da imprensa nacional, conhecido pela sigla “JB”, o “padrinho” daquela corrida que anualmente ocorria na orla do Rio de Janeiro.
A ideia de o Rio ter a sua maratona partiu do jornalista José Inácio Werneck, hoje com 86 anos. Naquela época, ele era colunista esportivo do jornal, quando tinha como companheiros de redação duas feras da crônica esportiva, Armando Nogueira e João Saldanha.
Apaixonado por corridas de rua, Werneck participava, anualmente, da Maratona de Nova Iorque. Foi quando surgiu a ideia de promover uma prova dessas na Cidade Maravilhosa. A proposta foi levada ao diretor do JB, José Antônio do Nascimento Brito, que topou a parada já na primeira reunião. Até então, o Brasil não tinha tradição em maratonas. Historicamente, a primeira organizada no país foi em 1921, pelas ruas de São Paulo.
Na orla carioca
Assim, a primeira Maratona do Rio, inspirada nos moldes, da de Nova Iorque, ocorreu em 15 de novembro de 1980. Com 1.098 participantes, a prova foi adaptada à realidade brasileira, pois a novaiorquina é disputada, ainda hoje, em pleno inverno, enquanto a dos cariocas tinha como desafio a umidade e o escaldante calor do Rio de Janeiro.
Porém, as dificuldades do clima eram compensadas, pois ao longo do 42,195km do percurso os corredores desfrutavam do espetacular visual da orla das praias cariocas, além de passagem pela Lagoa Rodrigo de Freitas, com chegada da prova no Forte do Leme.
Ambiente oportuno
Naquela ocasião, o Brasil já vivia o movimento das corridas de rua, nas distâncias de 5km e 10km. Essa prática foi implantada pelo capitão do Exército Cláudio Coutinho (1939 – 1981), que era o preparador físico da Seleção Brasileira.
Gaúcho com alma carioca, Coutinho, que também chegou a comandar a Seleção, foi o introdutor no país do famoso “Teste de Cooper”, que mede o consumo de oxigênio pelo corpo para estabelecer parâmetros de condicionamento físico dos atletas.
Segundo Miguel Jabour, era esse, em resumo, o ambiente das corridas de rua naquela época, totalmente incentivador para que os atletas enfrentassem o desafio de uma maratona, projeto que ganhou corpo com a promoção do Jornal do Brasil.
Além disso, em 1980 as principais cidades do mundo, as capitais, principalmente, tinham em seus calendários esportivos uma maratona, começando por Boston, a mais antiga, que este ano chegou à sua 126ª edição; Maratona de Paris, Berlin, Tóquio… O Rio de Janeiro, um dos destinos mais procurados pelos turistas, carecia dessa prova, que enriquecesse o cartão de visita da Cidade Maravilhosa. E, assim, o Rio entrou no calendário dessa histórica prova de rua, com vários apelos promocionais, como um dos slogans, “Linda de Correr”. Com toda razão.
Não bastassem esses argumentos promocionais, mais um fortalecia a campanha carioca. Naquela época, o filme “Carruagens de Fogo”, estava nas telas brasileiras. O filme, com uma trilha sonora de fortíssimo apelo, contava a história de dois corredores escoceses, filhos de imigrantes judeus, que representaram a Inglaterra nos Jogos Olímpicos de 1924. E isso contribuiu, com certeza, para a adesão de muitos corredores às provas de maratona.
Pela experiência que adquiriu na Maratona do Rio, Jabour, personagem desta entrevista, viria a ser, a partir dos anos 1990, o coordenador da Maratona Brasília. O evento, interrompido em 1997, voltou às ruas da capital da República em 21 de abril de 2023. E, em 2024, será novamente promovida, sempre com a chancela do jornal Correio Braziliense, idealizador da prova.
Curiosidade
Carioca desportista e flamenguista, Jabour entrou no “mundo das maratonas” atraído pela curiosidade. Numa noite de novembro, ele foi levado até o Forte Duque de Caxias, em Copacabana, que estava bem mais iluminado. Curioso, investigou o motivo de tanta luz e acabou batendo justamente com a chegada da 1ª Maratona do Rio de Janeiro.
O papo com o staff rendeu e Jabour acabou ganhando uma camiseta da Maratona. Em seguida, passou a ajudar no desmonte da estrutura do evento, carregando grades, trocando informações e outros afazeres. Ao final de tudo, entusiasmado com o que vira, fez o devido preparo e, no ano seguinte, 1981, lá estava Miguel Jabour estreando na distância da histórica e milenar competição. (42.195km).
Surpresa
Naquela sua primeira prova, Jabour foi surpreendido por um gesto carinhoso e de apoio de sua esposa, Suzana: ela desceu do apartamento onde o casal morava, na rua Princesa Isabel, com o seu primeiro filho, Miguel, no colo, para entregar água ao marido maratonista que por ali passava. Era o km 28 do percurso e ainda faltava correr toda a orla de Copacabana, Ipanema, Leblon, até a chegada, no Leme.
“Com aquele gesto de minha mulher e correndo diante do meu pequeno filho, senti a obrigação moral de chegar ao final. Ganhei fôlego e cheguei, claro. A satisfação e o prazer daquele feito é indescritível”.
A participação de Jabour naquela maratona foi o ponto de partida para várias mudanças na sua vida.
“Peguei gosto pela corrida de longa distância. Mas, além da prova, em 1984 acabei trabalhando na equipe de Flávio Behring, que era o diretor da Viva Promoções, uma revista criada pelo Jornal do Brasil para organizar e apoiar os eventos esportivos da empresa, como a Maratona do Rio”
Pela experiência que adquiriu na Maratona do Rio, Jabour, personagem desta entrevista, viria a ser, a partir dos anos 1990, o coordenador da Maratona Brasília. O evento, interrompido em 1997, voltou às ruas da capital da República em 21 de abril de 2023. E, em 2024, será novamente promovida, sempre com a chancela do jornal Correio Braziliense, idealizador da prova.
Estrutura
Depois da prova, o vínculo de Jabour com Behring continuou. Advogado, ele passou a cuidar dos contratos das maratonas seguintes.
“Uma corrida para 10 mil pessoas exige grande preparação e muitos cuidados, como inscrições, distribuição dos kits, cronometragem, segurança, atendimento médico, hidratação, enfim”, discorre Jabour. “O aparato é enorme e Behring precisava de um advogado para cuidar dos contratos com as empresas que prestavam esses serviços especializados à maratona. Foi assim que me envolvi com esse segmento do esporte”.
Internacional
O tempo passou e a Maratona do Rio de Janeiro ganhou fama e charme. Passou a ser “internacional”, com premiações altíssimas, em dólar, inclusive. A entrega dos kits era no histórico Copacabana Palace, o hotel oficial da prova, onde se hospedavam os corredores do pelotão de elite. O evento cresceu, mas em 1989 José Inácio deixou o Jornal do Brasil e foi trabalhar no concorrente O Dia. Jabour recorda:
“Com a saída de Werneck, o Jornal do Brasil reformulou a sua equipe de promoção do esporte e colocou Flávio Behring à frente. Eu fui promovido e subi para um cargo do segundo escalão, quando adquiri mais conhecimentos sobre a organização de maratonas”
Maratona Brasília
Foi graças a esses conhecimentos que Miguel Jabour tornou-se um especialista nesse segmento e acabou sendo convidado para vir organizar a Maratona Brasília.
“Em fevereiro de 1991 recebi um telefonema de Joaquim Pires. A direção do Correio promoveria uma maratona em 21 de abril – data da fundação da cidade – e me queria como o organizador da prova”, conta Jabour.
Joaquim Pires era um português que sabia muito sobre corridas de rua em geral e de maratonas em particular. Havia corrido várias dessas provas no mundo. Em Brasília, onde morava, Pires criou o COBRA – Corredores de Rua de Brasília – um bem estruturado clube que reunia a nata dos atletas da cidade.
Jabour, por sua vez, já havia participado de sete maratonas em Nova Iorque, onde encontrava Joaquim Pires, do qual se tornou amigo. Em cada uma dessas idas aos Estados Unidos, Jabour aproveitava para aumentar os conhecimentos sobre a famosa corrida, conhecer as novidades em cada edição, os avanços tecnológicos, a crescente melhoria no atendimento aos atletas, fazer novas amizades, etc.
“No total, corri três provas da São Silvestre e 14 maratonas, sendo sete em Nova Iorque, cinco no Rio de janeiro, uma em São Paulo e outra em Blumenau, essa última a que considero com o melhor percurso”, disse Jabour.
A partida
A reunião de Jabour no Correio Braziliense foi com o alto comando do jornal, comandada pelo então presidente da empresa, o advogado Paulo Cabral, também jornalista de ótima oratória.
Indo direto ao assunto, o diálogo foi mais ou menos assim:
– Vamos fazer uma maratona em Brasília e queremos que você organize e coordene essa corrida! – disse Paulo Cabral
– Mas o custo dessa prova é muito alto – reagiu Jabour.
– Não tem problema. Vamos fazer. E vamos começar agora. Quanto você quer ganhar? – insistiu Cabral, demonstrando determinação sobre o tema.
Feitos os acertos, mais uma hora de conversa e a parceria foi fechada.
Nesse encontro estavam expoentes da empresa, como os diretores Mauricio Dineppi, Luiz Adolpho Pinheiro, Evaristo de Oliveira, o articulador e grande incentivador do evento, Joaquim Pires e o jornalista Marcondes Brito, editor de Esportes do jornal, à época.
A equipe
Quando veio para a reunião, Jabour imaginava retornar no fim de tarde para o Rio de Janeiro. Acabou ficando quatro dias. Era preciso agir logo, pois tinha só dois meses para preparar a corrida.
Além de já conhecer alguns personagens que sabiam sobre corridas de rua, Jabour endossou sugestões de Joaquim Pires e o time para o grande evento foi se formando para as diferentes frentes de trabalho: Daso Coimbra, Sérgio Lima da Graça, Antônio Augusto Pinheiro, Coronel Lima Verde, Hideamo Bonifácio de Oliveira, que era doutor em Ciências da Saúde e Mestre em atividade física e o médico Pedro Carrusca. “Só tinha especialista”, lembra Jabour.
“Organizar uma maratona é como organizar uma escola de samba, tudo setorizado: partes técnicas, médica, promocional, inscrições, largada da prova, computação de resultados… cada setor entrando no momento oportuno fixado no cronograma.
Jabour observou que tinha “gente competente” na equipe e isso lhe dava tranquilidade para pensar numa grande organização. Mais: pelo prestígio do jornal na cidade, houve apoio de órgãos importantes na estrutura da prova, como o Comando Militar do Planalto, Polícia Militar, Bombeiros etc.
Foi graças a essas parcerias que a largada da Corrida, no dia 21 de abril, data da fundação da cidade e do jornal Correio Braziliense, foi dada pelo então governador Joaquim Roriz com tiro de festim de um histórico canhão, cedido pelo Exército.
“Chegou o dia 21 de abril. A cidade parou. A corrida foi uma grande festa, um espetáculo à altura do aniversário da Capital da República. Depois da Maratona, o então presidente, Fernando Collor de Mello, que também tinha o hábito de correr, nos recebeu com os atletas e subimos a rampa do Palácio do Planalto. O mineiro João Batista Pacau ganhou, no masculino, e a brasiliense Carmem de Oliveira. no feminino”
Parceria
No dia seguinte ao da histórica Maratona de Brasília, Jabour foi ao gabinete de Paulo Cabral, no Correio Braziliense, para agradecer e se despedir. O diretor financeiro, Evaristo, estava presente.
– Não tem despedida – disse Cabral. Ano que vem tem mais!
A previsão de Jabour se confirmara, a Maratona Brasília não se restringiria a apenas uma edição, veio para ficar.
Diante de outra realidade que enfrentava no Rio de Janeiro, Jabour decidiu se mudar para Brasília. Conversou com Paulo Cabral, pois para essa mudança era preciso uma garantia de emprego.
– Pode vir. Você está empregado – decretou Cabral.
Em decorrência da confiança mútua, foi criada uma empresa, a Correio Promoções e Eventos (CORPE), da qual Jabour era um dos acionistas, sendo que o jornal detinha 70% das cotas.
Mudanças
Diante desse novo quadro, Miguel Jabour precisou alterar a sua rota profissional.
Numa de suas viagens ao Rio para rever a família Jabour concluiu que não era mais possível tratar como “bico” a organização de uma maratona gigantesca, como a que ele estava envolvido. Foi quando tomou a decisão extrema: depois de 16 anos atuando em diferentes causas e frequentando o Fórum do Rio de Janeiro ele, enfim, “pendurou a toga” e passou a se dedicar exclusivamente daquela atividade que também gostava muito, organizar corridas de rua.
Seletiva
Depois, já instalado em Brasília e com a situação funcional resolvida, a Correio Promoções partiu para novos eventos, além de ter repetido a Maratona Brasília, em 1992, com o mesmo sucesso. As provas foram se sucedendo e ganhando em prestígio, graças à impecável organização, que evoluía.
A cada nova edição da maratona crescia a participação de brasileiros de todos os estados nacionais. A prova ganhou o aval da Confederação Brasileira de Atletismo e se tornou seletiva para o Campeonato Sul-Americano. Isso fez com que os atletas com melhores tempos, no masculino e no feminino, aqui viessem correr, valorizando o pelotão de elite e atraindo mais público às ruas.
Inovações
Em 1997, porém, com a mudanças na cúpula do Correio Braziliense, a nova direção descontinuou a tradicional corrida. Porém, em 2007, a Maratona ressurgiu, mas com uma novidade: Maratona de Revezamento.
A nova estrutura na prova tinha boas justificavas, entre elas a falta de competições de longa distância, como a maratona. Ou seja, os corredores de maratona estavam desacostumados e sem treinos para a distância única de 42,195km.
Em segundo lugar, a maratona de revezamento estava na moda no Brasil. Além disso permitia a corrida em equipes de academias, de clubes, etc, o que aumentava a rivalidade. E, principalmente, era uma corrida mais democrática, pois, na prática, ao se revezar nos 5km ou nos 10km pode-se dizer que “participou da maratona”.
A Maratona de Revezamento tinha três categorias: revezamentos de 5km, de 10km e de 21km. Ou seja, nessa última, participavam dois por equipe; na de 10km eram quatro por time. “Isso mostra porque tivemos cinco mil inscritos só nas equipes de revezamento dos 5km e dos 10km”, explica Miguel Jabour.
Marotinha
Além da Maratona de Revezamento, o Correio Promoções voltou a inovar com prova “Marotinha”, corrida infantil de curtas distâncias comemorativa ao Dia das Crianças. Com quatro mil inscritos, a Marotinha revelou-se novo sucesso na cidade.
Jabour lembra que o campeão de uma das baterias – por faixa etária – da 1ª Marotinha, foi o brasiliense, de Ceilândia, Marilson Gomes dos Santos, que anos depois se tornaria bicampeão da tradicional Maratona de Nova Iorque.
Além dessas provas, a CORPE aproveitou as férias escolares e promoveu o “Tarefão”, que era a super gincana de Basília, e o Aberto de Truco, com a participação de 5 mil jogadores. Na prática, era uma forma lúdica de o jornal também se relacionar com o seu público.
Volta às origens
Dezesseis anos depois da última prova, o Correio Braziliense já prepara a Maratona Brasília 2024. Quem conta a novidade é o mesmo organizador da primeira prova, Miguel Jabour, hoje com 67 anos, mas ainda se mantendo em atividades de corridas.
“O Correio Braziliense está sob a presidência de Guilherme Machado. Ele decidiu promover mais uma corrida festiva e com o mesmo objetivo, festejar o aniversário de Brasília com boa parte de sua população na rua”, disse Jabour.
“A largada da Maratona Brasília de 2024 será às 7h em frente ao Museu da República, mesmo local da chegada. E teremos mais de uma distância para permitir a participação do maior número der corredores. Assim, as inscrições poderão ser feitas para as provas de 3km, 5km, 10km, meia maratona e maratona”.
Muito fôlego
Ativo na rotina diária de trabalho, Miguel Jabour revela que, aos 67 anos, ainda corre “pequenas distâncias” e faz “longas caminhadas”. Faz sentido, pois o preparo físico e bom fôlego são indispensáveis para quem se envolve com a organização de uma grande prova, como a Maratona Brasília. Para esses, a corrida começa bem mais cedo.